As ruas de Tóquio estavam silenciosas.
O burburinho da noite havia dado lugar ao zumbido dos postes de luz e aos ecos distantes dos trens da Estação Rurikihana.
Aomine Luppo seguia Yuudai Reno instintivamente e totalmente despreocupado.
Naquele momento, Luppo tinha total confiança sobre Reno, e, de uma maneira ou outra, o via como uma leve figura paternal não-oficializada.
Cada passo exigia esforço, já que suas pernas ainda estavam fracas após semanas nas ruas, mas ele mantinha o ritmo, porque se concentrava no som de Reno à sua frente.
“Você tá acompanhando bem, moleque,” disse Reno, cuja voz carregava um tom leve, quase provocador. “Achei que você ia tropeçar diversas vezes.”
“Eu não sou tão desajeitado,” respondeu Luppo, com a voz rouca, mas com um toque de orgulho, porque queria provar que ainda tinha alguma força.
Reno soltou uma risada curta e Luppo abriu a boca para retrucar, mas parou quando Reno ficou subitamente quieto, porque o som dos passos do homem cessou de repente.
Luppo esbarrou nele, já que sentiu a presença sólida à sua frente.
Ele inclinou a cabeça, confuso, porque notou que o ar parecia mais pesado. Seu coração acelerou, então ele segurou o cachecol com mais força, enquanto esperava um sinal do que estava acontecendo.
"O que aconteceu, Sr. Yuudai...? O quê...?"
Quando parou, Luppo não pôde aguentar encaminhar a cabeça para diversas direções. Quando olhou para cima, mas não tanto, algo em torno de 120º, percebeu um contorno-vivo deformado, no meio de toda aquela escuridão de seus olhos. "O que é aquilo, Yuudai-san?",
Luppo apontou para o contorno térmico. Era uma energia de matizes multifacetadas e multicoloridas, de cores que variavam infinitamente e a todo momento.
“Não olhe, apenas ignore.” sussurrou Reno, com a voz agora séria, porque qualquer traço de brincadeira havia desaparecido. Ele falou baixo, como se quisesse evitar ser ouvido por alguém além de Luppo. “Não se mexa.”
Luppo obedeceu, parando onde estava, porque o tom urgente de Reno fez seu coração bater mais rápido. Ele prendeu a respiração, enquanto tentava entender o que o homem havia percebido.
“Quem é?” perguntou Luppo, mantendo a voz baixa, mas incapaz de esconder o tremor, porque a lembrança do ataque ainda o assombrava. Ele deu um passo para trás, enquanto segurava o cachecol com força, sentindo as mãos tremerem levemente.
“Fique atrás de mim.”
Luppo engoliu em seco, porque seu coração batia mais forte. Ele não podia ver o poste, mas a presença que sentia era clara agora. Uma figura humanoide, imóvel, como um predador esperando o momento certo para atacar. Um calor estranho pulsava em seu peito, não vindo do ar, mas de dentro de si, como se algo estivesse respondendo àquela presença. Ele não entendia o que era, mas a sensação era intensa, então ele levou a mão ao peito, tentando acalmar a pulsação.
“Fique onde está,” disse Reno, com a voz baixa e controlada, porque ele parecia preparado para agir. “E não faça barulho.”
Luppo sentiu um arrepio subir pela espinha, e a voz fria e carregada de um tom de satisfação fazia parecer que o homem estava se divertindo. Ele não podia ver, mas imaginou um sorriso cruel, que parecia intensificar seu medo. O homem no poste riu porque parecia estar confiante.
Luppo ouviu um movimento rápido e a presença em sua mente mudou, porque a figura no poste desceu com um salto. Ele aterrissou na calçada com um baque que fez o chão vibrar sob os pés de Luppo, o garoto recuou instintivamente, tropeçando em uma rachadura na calçada, mas conseguindo se equilibrar.
“Para trás, Luppo!” gritou Reno, enquanto se movia rapidamente.
Yuudai Reno estava na esquina de uma avenida normalmente movimentada, mas devido ao horário, os três eram os únicos ali presentes. O "homem-de-cima-do-poste" tinha uma aparência avassaladora.
Ele segurava uma espécie de cajado, ou uma lança, ou uma mistura dos dois, que brilhava em branco na ponta.
Pareceu uma obra do destino ele encontrar Luppo e Reno, seu olhar era certeiro e medonho.
"Achei você, Bispo Cego... E junto do Maníaco do Papel. Oniri falou que vocês gostavam de andar de madrugada, e olha só..."
Maníaco do Papel?, Luppo se questionou internamente. Seria algum tipo de piada interna? Um apelido desamparado? Luppo estava atrás de Reno, sim, mas extremamente confuso e sem saber o que fazer para ajudar, ou melhor, para não atrapalhar.
Reno, por causa da luz do poste, percebeu algo que reluzia no peito do homem misterioso.
E expremendo os olhos em meio da escuridão da noite, percebeu...
Era um distintivo dourado de estrela.
"O que foi, Reno? Por que está com uma cara tão distante? Nós nos conhecemos há tanto tempo!"
Reno não respondeu. Em vez disso, avançou dois passos e tirou uma folha dobrada do bolso interno da jaqueta. Era fina, mas resistente. Ele a segurou entre os dedos com firmeza.
Este é Rafushi Kin, mesmo, mas ele está tão mais velho quanto da primeira vez que eu o encontrei, em Umisako. Os anos foram cruéis... Ele é um membro dos Xerifes há bastante tempo, um membro muito leal à eles. Ao que parece, ele voltou a atuar em Tóquio, que merda... Ele não é nem um pouco fácil de se lidar..., pensou Reno.
Rafushi vestia um terno de funerais, com tecido preto engomado, contrastando com seu corpo largo e postura de soldado. A gravata estava frouxa, e os sapatos pretos bem lustrados faziam um som duro contra o asfalto. Tinha o cabelo cortado rente à cabeça, e o rosto era quadrado, com traços vincados, um maxilar exagerado e olhos fundos que pareciam analisar o ambiente a todo momento.
O que mais realçava em sua aparência, entretanto, era a brilhante estrela em seu peito, definitivamente.
Rafushi Kin girou a arma branca nos dedos manuseando-a com naturalidade, como se fosse parte de seu braço.
"Você ainda usa eles", debochou Rafushi, girando o cajado.
Reno não respondeu. Dobrou a folha em um padrão preciso e rápido, enquanto a brisa noturna fazia o papel vibrar levemente entre seus dedos.
Rafushi avançou. O primeiro golpe foi direto, uma estocada visando o centro do peito de Reno. Reno girou o corpo para o lado e usou a lateral da mão para desviar a ponta da lança, o impacto gerando um estalo seco no ar. Ele então chutou a base da arma, desequilibrando o inimigo. Kin recuou um passo, e girou o cajado horizontalmente, tentando acertar as pernas de Reno. Reno saltou com os dois pés juntos, girando no ar e aterrissando com leveza.
"Você está mais lento, Rafushi...!", provocou Reno.
Rafushi rangeu os dentes e cravou o cajado no chão, liberando uma rajada de luz branca que explodiu em uma onda sônica.
O concreto sob seus pés rachou.
Luppo cobriu os ouvidos, atordoado.
Reno se jogou para o lado, rolando e se levantando com o papel agora completamente dobrado. Ele apontou para o chão.
"Luppo, se abaixa!"
Ele lançou uma espécie de origami, uma figura aerodinâmica em forma de avião, em direção ao asfalto. Assim que tocou o chão, o papel cresceu. Expandiu, parecendo ter sido inflado por uma força invisível. Em segundos, era grande o suficiente para dois adultos.
Reno agarrou Luppo pelo braço e o jogou dentro da cabine improvisada de papel. Subiu em seguida e bateu o pé contra uma dobra escondida na estrutura.
"Uma fuga?!", exclamou Rafushi. "Você vai continuar escapando dos seus problemas?"
O avião disparou. O som que emitiu era agudo, rasgando o silêncio da madrugada. Ele subiu em uma curva acentuada, fazendo as placas de rua vibrarem com o deslocamento de ar. Rafushi saltou e tentou cravar o cajado na estrutura em fuga, mas errou por um palmo.
"..."
Lá de cima, Reno olhava para baixo com o rosto sério, o vento bagunçando seus cabelos.
Algo em sua cabeça o fazia pensar que ele, de uma maneira ou de outra, havia perdido aquele embate. Não diretamente ou psicologicamente, mas moralmente.
"..."
Enquanto o avião desaparecia em direção ao leste da cidade, os olhos de Luppo não viam, mas sentiam cada curva. O medo ainda estava lá, mas agora, havia também um fio de adrenalina queimando sob a pele.
"UOOOOooou... Isso é um avião de verdade?" perguntou Luppo, tentando manter a calma.
"Se voa, é um avião" — Reno respondeu, controlando as alavancas improvisadas com os joelhos. "...Porém a aerodinâmica não é muito confiável."
"Mas como como isso funciona?", Luppo virou o rosto, mesmo que não enxergasse. "É só papel."
Mesmo que não pudesse ver as dobras e os detalhes do papel, é evidente que ao se sentar sobre o "avião", qualquer um notaria que era papel. Era extremamente estranho. A qualquer momento, Luppo sentia que ia perfurar a estrutura com o peso do corpo e cair do céu, mas de alguma maneira a "carcaça" sustentava.
"Eu o controlo telepaticamente!"
Luppo sorriu e deu um cutucão em Reno.
"Ha, ha! Esta foi sua melhor piada!"
"Não foi uma piada...!"
"...? O quê...?"
Reno respirou fundo, sentindo o ar frio da madrugada encher os pulmões, enquanto uma de suas mãos ainda segurava uma alavanca de papel. Por um instante, ele desviou o olhar do painel de dobras e se voltou lentamente para Luppo.
O brilho fraco da lua filtrava-se pelas janelas do avião, iluminando parcialmente seu rosto marcado pelas batalhas e pelo cansaço. Ele pigarreou, baixando a voz, mas mantendo-a firme, pois sabia que o que ia dizer mudará tudo para o garoto a seu lado.
"Acho que já está na hora de explicar..."
"Luppo. Vou te contar a verdade, mas você tem que prestar bastante atenção."
Luppo franziu o cenho, espremeu os olhos e colocou as mãos atrás das orelhas em formato de concha. Na sua cabeça, escutaria e absorveria as informações mais claramente se fizesse isso.
"...Eu, o homem misterioso que estava nos observando, o próprio cabeça-de-fogo que te machucou no ataque, todos nós temos algo em comum..."
Luppo se inclinou para frente, e enfatizou mais ainda a posição de suas mãos através da orelha. Moveu o quadril e também se ajeitou no "assento" do avião.
"Nós temos os corações queimados."