Embate

Um cargueiro negro, com casco marcado por símbolos riscados à mão, encostou com precisão cirúrgica no Porto de Osagura. Ele não tinha bandeira ou identificação.

Ouvia-se apenas o ruído de correntes e o som da água se chocando contra o concreto.

Três figuras estavam impostas naquele lugar, atrás de duas dezenas (algo em torno disso) de homens em vestes negras, carregando fuzis.

Um homenzinho de boné foi o primeiro a descer do navio.

"Você atrasou treze minutos."

"Sim! Treze minutos! Isto é tempo de sobra!"

"Sim, sim."

"Não, não, Nahebi, permita-me corrigi-lo. Foram doze minutos, uma dúzia."

"Hm, não importa."

Todos estes três indivíduos estavam vestindo uma roupa característica. Ela consistia de uma blusa e um sobretudo por baixo, e cada um deles estava vestindo um acessório inusitado: um cachecol, uma cartola e uma gargantilha, respectivamente. Eles também tinham uma insígnia de estrela presa como um distintivo, então, definitivamente eram Xerifes. E um detalhe, os três indivíduos eram irmãos. Eles são da família Trinidad-Mágia, e descendentes de italianos. Sabe-se que se afiliaram aos Xerifes recentemente, mas que ascenderam cedo e que são Ardentes poderosos.

O homem de boné deu dois passos para fora da rampa metálica. 

"Treze ou doze minutos não importam," disse ele, abanando uma prancheta velha. "Trouxemos aquilo que vocês encomendaram mas a sede mandou um brinde."

"Brinde?" perguntou o de cachecol, com uma voz esganiçada. Seus olhos estavam escondidos sob o brilho vermelho das lentes de uns óculos. Ele se aproximou devagar, girando um bastão telescópico entre os dedos.

O homem de boné assentiu, erguendo uma das mãos. Imediatamente, dois carregadores abriram um dos contêineres. Dentro, havia caixas lacradas com o símbolo da Lumine, uma fabricante dissolvida desde o Tratado dos Fôlegos.

"Quinze rifles fototérmicos, munição condensada e uma maleta com o 'brinde'."

"A sede enviou tudo isso?" Murmurou o de cartola, que falava pela primeira vez. Sua voz era suave, mas o olhar transpassava a alma. Ele se chamava Lugano Trinidad-Mágia, o irmão do meio. Seus olhos tinham o estranho hábito de não piscar e seu cachecol vermelho flamejava mesmo sem vento.

O homem de boné riu, levantando as mãos. "Só Estrelas-Douradas podem abrir."

"É claro que podem," disse Nahebi, o mais velho, e aquele com a gargantilha. Ele carregava dois coldres no quadril, mas era notório por preferir não usá-los.

Um de seus homens se aproximou com um scanner de biometria mas Nahebi fez um gesto de "chega para lá" com a mão, e foi até a maleta. "Não há necessidade de verificação."

Ele retirou seu distintivo e o inseriu num vão em formato de estrela cravado no corpo da maleta. O objeto "leu" as informações presentes na insígnia, o que fez com que pequenos LASERs azuis começassem a se formar no metal.

Nahebi sorriu assim que viu o conteúdo. 

Imediatamente, não era muito interessante.

Depois de alguns segundos de leitura, a maleta lenta e mecanicamente se abriu, e revelou seu conteúdo.

Se tratava de uma adaga curta, com lâmina um pouco desamparada e opaca, de tom azul escuro, quase preta, cheia de fissuras translúcidas. O cabo era coberto por uma manta de couro que parecia antiga, porém intacta. Gravado na base da lâmina havia um símbolo espiralado, com traços que lembravam uma estrela e um olho fechado ao mesmo tempo.

Lugano foi o primeiro a se manifestar, inclinando o corpo para olhar dentro da maleta. Micah arqueou as sobrancelhas, visivelmente encantado. "Então a sede foi generosa?"

"Sim, definitivamente generosa," respondeu Nahebi. "...É um dos Aparatos Divinos."

O nome fez com que todos os soldados armados ao redor olhassem rapidamente uns para os outros. Um item amaldiçoado, um objeto de grande poder. Na verdade, os Aparatos Divinos são um conjunto de oito Estopins, deixados pelos Ardentes lendários que já foram extinguidos.

Quando um Ardente possui muita energia, ela às vezes "transborda" e altera a funcionalidade, o formato, a cor, e a efetividade de um Estopim. Estopins comuns só tem apenas uma função: são um aglomerado de energia, então servem como "injetores", mas alguns Estopins são tão poderosos que podem servir como armas de guerra infalíveis.

"Este é o Estopim de Claire Nuance...", disse Lugano, se aproximando lentamente. "Eu li um pouco sobre isso. Claire Nuance foi uma expedicionária francesa que velejou e vagou por todo o mundo, que reuniu seguidores numa espécie de culto... Dizem que seu Estopim reage com seu portador e pode até matá-lo, mas... Se ele se acostumar, você vira um deus."

"Por que entregar isso a nós?" perguntou Micah, quase ofendido. "Por que não guardá-lo na Torre Celeste, ou fundi-lo com um Estrela-Negra?"

"Covardes mandando monstros pra fazer o trabalho sujo," murmurou Nahebi, com um meio sorriso. "Típico."

Ele então fechou a maleta, travando-a com um estalo seco.

"Vamos manter isso entre nós."

"Claro," disse Micah. "Se os outros Xerifes souberem que temos um Aparato, metade vai querer dividir, a outra metade vai querer matar a gente."

Lugano deu um passo à frente. Sua cartola escondia o rosto em meia sombra, e sua voz soou mais fria do que antes:

"Quando a hora chegar, nós vamos ativá-lo. E quando ativarmos nem os Estrelas-Negras poderão impedir."

Nahebi soltou uma risada breve, seca e cortante.

"Que comece a ruína, então."

"Calma, isso parece um pouco equivocado..." disse Micah, erguendo as mãos, os dedos ainda sujos de poeira da borda da maleta.

"O quê? Vai me dizer que não gosta da ideia de ver esse mundo derreter?"

"Em partes," respondeu Micah, sem hesitar, "prefiro que a gente esteja em posição de controle quando isso acontecer."

Lugano não riu. Continuava parado, imóvel como uma estátua antiga, apenas os olhos atentos sob a aba da cartola.

"Vamos jogar o jogo," disse ele, com voz baixa. "Por enquanto, façamos que eles pensem que estamos dentro."

"E quando não estivermos mais?"

"Quando não estivermos mais," repetiu Lugano, "o mundo já vai ter mudado sem que percebam."

Micah se esticou, girando os ombros.

"Bom... então está decidido. Mas essa adaga não vai ficar com você, né, Nahebi?"

"Claro que não. Seria tolice."

Micah cruzou os braços.

"Você vai esconder?"

"Vou pensar em algo."

"É bom que não a perca, guarde-a trancafiada com sua vida," disse Lugano.

"Lógico."

O barulho das ondas voltou a dominar por um momento, enquanto os três irmãos ficavam em silêncio. Ao fundo, os soldados começavam a fechar os contêineres. Um guindaste antigo se movia lentamente, puxando de volta a escada metálica para o interior do cargueiro.

"Vá logo," disse Lugano, se virando. "Antes que algum Estrela-Prateada curioso dê sorte."

"Ou que algum Estrela-Negra encontre." Micah completou, meio brincando, meio sério.

• • • 

"Eu disse 'ES-QUI-VAR', não 'ES-MA-GAR'!

A voz de Karorina ecoou por todo o pátio do setor três como uma bofetada dada com técnica. Havia um rastro de fumaça, três cones de trânsito destruídos, uma lixeira pegando fogo e Luppo Aomine, com o rosto mergulhado num monte de areia, resmungando em aramaico.

"Eu tentei esquivar," disse Luppo, com a voz abafada e areia saindo do nariz. "Mas minha perna esquerda discordou da direita no meio do processo."

"Você saltou pra cima do robô de treino e depois pulou de cabeça no chão! Que parte disso é ‘esquiva tática’?!"

Reno, sentado sob uma sombrinha improvisada com um copo de chá gelado na mão, soltou uma risadinha. "Dessa vez ele criou uma nova forma de autossabotagem. Eu chamaria de 'ataque suicida espontâneo'."

"Eu ouvi isso!" Luppo se levantou, todo coberto de poeira e com uma luva de treino presa na orelha. "Eu só calculei mal o ângulo. E a física, e talvez a existência de gravidade."

Kariko passava a mão no rosto, frustrada. "Você é o único Ardente que eu conheço que é mais perigoso para si mesmo do que para o inimigo."

"Isso é uma forma de poder também!" Luppo apontou o dedão contra o próprio peito. 

"Isso é burrice genuína!" Kariko e Reno disseram ao mesmo tempo.

Um dos robôs de treino ainda tremia após ter sido atropelado pela sequência de movimentos aleatórios de Luppo, soltando faíscas e repetindo mecanicamente: “Modo de combate encerrado. A morte é uma ilusão. A morte é uma ilus— prrrzt.”

Kariko se virou para Reno. “Por que você me deixou responsável por ele?”

Reno sorveu o chá lentamente. “Porque você disse ‘pode deixar que eu dou um jeito nesse moleque’, lembra?”

“Sim, mas eu achei que ele tinha algum tipo de talento oculto!"

Luppo deu dois passos pra frente, tropeçou no próprio pé, caiu de novo, e dessa vez ficou. "Tá… vou... deixa eu só respirar um pouco."

Kariko bufou e apontou para a escada de corda. “Cinco minutos"

Reno levantou o braço como se estivesse num tribunal. “Objeção. Sem tempo para descanso.”

“Eu rejeito isso.”

“Vou colocar música para tentar aumentar sua auto-estima, Aomine Luppo.”

Reno ergueu uma sobrancelha. “Desde que não seja aquela playlist de ‘Aberturas esquecidas de anime dos anos 90’…”

"Essa é a minha alma, Reno! Minha alma!"

Enquanto Luppo começava a subir a escada de corda ao som de um j-pop de 1998, completamente fora de ritmo e com expressões dramáticas demais pra um treino casual, Kariko olhou para Reno e sussurrou:

“Um dia ele vai morrer tentando abrir uma porta de correr, você vai ver.”

"Fique tranquila, o coração dele já está em chamas. Basta só esperar o fogo se espalhar..."

• • • 

"Todos já chegaram?"

Tóquio é conhecido por suas torres de rádio, mas, por algum motivo, uma torre em específico a nordeste da prefeitura não emitia nenhum tipo de sinal. No alto desta torre, no último andar, janelas pretas e foscas protegiam o interior maculado perfeitamente, e mantinha tudo que tinha de ser escondido preso no ambiente.

A sala consistia de uma mesa redonda completamente branca, com cinco cadeiras espalhadas perfeitamente. Ou seja, num padrão 'pentagonal-perfeito', onde cada cadeira se mantinha equidistante uma para com a outra.

Estavam sentados quatro indivíduos, e um quinto indivíduo acabava de abrir a porta. Se tratava de uma figura esguia e alta com roupas listradas em preto e branco. Quando entrou, não deixou de falar o que tinha para falar.

"Boa noite, meus queridos comparças."

"Azashi, você está atrasado," disse uma mulher loira do corpo curvilíneo. Ela usava uma larga roupa de pele e segurava um leque.

"Ei, ei, por favor, às vezes eu posso me atrapalhar, eu sou humano afinal...," o homem se sentou lentamente, os olhos calmos e observadores. "...Mas antes de tudo sou um homem de negócios..."