O homem encarou Luppo com os olhos afiados. Um instante depois, se pôs a andar em linha reta, agindo como se estivesse esperando a companhia de Luppo logo atrás
A presença do homem acalmou Luppo. A verdade é que ouvir uma voz pacífica diante de tanta poluição sonora urbana é como uma verdadeira benção.
"Você vem ou não...?", o homem perguntou um pouco impaciente.
A resposta de Luppo foi balançar a cabeça em "sim", porém ele permaneceu imóvel com os dedos ao redor do saco de lixo e o arroz frio formando uma massa intragável em sua garganta.
Luppo hesitou, seu olhar fixo no homem à sua frente. Havia algo de intrigante na maneira como ele o encarava, uma intensidade em seus olhos que o fazia querer segui-lo.
O homem começou a andar, confiante, como se soubesse exatamente para onde estava indo e por que Luppo deveria acompanhá-lo. A cada passo, a curiosidade de Luppo aumentava, e ele se viu acompanhando o estranho, deixando para trás o saco de lixo e a refeição intocada.
As ruas da cidade pareciam diferentes sob a companhia do homem. A poluição sonora urbana, que antes era avassaladora, agora parecia distante, estavam imersos em uma bolha de tranquilidade.
O homem caminhava com passos calmos e deliberados, e sua voz, quando falava, era suave e serena. Luppo se viu relaxando em sua presença, sentindo uma paz que há muito não experimentava.
"Você parece intrigado", disse o homem, sorrindo. Luppo hesitou, mas sentiu que podia confiar naquele homem, então, começou a contar sua história, falando sobre sua vida e todo o resto.
"Eu venho de uma família muito desconectada."
"Com desconectada, você quer dizer 'distante'?"
"Algo parecido."
Eles ficaram em um silêncio ambíguo e devastador por alguns segundos.
"Mas você não fala com seus pais?",
"Eu não sei onde eles estão."
"E você não quer procurá-los?"
"Não quero", disse rapidamente olhando para o céu escuro.
"...E o que aconteceu com seus olhos?", perguntou o homem, desviando brevemente o olhar para as cicatrizes opacas no rosto do garoto.
"O Templo que eu atendia foi atacado por terroristas."
"Terroristas?"
"Foi como a Irmã Matsuda os chamou... Mas, pensando agora, chamar alguém de terrorista às vezes é só uma desculpa pra não tentar entender o que aconteceu."
Afinal, o que significa "terrorista"? Algo que causa terror? Pois então, existem vários filmes terroristas! A palavra é confusa e ambígua, mas foi como o Clero os descreveram.
"...Como eram essas pessoas?", o homem insistiu.
"Eram muito estranhas!"
"Como assim?"
Luppo parou de andar. O homem parou também, pouco depois. Ambos ali, no meio da calçada, imersos em memórias sombrias.
"Eu só lembro de uma das pessoas, acho que era um homem, pela voz. Ele tinha uma cabeça de fogo e olhos brilhantes."
"...'Cabeça' de fogo?"
"Na verdade, chamar aquilo de 'cabeça' é ser muito otimista."
"Me conta mais, moleque."
"...Ele usava luvas de metal... e me prendeu numa cadeira. Depois enfiou algo metálico nos meus olhos..."
O homem sentiu o estômago pesar. Quanta maldade, cegar um menino em tenra idade apenas para impor presença, definitivamente deplorável, muito triste.
A intensidade do momento do ataque, junto do nervosismo de estar contando sua história pela primeira vez fez com que Aomine Luppo tivesse dificuldade de lembrar exatamente de um detalhe tão minúsculo, diante de todo aquele cenário... Mas...
"Ah, e ele tinha um distintivo. Em formato de estrela... tipo faroeste."
O homem empalideceu e arregalou os olhos, encarou Luppo e desceu o olhar para o concreto da calçada em seguida. A expressão dele mostrava profunda preocupação. Podemos dizer que foi como ouvir uma "notícia ruim".
O homem passou a mão pelos cabelos, agitado. A calma de antes desapareceu e foi substituída por uma inquietação evidente.
"...O quê?", disse o homem expressando confusão.
"Sim. Uma estrela dourada no peito."
O homem desviou os olhos para o chão. Sua expressão perdeu qualquer vestígio de leveza.
"Eles não apareciam desde cinco anos atrás..."
"Quem?", perguntou Luppo.
O homem não respondeu de imediato. Em vez disso, se alongou e respirou fundo.
"Você já sentiu seu coração queimar?", perguntou com uma voz baixa o rapaz.
Luppo franziu a testa. "...Não."
"É difícil explicar."
"Acho que meu coração está bem, entretanto."
"Bom, depois eu te explico..."
Luppo engoliu em seco. "Mas e os homens com cabeça de fogo... Os corações deles queimam?"
O homem assentiu, devagar.
"Eu temo que sim."
"Eles com certeza eram dos Xerifes."
"Xerifes?", perguntou Luppo.
"Sim. Eles são um grupo muito influente. Se foram até o seu templo, então não foi acidente."
Luppo tocou o rosto com a mão. A pele ao redor dos olhos latejava.
"Você acha que eles colocaram algo em mim?"
"Se colocaram... é porque tem algo aí dentro que nem você sabe o que é."
"Mas eu posso te proteger, Luppo. Só preciso que venha comigo. Há um abrigo, um ponto de resistência. Não é bonito, mas é onde a gente se reúne."
“…Tá bom,” respondeu o garoto, firme, ainda que com o coração disparado.
O homem sorriu, aliviado.
"Ainda está com fome?"
"Estou."
• • •
A pequena loja de lamen era um oásis de luz amarelada em meio à escuridão da noite urbana, com apenas algumas mesas ocupadas.
O rapaz sentou-se e deslizou os hashis entre os dedos com desenvoltura. Seus movimentos eram precisos, contrastando com a hesitação de Luppo, que ainda segurava os hashis de forma desajeitada.
"Não se preocupe com a técnica", disse o rapaz, notando o desconforto do ex-bispo. "O importante é que você se alimente adequadamente. Há quanto tempo não faz uma refeição decente?"
"Quase dois meses, mais ou menos."
"Com licença, eu gostaria de duas tigelas de lámen."
Um senhor de meia-idade com a camisa manchada e barriga avantajada se mostrou através do balcão.
"Com certeza...! Qual seria o tamanho das tigelas?"
O rapaz olhou para Luppo esperando uma resposta, sendo que Luppo não planejava responder ninguém naquele lugar.
"Duas extra-grandes, por favor."
"Saindo!"
Um tempo depois, o mesmo senhor dos olhos gentis chegou com as tigelas. Aproximou-se da mesa, reuniu um pano com as mãos e deslizou-o pela mesa, e logo depois, colocou ambas as tigelas na mesa.
"Muito obrigado."
"..."
"Tome cuidado, moleque, está bem quente!"
Luppo baixou o olhar para a tigela fumegante à sua frente. O aroma rico do missô misturado com o caldo de ossos o fazia salivar, mas algo em seu peito apertava quando pensava em aceitar a generosidade de um estranho. Luppo, de maneira desajeitada, agarrou o macarrão entre os hashis e levou até a boca.
"..."
"Está gostoso?", ele perguntou enquanto deslizava os hashis pelo caldo.
Luppo, sem se desvencilhar dos hashis à tigela respondeu-o balançando a cabeça.
"Bom, eu me chamo Yuudai Reno", disse o homem repentinamente, inclinando ligeiramente a cabeça em cumprimento. "Qual seria o seu?"
Um silêncio confortável se instalou entre eles. Luppo finalmente conseguiu levar uma porção de macarrão à boca, e o sabor explodiu em seu paladar como uma lembrança distante de tempos melhores. Seus olhos se umedeceram, não apenas pela cegueira causada pelo ataque, mas pela emoção de sentir-se humano novamente.
"Luppo", disse monotonamente o garoto que não podia ver.
"Luppo... Hum...", questionou Reno, com voz baixa e cuidadosa.
"Tem algum sobrenome?"
"Aomine."
"Como se escreve seu nome? Por acaso o 'mine' (峰) se refere àquela espécie de flor que cresce perto do Monte Nobushi?"
Luppo negou com a cabeça, com a comida na boca. Logo depois, engoliu a comida, e agarrou um pouco de missô com o hashi e colocou um guardanapo sobre a mesa. Ele começou a desenhar os kanji de seu nome (青峰鷗).
"...Na verdade, o kanji de 'Luppo' significa 'gaivota', mas a mamãe disse que nos meus primeiros meses de vida, eu combinava bastante essas sílabas: 'Ru' e 'Po', e desde então me conheço por isso."
"É um nome legal, 'gaivota azul', por mais que 'gaivotas azuis' não existam."
Luppo riu e passou os dedos pela cicatriz ao redor dos olhos.
O ambiente estava tomado por pessoas conversando, e, pela primeira vez, Luppo tomou a iniciativa para começar um diálogo diretamente.
"Então, depois que eu fui atacado pelo 'Cabeça-de-Fogo', ele queimou meu coração?"
"Provavelmente...", Reno estava mastigando, então pausou por uns instantes, mas antes de falar, ressoou a voz.
"Mas o que realmente mudou dentro de mim agora?"
"Se eu soubesse, já tinha arrancado com um canudo."
"..."
"...Foi uma piada."
"Não parecia."
"Bom, talvez não tenha graça para quando a ameaça é real."
Luppo havia terminado seu lámen, enquanto Reno não estava nem na metade da tigela.
"Você fala como se estivesse acostumado com isso."
"Com o quê?"
"Com gente do coração queimado."
"Não exatamente acostumado. Mas já vi o suficiente pra saber quando está prestes a queimar... Hha, hha...", riu naturalmente.
"E você acha que eu sou um fósforo ou uma fogueira?"
"Você? Você parece um cigarro molhado."
"..."
"Mas já vi cigarros molhados pegarem fogo. Especialmente quando o fumante insiste."
Luppo soltou um leve suspiro.
"Então eu sou o tipo de coisa que os Xerifes caçam?"
"É, talvez. Mas eles não caçam por esporte. Caçam por protocolo."
"Isso não ajuda."
"Não era pra ajudar."
"...E por que você me trouxe aqui?"
"Porque, por algum motivo, eles se deram ao trabalho de mexer em você. Isso já me diz que tem algo errado... Eu achava que eles tinham desaparecido..."
"Você acha que eu sou especial?"
"Eehnn... Eu não diria especial, Luppo. No caminho eu te explico mais, será necessário que você preste atenção."
"..."
Luppo ouviu aquilo e sentiu seu coração acelerar. Ele não sabia exatamente o porquê. Aquilo deveria ser tranquilizante e talvez otimista. Um abrigo, um lugar onde ele pudesse descansar, comer e se esconder desta vida devoradora-de-mundos. Mas havia algo inquietante nas palavras do homem. Por trás da promessa de segurança, havia provavelmente a existência de um preço a se pagar.
Sua mente embaralhada projetava possibilidades. Seria ele uma ferramenta, um alvo ou apenas recurso?
Mas a verdade é que, mesmo com o receio pulsando em sua mente, o sentimento predominante era alívio. Uma possibilidade para ter sentido. Ele estava cansado de de dormir em papelões. O estranho poderia ser qualquer coisa, mas era o primeiro a chamá-lo pelo nome sem desprezo nos olhos, e isso é raro para alguém cego.
Luppo abaixou a cabeça com os dedos ainda tremendo.
O vapor dos bueiros se misturava ao frio da madrugada. Aquela admirável loja de lámen ficava aberta até o nascer-do-sol.
Mas era isso que o homem quis dizer com "coração queimando"?
Era só esperança tentando renascer?
Reno terminou a tigela e limpou os lábios com um guardanapo amarrotado. O dono da loja estava discutindo algo com alguém ao fundo, mas o som parecia abafado.
"Você é péssimo com motivação."
"Bom, não sou professor. Nem irmão mais velho, nem guru. Só um cara com tempo livre e gente errada no encalço."
"Tem muitos como eu?"
"Amanhã, vou te levar até a nossa gente. Você provavelmente vai se sentir mais acolhido lá."
"E o que tem lá?"
"Eu achei que eu já tivesse deixado claro..."
"..."
"Pessoas do coração queimado, ora."
Luppo sentou-se e encostou as costas num banco próximo. Reno sentou-se ao seu lado.
"Que horas você vai dormir?", perguntou Luppo esfregando os olhos.
"A hora que você for, Luppo."
"Como assim? Do jeito que você fala parece que eu vou dormir com você!", ele teceu um sorriso.
"Do que você está falando? Esta pausa aqui é só um descanso para as pernas. Meu apartamento fica a nove quarteirões daqui..."