“A família mais temida entre os caçadores.”
Esse era o título que os Helsing carregaram por gerações — até Klaus Helsing, o patriarca lendário, desaparecer misteriosamente. Com isso, coube ao filho dele, Azren, assumir o nome e o peso da linhagem. Mas ao contrário de seu pai, Azren não queria seguir as regras de ninguém.
Ele rasgou o acordo com a Aliança das Famílias de Caçadores. Rompeu os laços, fechou os punhos, e decidiu trabalhar por conta própria — como um mercenário, um lobo solitário que caçava criaturas sobrenaturais seguindo seu próprio código. Caçava por dinheiro, por instinto… ou talvez por raiva. Mas a Aliança não estava disposta a deixar a linhagem Helsing correr livre, sem coleira ou supervisão.
E hoje, Sunny Ashwynd, uma das integrantes da aliança, veio bater à sua porta.
Azren estava encostado no batente da imponente mansão Helsing — um casarão antigo e robusto na colina mais alta de Blackriven. A brisa fria da montanha agitava levemente os cabelos negros de Azren.
Ele vestia uma camisa preta colada ao corpo, mangas arregaçadas nos antebraços, revelando algumas contorno firme dos músculos. Seu olhar era sombrio e zombeteiro, como sempre.
A porta de um carro preto de luxo se abriu suavemente. Uma jovem desceu com a graciosidade de uma figura saída de um conto de fadas sombrio. Sunny Ashwynd tinha cabelos loiros perfeitamente penteados, presos parcialmente por uma fita escura. Vestia uma saia xadrez vermelha, botas elegantes e uma camisa preta de mangas longas com botões de prata — um visual casual, quase escolar… exceto pelos olhos.
Olhos azuis como gelo que carregavam firmeza, arrogância e algo indecifrável. Um brilho que deixava claro: por trás daquele visual de princesa, havia uma caçadora letal, uma das mais perigosas do mundo.
— Cai fora daqui, Sunny. Não tô com paciência pra lidar com você princesa — resmungou Azren, cruzando os braços e olhando para ela como quem encara uma tempestade prestes a cair.
Sunny não se abalou. Caminhou até ele como se fosse dona do lugar, os saltos estalando suavemente contra o mármore da entrada. A brisa ergueu suavemente a barra da saia e o perfume dela — doce, mas com algo ácido no fundo — alcançou o caçador.
— Cuidado com o tom, Azren — respondeu, com a voz calma, firme, carregada de algo levemente sedutor. — Ainda estou esperando você aprender como se fala com uma dama.
Azren arqueou uma sobrancelha e deu um meio sorriso torto.
— Dama? — Ele olhou de cima a baixo. — Tudo que eu vejo é uma princesinha mimada… que mata monstros sorrindo como se fosse um jogo.
Zaria sorriu, sem negar a provocação.
— Já sabe por que estou aqui, certo?
— Se fosse pra gente ir pra cama, teria vindo com menos roupa — rebateu ele, sem perder o cinismo.
Sunny suspirou profundamente. Cruzou os braços abaixo dos seios, fazendo-os levantar sutilmente
— Um dia você vai levar um tapa e vai chamar de beijo, Helsing.
— Promete?
Ela balançou a cabeça e virou o rosto por um segundo para esconder o sorriso.
— Vim corrigir a besteira que você fez. A mesma que seu pai jamais teria aprovado.
Os olhos de Azren se estreitaram. O sarcasmo deu lugar a um tom gélido.
— Vai mesmo jogar o nome do Klaus Helsing assim, na minha cara? Meu pai tá morto, Sunny. E com ele, morreu o velho mundo dos caçadores. Agora sou eu quem manda.
Sunny deu um passo à frente e apontou com delicadeza para o colar que mal aparecia sob a gola da camisa preta dele.
— Você pode ser o último Helsing... mas esse símbolo ainda te liga à Aliança.
Azren deu um passo também. Agora, os dois estavam perigosamente próximos. Os olhos se cruzaram e, por um instante, o mundo pareceu prender a respiração.
A empregada que acompanhava Sunny, ainda parada ao lado do carro, desviou o olhar discretamente, constrangida pela tensão palpável entre os dois.
Azren desviou o rosto, soltando um suspiro irritado. Sunny inclinou levemente a cabeça e sorriu, como uma gata que sabia que tinha mexido com o cachorro errado — ou certo.
— Você sabe que eu trabalho melhor sozinho — disse ele, finalmente. — E, sinceramente, meu velho não morreu por acidente. Aquilo... foi estranho. E eu vou descobrir o que aconteceu. Mas do meu jeito.
Sunny o olhou em silêncio por um momento. A brisa moveu os cabelos dela. Por um instante, não havia caçadora nem mercenário — apenas duas almas com cicatrizes diferentes, mas conectadas pelo sangue e pela dor.
— A Aliança pode te ajudar com isso — disse ela, agora com a voz mais baixa, quase doce, como se estivesse tentando alcançar o coração que jurava não ter.
Azren suspirou e levou a mão até a nuca, coçando levemente como quem segurava o peso do mundo nos ombros. Fechou um dos olhos, cansado.
— Sabe, Sunny... — começou, com o tom carregado de sarcasmo contido — não sei por que se importa tanto. Vocês só me querem porque eu carrego o sobrenome Helsing. Se eu fosse só mais um caçador qualquer, você não estaria aqui... não agora, não assim.
Ela arqueou uma sobrancelha, o rosto corado pelo frio e... talvez por algo mais. Mordeu levemente o lábio inferior antes de responder.
— Hã? — retrucou, quase ofendida, mas sem perder a postura. — Eu me preocupo com você, idiota! A gente cresceu junto... eu, você, Marek, o Nikolas. Acha mesmo que eu tô aqui por obrigação?
A voz dela falhou um pouco no fim da frase, e Azren percebeu. Pela primeira vez, ela parecia estar lutando com o próprio orgulho. Algo brilhou nos olhos dela — raiva, sim, mas misturada com algo mais profundo. Vulnerabilidade, talvez?
Então ela se aproximou.
Mais um passo e seus corpos quase se tocaram. Os olhos de Sunny estavam fixos nos dele. Bastava uma palavra errada ou um movimento impulsivo, e o momento viraria algo totalmente diferente.
— Eu quero os Helsing de volta na Aliança — murmurou, com firmeza. A voz mais baixa, mas carregada de tensão. — E não aceito um “não” como resposta.
Azren apenas a encarou por um segundo. Um sorriso preguiçoso surgiu no canto da boca.
— Não.
A palavra saiu firme, seca, como se não pesasse nada.
Sunny estreitou os olhos, então — com um estalo repentino — pisou forte no pé direito dele.
Mas Azren mal piscou.
Ele ergueu uma sobrancelha com desdém e, com um peteleco rápido na testa dela, a fez dar dois passos para trás, com um leve arquejo de surpresa.
— Boa tentativa, princesa — disse ele, girando o dedo indicador no ar. — Mas pisar no pé de um caçador... é tipo uma picada de mosquito. Só irrita.
Sunny massageou a testa com um resmungo frustrado, e lançou um olhar fulminante para ele.
— Cala a boca e me deixa pensar um segundo, Helsing.
Azren deu uma risada baixa, aquela que vinha do peito e tinha um toque rouco, quase provocante.
— Desiste, Sunny... A família Helsing não volta pra Aliança. Eu jogo pelas minhas regras agora.
Sunny abriu a boca, pronta para rebater o comentário provocativo de Azren, mas uma estática vinda do rádio do carro interrompeu sua resposta.
— “Ataques de cães infernais estão ocorrendo agora no centro de Blackriven...”
O som cortante da transmissão emergencial preencheu o ar. Assim que ouviu, Sunny girou nos calcanhares, o salto de seu coturno batendo firme no chão de pedra. Seu andar era ágil, mas ainda carregava aquele ar de realeza que parecia inato nela.
— Vai enfrentar os Cães do Inferno sozinha? — Azren questionou, encostado no batente da porta, com um meio sorriso cínico. — Por que não chama um dos seus amiguinhos da Aliança pra segurar tua coroa enquanto luta?
A empregada abriu a porta do carro com precisão ensaiada. Sunny se acomodou no banco com elegância e, antes que a porta se fechasse, lançou um olhar por sobre o ombro.
— São só cães infernais, Azren — disse ela com desdém, os olhos azuis faiscando desafio. — Eu não preciso de babá.
Azren arqueou uma sobrancelha, o sorriso zombeteiro permanecendo.
“Garota orgulhosa...”
O pensamento veio como um reflexo, carregado de ironia e uma pontinha de admiração.
Ele observou em silêncio enquanto a empregada entrava no banco do motorista, ligava o motor e arrancava. O carro girou os pneus sobre o cascalho da entrada com um guincho agressivo antes de desaparecer estrada abaixo, rumo à cidade que já escurecia.
Azren soltou um suspiro pelo nariz e entrou na casa, o cheiro familiar de madeira envelhecida e fumaça de lareira impregnando o ar. vestiu o longo casaco branco de tecido reforçado com detalhes escuros nas mangas e gola por cima da camisa preta que usava. O peso das pistolas em seus coldres ocultos encaixava-se como uma extensão natural do corpo.
Seus olhos pousaram sobre a lareira, onde a espada de prata da família Helsing repousava no suporte acima do fogo apagado. O brilho frio da lâmina refletia as chamas inexistentes de batalhas passadas.
Ele a encarou por um momento. Silêncio.
— Nem em um milhão de anos — murmurou, desviando o olhar com um aperto nos lábios.
Passos firmes o levaram até a garagem nos fundos da casa. Lá dentro, tudo coberto com panos grossos e esquecidos: ferramentas, um carro e, sob um lençol manchado de poeira, sua moto.
Com um puxão rápido, o pano caiu revelando uma moto esportiva preta, agressiva e elegante. O design era limpo, quase militar, com detalhes metálicos vermelhos discretos.
Azren passou a perna por sobre o banco, girou a chave e o ronco grave do motor ecoou pela garagem. A vibração percorreu o chão até os ossos.
— Sempre tentando bancar a heroína sozinha, sua teimosa... — Azren resmungou com um meio sorriso torto enquanto girava o acelerador da moto.
A porta da garagem se abriu com um rangido metálico, e antes mesmo que subisse totalmente, Azren já havia disparado. A moto negra cortou o ar como uma sombra viva, saltando da rampa com um ronco grave que ecoou pela propriedade.
O vento atingiu seu rosto com força, bagunçando ainda mais os cabelos pretos e fazendo o casaco branco esvoaçar atrás de si como asas de um anjo caído. Azren inclinou o corpo para frente, sentindo o motor vibrar sob ele como se a máquina compartilhasse da sua pressa.
Um sorriso se desenhou em seu rosto — aquele sorriso arrogante e perigoso de quem não liga pro inferno, mas ainda assim corre de cabeça nele pra salvar quem precisa.
Mesmo fora da maldita Aliança, deixar Sunny lidar com Cães Infernais sozinha não era uma opção.
— Tomara que ela tenha trocado aquela sainha xadrez no caminho... — murmurou, quase rindo.
Ao adentrar os limites de Blackriven, as luzes da cidade piscaram em vermelho e alaranjado. Sirenes uivavam à distância e carros atravancavam as ruas, alguns parados, outros em pânico. Azren cortava por entre eles com habilidade quase sobrenatural, como se dançasse no caos.
O velocímetro subia. 160. 170.
Ele inclinou a moto e passou por baixo de um caminhão, os pedais raspando no asfalto por milímetros. A adrenalina bombeava como uma velha amiga. Era isso que ele fazia de melhor.
— Vamos, vamos... — disse entre dentes, os olhos negros fixos no horizonte em chamas. — Se aqueles filhos da puta encostaram nela...
As mãos apertaram o guidão com força. A cidade o engoliu por completo.
E Azren acelerou como se o próprio inferno estivesse esperando na próxima esquina.
Azren virou a esquina em alta velocidade e, no instante seguinte, avistou Sunny em plena ação. Ela disparava com precisão contra um bando de criaturas negras — cães do inferno com olhos incandescentes, corpos musculosos e deformados, como pitbulls esculpidos em puro ódio. A aura maligna deles fazia o próprio ar vibrar.
— Bonitinha com raiva — murmurou Azren, abrindo um sorriso debochado enquanto avançava ainda mais.
Sem hesitar, ele jogou a moto contra um dos cães que rugia em sua direção. O impacto foi brutal. O corpo da criatura se retorceu no ar, esmagado pelo aço e lançado contra um poste tombado, que atravessou seu peito com um estalo grotesco.
Azren freou a moto com um chiado, derrapando em meio às brasas do asfalto rachado. A fumaça subiu ao seu redor como se o inferno inteiro tivesse vindo dar boas-vindas.
— Opa... atropelei alguém? — disse com um sorrisinho torto, os olhos semicerrados brilhando com diversão.
Sunny, que já se preparava para um novo ataque, congelou por um segundo ao ouvir a voz.
— Azren...? — disse, surpresa, quase aliviada.
Ele respondeu com uma acelerada rápida, fazendo o motor rugir e atraindo a atenção dos demais cães infernais.
— Então é isso? O dono de vocês largou a coleira hoje, é? — zombou, encarando os monstros com aquela calma provocadora que só deixava tudo ainda mais insano. — Bora dar uma voltinha, cachorrinhos. Vem comigo. Vamos brincar.
Com um giro firme no guidão, a moto deu meia-volta, os pneus gritando no asfalto. Os cães rosnaram em uníssono, seus olhos sangrentos fixos em Azren, e partiram atrás dele como demônios sedentos.
Sunny permaneceu parada por um instante, piscando, confusa e um pouco hipnotizada.
— Ele salvou a minha pele... — murmurou, mas o sorriso no canto dos lábios a denunciava. — mas tenho que admitir...ele manda bem.
O rugido do motor se distanciou entre as vielas destruídas, seguido pelos latidos infernais. Azren havia se tornado a isca perfeita.