Poeira em Silêncio

Kael despertou devagar, sentindo a quietude da caverna ao seu redor. O ar estava pesado, impregnado daquele cheiro úmido e mineral que só lugares antigos tinham. Terra, rochas, poeira acumulada por séculos. Ao abrir os olhos, a luz filtrada por pequenas frestas na pedra iluminava partículas flutuando lentamente, quase como se o próprio ar estivesse impregnado de silêncio e segredo.

Ele ainda sentia o eco do sonho estranho que o visitara durante a noite. Um sonho feito de tremores e murmúrios, um som distante que parecia vir do próprio coração da terra, profundo e firme. Não era um sonho comum, mais um presságio, uma mensagem sussurrada entre as pedras.

Com a mão trêmula, Kael tocou o lado esquerdo do rosto. Sentiu as “sarnas de diamante” ali, como uma presença secreta, tão antigas quanto o mundo. Pequenas fissuras translúcidas, quase imperceptíveis para um olhar desatento, cortavam sua pele com delicadeza, refletindo a luz da caverna como se fossem fragmentos de cristal embutidos sob sua carne. A pele parecia pulsar, quente, como se as marcas tivessem uma vida própria, uma energia sutil.

Desde pequeno, ele aprendera a esconder aquilo. Entre os mineradores de Gaedia, as marcas eram sinal de algo incomum — mistério, medo, talvez até uma maldição. Os mais velhos falavam que quem as tinha estava marcado pela terra para sempre, mas que esse fardo era uma sentença de isolamento. Por isso Kael passava horas limpando barro e poeira do rosto, cobria as fissuras com camadas de lama seca para que ninguém as visse. Era a única maneira de passar despercebido.

Naquela manhã, no entanto, algo diferente aconteceu. Enquanto descarregava as ferramentas pesadas do caminhão, o velho Tragg se aproximou silenciosamente. Seus passos eram leves, mas firmes. Tragg era uma figura respeitada na vila, com rosto marcado por anos de trabalho e olhos que pareciam ter visto tudo o que a terra podia esconder.

Kael sentiu seu olhar pesado pousar sobre ele, direto no rosto. Por um instante, Tragg ficou imóvel, como se tivesse reconhecido um segredo antigo, enterrado sob as marcas brilhantes. A respiração do homem parecia mais lenta, quase reverente. O silêncio se espalhou ao redor, denso, quase palpável.

— Você nunca me falou sobre isso — disse Tragg, sua voz baixa e cuidadosa, como se não quisesse assustar o próprio ar.

Kael desviou o olhar, o coração batendo acelerado. Ele engoliu seco e tentou manter a voz firme:

— Não é algo para se falar. Não para nós.

Tragg olhou para ele por mais um instante, depois suspirou e assentiu.

— Talvez seja hora de mudar isso. O chão anda inquieto, garoto. Sinto isso no ar e nas pedras.

Kael sentiu um arrepio subir pela espinha. Lá fora, a terra sussurrava. Um tremor quase imperceptível fez as paredes da caverna vibrarem, e a poeira levantou em pequenos redemoinhos, dançando no ar imóvel.

O jovem minerólogo virou-se para a entrada da caverna. A luz do sol já começava a se infiltrar timidamente, revelando as cores profundas da floresta que cercava a vila. Um ambiente que parecia parado no tempo, mas que agora mostrava sinais de despertar.

Ele se lembrou das histórias que ouvira desde criança: de seres antigos que habitavam o subsolo, guardiões silenciosos de uma era esquecida. Os chamados Oremons, criaturas feitas de pedra, cristal e metal, que se ligavam à energia viva do planeta. Coisas que os mineradores só mencionavam em sussurros, como lendas ou superstições.

Mas Kael sabia que havia mais. Algo dentro dele pulsava em sintonia com esses mistérios — as marcas em seu rosto eram a prova viva disso. Ele era diferente, e isso o assustava.

Tragg voltou a falar, a voz firme e calma:

— As sarnas não são uma maldição. São um sinal, Kael. Um elo entre você e a terra que ninguém mais entende.

Kael sentiu um peso crescer dentro do peito. Finalmente, alguém reconhecia o que ele sentia, sem medo ou rejeição. Mas junto disso veio o medo do que aquilo significava. Qual era seu verdadeiro lugar nesse mundo? Que caminho lhe aguardava?

O velho minerólogo continuou:

— Não és o único com esse fardo. Mas essa é uma responsabilidade que poucos têm coragem de assumir. A terra está mudando, e com ela, a necessidade de quem a entende. De quem pode escutar seus murmúrios.

Kael olhou para as mãos, ásperas e sujas de pó, e depois para o rosto marcado. Por um instante, tudo pareceu fazer sentido, como se o sonho daquela noite finalmente encontrasse uma tradução.

— O que eu devo fazer? — perguntou ele, em voz quase inaudível.

Tragg sorriu, um sorriso triste e sábio.

— Por enquanto, escute. Sinta a terra. E quando ela chamar de verdade, você saberá. Mas não estará sozinho.

Kael sentiu o chão tremer levemente sob seus pés outra vez. A poeira levantou, e o silêncio da caverna parecia se transformar em uma promessa.

A jornada, pensou ele, estava apenas começando.