Capítulo 6 – Caça

A luz da manhã invadiu o quarto pelas frestas da persiana, cortando o ambiente com lâminas douradas. Azren abriu os olhos devagar, franzindo o cenho. Esticou o braço para o lado, esperando encontrar um corpo quente sob os lençóis — mas só encontrou o vazio. Nem o calor dela havia restado. Apenas o lençol amassado, e um leve cheiro de perfume doce que começava a desaparecer.

Ele se sentou, soltando um suspiro pesado. O silêncio estava... errado. Morana havia sumido. Como um fantasma.

Levantou-se, calçando uma calça de moletom escura jogada sobre a cadeira, e foi em direção ao espelho do quarto. Parou de súbito. Havia marcas roxas em seu pescoço, como se garras tivessem tocado com carinho — ou fome. Mas o que realmente chamou sua atenção foi o pequeno ponto de sangue seco no braço, na dobra do cotovelo. Um furo discreto. Como o de uma agulha.

— Que merda é essa? — rosnou, o tom baixo, rouco, carregado de fúria contida.

Girou os olhos para a cama. Manchas escuras de sangue tingiam o lençol branco como um lembrete de que a noite anterior tinha sido tudo, menos romântica. Ele passou a mão pelo queixo e soltou um riso seco, sem humor.

— Sabia que ela tava com aquela cara de quem queria mais do que um beijo de boa noite...

Vestiu-se com rapidez. Caminhou até o guarda-roupa e puxou de dentro o casaco longo de caçador — preto e branco, com corte militar e cauda esvoaçante, digno de alguém com o sobrenome Helsing. Ele o vestiu como quem veste sua verdadeira pele. Em seguida, desceu as escadas.

Ao passar pela lareira, pegou a Grim, agora fria ao toque, e a prendeu às costas com um giro natural, como se fizesse parte dele. Abaixou-se, destravou um compartimento secreto embutido nas pedras e retirou suas pistolas. Ambas reluziam com um brilho metálico sob a luz da manhã, esperando por sangue. Carregou-as nos coldres e então se dirigiu até o móvel abaixo da TV.

Puxou uma gaveta, tirou um pequeno comunicador e encaixou-o na orelha direita com um clique seco.

— Hora de sair pra brincar.

Na garagem silenciosa, Azren puxou o pano grosso que cobria a moto. A pintura negra da carenagem refletiu a pouca luz do ambiente como se sorrisse para ele. Era uma máquina feita para caçadores — e para malditas perseguições.

Ele subiu na moto, girou a chave com um estalo e o motor rugiu baixo como uma besta impaciente. Com um clique no comunicador no ouvido, ativou o canal compartilhado.

— Acordem aí, seus dorminhocos — resmungou, enquanto acelerava de leve. — Temos um problemão.

— Azren...? — as vozes de Marek e Nikolas surgiram quase em uníssono, ainda sonolentas.

— A filha da puta da Morana veio aqui ontem à noite. Me seduziu... e roubou meu sangue — disse ele, sem rodeios. A porta da garagem começou a se erguer lentamente.

Silêncio.

— Então... cê não tava querendo dar, e ela só foi lá e pegou? — respondeu Nikolas, com a voz baixa, quase envergonhada. — Meio que... entendo o ponto dela.

— Vocês estavam por trás disso, por acaso? — Azren já estava nas ruas, costurando entre os carros com a moto roncando alto. O vento bagunçava seus cabelos escuros.

— Claro que não! — respondeu Marek de imediato, a voz séria. — A ideia foi dela, cem por cento. A gente nem sabia.

— Nunca teríamos armado algo assim — disse Nikolas, num tom mais contido. — Morana faz o que quer. Você sabe disso.

— Tsc... Quando eu encontrar aquela sanguessuga com cosplay de vocalista de banda gótica, vou dar uma bala entre os olhos dela — rosnou Azren, acelerando ainda mais. — Alguma ideia de onde ela pode estar?

— Bom... — Marek pigarreou. — Tem aquele bar no distrito da mansão Galli. O antro onde as criaturas da noite gostam de beber e fingir que têm classe.

— Aquele maldito bar encravado entre os becos da zona escura? — Azren virou bruscamente à esquerda sem nem reduzir a velocidade. — Perfeito.

— Sim. É aqui perto. A gente estava considerando... dar fim àquele lugar — disse Nikolas, hesitante.

— Relaxa. Vou passar lá agora. Se Morana estiver nesse covil, vou encontrá-la. E aí, irmãos... o show recomeça.

Em um piscar de olhos, Azren reduziu a velocidade e parou a moto em frente ao bar. O prédio parecia abandonado — fachada suja, tijolos lascados, janelas cobertas por tábuas podres. Um letreiro antigo pendia torto, piscando uma luz avermelhada com a palavra “Refúgio”. Nada mais irônico.

Ele puxou o descanso lateral da moto com o pé, desmontou com um giro do corpo e ficou ali por um instante, observando os dois lados da rua. O silêncio pesado era quebrado apenas pelo som distante da cidade viva — buzinas, pneus na chuva e o murmúrio constante de Blackriven.

Sem pressa, Azren atravessou a rua e empurrou a porta do bar.

Assim que entrou, o ambiente congelou. Os olhos de todos se voltaram para ele como garras afiadas na penumbra. O lugar era sufocante, cheio de fumaça e cheiro de álcool barato, misturado com algo mais... selvagem. Criaturas que pareciam saídas dos piores contos de horror se encontravam ali: vampiros de olhos pálidos, succubus de sorrisos afiados, seres disformes e peludos escondidos sob mantos. E todos pararam para encarar o estranho de casaco branco e preto.

Azren deu um passo à frente com a naturalidade de quem entra num café qualquer. Seus olhos negros vasculharam o ambiente, até encontrarem uma mulher na penumbra, linda demais pra ser real. Ela sorriu. Seus olhos se tornaram negros como poços sem fundo.

Ele sacou as pistolas com um giro casual e apontou uma delas para o teto.

BANG!

A explosão ecoou como um trovão. Poeira caiu do teto rachado. Todos estremeceram.

— Seguinte, seus desgraçados — disse Azren, com a voz firme, rouca e carregada de desprezo. — Tô atrás de uma meia-vampira estilo gótica, olhos de quem já matou e beijou na mesma noite. Nome dela é Morana.

Um homem alto se ergueu de uma das mesas. Corpo largo, olhos dourados que faiscavam de raiva. A pele começou a se esticar, pelos surgindo como uma doença viva. Ossos estalaram como galhos quebrando. O rosnado que escapou da garganta do monstro parecia o som de algo amaldiçoado acordando.

— O caçadorzinho acha que tem moral pra mandar aqui? — disse o lobisomem, a voz já tomada pela transformação.

Azren nem piscou.

Ele estendeu a pistola para o lado, sem tirar os olhos do alvo. Um disparo limpo. A bala atravessou o crânio da criatura, jogando a cabeça dele violentamente para trás. O corpo caiu sobre a mesa, derrubando garrafas e copos. Silêncio mortal.

Azren soprou a ponta da pistola e girou-a de volta para o coldre.

— Agora sim. Vamos tentar de novo. — Seus olhos percorreram cada rosto ali. — Onde. Tá. A Morana?

— Calma aí, gato — disse uma voz suave e gélida, como o vento que precede uma nevasca.

Azren virou lentamente o rosto em direção ao balcão.

Encostada ali com uma postura descontraída, estava uma mulher de beleza etérea. Cabelos longos e negros como a meia-noite escorriam por seus ombros pálidos. Ela vestia um kimono branco que parecia feito de neve recém-caída. Sem tirar os olhos dele, ela soprou levemente sobre um copo de cerveja. O ar que saiu de seus lábios gelou o líquido em segundos.

— Uma Yuki-onna em Blackriven... — murmurou Azren, arqueando uma sobrancelha.

— Senta aí, caçador — disse ela com um meio sorriso. — E guarda essas armas lindas. Prometo responder o que quiser, desde que não atire em mim.

Azren suspirou, mas manteve o olhar fixo nela. Caminhou devagar até o balcão, se sentou e cruzou os braços. A Yuki-onna virou-se de costas para ele, puxando uma garrafa âmbar e dois copos.

— Você tem cara de quem bebe whisky — comentou, enchendo um dos copos com precisão elegante.

— Não vim aqui pra beber com fantasmas gelados — retrucou Azren, a voz seca.

— Relaxa. É por conta da casa. — Ela estendeu o copo com os dedos finos. Estalou os dedos e dois cubos de gelo cristalinos se formaram dentro da bebida. — Aquele lobisomem que você estourou o miolo sempre foi irritante. Tava me devendo três noites de paz.

Azren pegou o copo, estudou o líquido âmbar por um segundo e então tomou um gole.

— O que uma criatura do folclore japonês tá fazendo tão longe de casa?

— Muitos de nós vêm pra Blackriven. A energia espiritual aqui é intensa, carregada... viva. — Ela sorriu, inclinando a cabeça. — Mas não se preocupe, sou só uma empresária cansada. Não tenho planos de sequestrar humanos pra levar pra uma caverna de gelo.

Azren soltou um riso rouco, curto.

— Já ouvi uma história sobre uma Yuki-onna que se apaixonou por um caçador. Casaram, tiveram filhos... mas quando ele descobriu a verdade, ela disse que se ele não cuidasse bem das crianças, voltaria pra matá-lo.

— Sempre achei essa lenda comovente — disse a Yuki-onna, os olhos azul-claros cintilando. — E caçadores ocidentais são tão... intensos. E bonitos. Pode me chamar de Yuki.

— Neve... combina com você — respondeu Azren, tomando mais um gole. — Então, Yuki... sabe onde posso encontrar uma meia-vampira chamada Morana?

— Faz dias que ela não aparece por aqui. — O tom da mulher mudou sutilmente, mais sério. — Meia humana, meia vampira... ninguém confia muito nela nesse lado da cidade.

— Não ouviu nada sobre o paradeiro dela?

— Por que tá atrás da Morana, caçador?

Azren girou o copo nas mãos, o gelo tilintando suavemente. Seus olhos, escuros como breu, fitaram os dela.

— Ela roubou algo bem precioso meu. E eu quero de volta. Com juros.

Yuki sorriu, mas dessa vez com um ar de curiosidade perigosa.

— Que sorte a dela… e azar o de quem mexe com algo que pertence a um Helsing.

— Criaturas japonesas sabem sobre os Helsing? — Arzen perguntou, apoiando um cotovelo no balcão, o olhar afiado fixo na mulher de gelo à sua frente.

— Quem não conhece a linhagem Helsing? — Yuki respondeu com um sorriso enviesado, girando o copo de uísque entre os dedos. — Dizem que cruzar com um é como assinar sua certidão de óbito. A morte chega antes mesmo de você entender o que te matou.

— E ainda assim você tá viva. — Arzen arqueou uma sobrancelha, seu tom carregado de ironia.

— Porque sei quando manter distância... e quando fazer acordos. — Ela encostou o copo no balcão e apontou o dedo na direção dele, com um movimento lento e elegante.

— Conhece o bairro oriental, caçador?

— Já ouvi falar. — Ele se endireitou na cadeira, os olhos atentos.

— Três lendas resolveram dar as caras por lá: Kuchisake-onna, Hachisakusama e Hanako.

— O trio maldito. — Azren bufou, puxando o copo de uísque para si. — Caçadores japoneses tentaram barrar elas com mantras e selos budistas. Não deu muito certo.

— Estão aqui em Blackriven agora. — Yuki cruzou as pernas devagar, a voz baixa e gélida como a aura que a cercava. — Pedi ajuda às famílias locais, mas estão ocupadas demais... ou covardes demais. Um Helsing, por outro lado...

— Tá tentando me alugar como exterminador de yokai, é isso? — Arzen deu um sorriso enviesado. — Não sou barato, boneca do gelo.

— Então vamos negociar. — Ela se inclinou levemente, os olhos fixos nos dele. — Se você eliminar essas criaturas e proteger meu bar de retaliações das famílias, eu te dou algo que você quer. Informações sobre a Morana. E mais... viro sua informante pessoal.

— Estranho uma yokai querer ver outras criaturas mortas. Ainda mais duas almas vingativas e uma semi-deusa do inferno urbano. — Arzen girou o gelo no copo, desconfiado.

— Porque eu vivo aqui, Helsing. E alguns humanos que entram neste bar... também. — Yuki ergueu o queixo. — Eu sirvo saquê importado direto do Japão. Eles vêm atrás disso, e da paz. Essas... coisas estão estragando o equilíbrio.

— Hm. Três fantasmas do folclore japonês tocando o terror em Blackriven... — Ele sorriu, o olhar cortante. — Parece uma terça-feira comum.

— Vai aceitar o trabalho, caçador? — ela perguntou, com a voz sedosa.

— Já aceitei. — Arzen se levantou devagar, o casaco preto e branco balançando com seu movimento. Ele virou-se na direção da porta e soltou, sem olhar para trás:

— Mas se seu saquê for ruim... eu volto aqui só pra matar você.

Azren saiu do bar e o ar da rua tocou seu rosto como um tapa frio.Ele caminhou até sua moto estacionada do outro lado da rua, as botas ecoando sobre o asfalto molhado.

Com um toque no comunicador preso à orelha, ele ativou a frequência dos caçadores.

— Mudança de planos. Cancelem a destruição do bar. — disse, enquanto subia na moto e puxava o descanso com o pé. — É gerenciado por uma Yuki-onna bem... simpática.

— Arzen Helsing sendo gentil com uma criatura? — a voz de Nikolas veio carregada de ironia. — Acho que ouvi os quatro cavaleiros selando os cintos.

— Cala a boca, Nick. — Arzen respondeu com uma risada seca. — Me diz uma coisa, tão afim de caçar três lendas urbanas japonesas?

— Vai. Me convence. — Marek respondeu com seu tom calmo, mas curioso.

— Aquelas figuras clássicas. A mulher da boca rasgada, a gigante de dois metros que leva crianças e a do banheiro da escola. Tudo isso, aqui em Blackriven. Bairro oriental.

— Então você desistiu da Morana? — Nikolas perguntou, mais sério agora.

— Desisti nada. Só tô fazendo um favorzinho em troca de informações. Yuki, a gerente do bar, disse que me entrega o paradeiro da morceguinha se eu limpar o terreno pra ela.

Azren ligou a moto e o ronco grave do motor preencheu o silêncio da rua. Ele ajustou o casaco preto e branco no ombro.

— Tão dentro ou vão ficar em casa vendo filme ruim na televisão?

— Estamos dentro. — disseram Nikolas e Marek em uníssono.

— Beleza. Me encontram no bairro oriental, às sete da noite. Vou passar em casa antes. Café, carne e um pouco de silêncio.

A moto arrancou, deixando para trás o eco metálico do escapamento enquanto Arzen desaparecia na avenida — o vento levando com ele a fumaça de raiva, frustração e adrenalina.