Ela estendeu a mão. Um gesto simples.
E naquele toque havia redenção.
Seus dedos longos e suaves cruzaram o espaço entre nós com a calma de quem não tem pressa. A pele dela era morna como sol da manhã, e sua palma aberta parecia conter um universo inteiro — não um de estrelas, mas de acolhimento, de resposta sem palavras.
Então, com uma voz doce e um sorriso no rosto, ela disse:
— Olá!
Simples assim.
Como se me conhecesse há muito tempo.
Como se eu tivesse apenas me atrasado para o chá.
Meus olhos se prenderam aos dela — olhos vermelhos como o pôr do sol sobre um campo de girassóis.
Não havia julgamento ali.
Não havia pena.
Apenas uma profunda, inabalável compaixão.
Meu coração, já dilacerado por tantas perdas, tremeu.
Minha garganta se fechou como se as palavras fossem estilhaços. Senti o gosto salgado de algo que não escorria, mas estava preso: um choro engasgado há anos, uma represa de dor que nunca me permiti romper.
— Eu… — tentei dizer, mas minha voz falhou.
Tive que engolir o silêncio antes de tentar de novo.
— Eu… eu estou morto?
As palavras me pareceram tolas assim que saíram. Tão pequenas diante da grandiosidade do que meus olhos viam, tão insignificantes diante da suavidade com que ela me olhava. Era como perguntar à chuva se ela molhava.
— Isso é o céu? — continuei, quase num sussurro, como se falar mais alto fosse quebrar o encanto.
Ela inclinou levemente a cabeça, o sorriso ainda ali, mas sem pressa de responder. Como se soubesse que a resposta não era tão importante quanto o estado de quem pergunta.
— Ou… estou sonhando? — perguntei mais uma vez, com a voz embargada. — Isso é um sonho, não é? Um daqueles sonhos que vêm antes da morte, ou depois dela... eu... não pode ser real.
Olhei ao redor — os girassóis dançavam com o vento. A luz tocava minha pele sem queimá-la. Os sons eram como lembranças de músicas esquecidas na infância.
Meus olhos voltaram aos dela.
— Eu não mereço estar aqui. — confessei por fim.
E dessa vez a dor subiu até os olhos, e o choro, finalmente, ameaçou cair. — Eu… deixei todos morrerem. A guerra... Minha irmã... meus homens... eu falhei... tantas vezes...
Minha voz se despedaçou.
Mas ela não recuou.
Não me corrigiu.
Não me interrompeu.
Apenas continuou com a mão estendida, como quem oferece não só conforto — mas perdão sem exigência, sem lógica, sem justificativa.
E então disse, com a mesma calma:
— E mesmo assim… você está aqui.
Aquelas palavras me desarmaram mais do que qualquer arma que um inimigo já empunhou.
E eu cedi.
Meus cotovelos tocaram a superfície quente da mesa de madeira clara.
A dor e a beleza daquele momento me esmagavam de uma forma nova, desconhecida.
Não como a dor da guerra — mas como a dor de reencontrar algo que se havia esquecido que existia:
Paz.
Mais uma vez ela tocou na minha mão e no toque dela, senti uma verdade sem voz que sussurrava:
"Você não está mais sozinho".
Após me acalmar, perguntei com apreensão:
— O que será de mim agora?
O vento se acalmou. O campo de girassóis pareceu suspender o tempo.
Então, se levantou da cadeira e com os olhos vermelhos fixos nos meus — ela falou.
A voz dela não era feita de som apenas.
Era feita de ecos antigos, como se falassem através dela mil corações, mil vidas, mil mortes.
Como se, ao escutá-la, eu me lembrasse de algo que nunca vivi… e ainda assim sempre soube.
— Eu sou Perséfone.
— A Deusa da Morte. A Inevitável.
Uma das Sete que foram tecidas no primeiro sopro do Criador, Ao.
Ela soltou minha mão com suavidade, mas os olhos ainda me seguravam.
— Desde muito antes da sua queda, antes mesmo do primeiro disparo naquela guerra suja dos homens, eu te observava.
Não como um deus observa um inseto…
Mas como um jardineiro observa uma semente enterrada sob a lama.
— Você, mais do que qualquer outro, entendeu a morte.
Não como uma sentença. Não como punição.
Mas como um espelho.
Ela levantou-se e deu um passo ao lado, os girassóis se abriram ao seu redor como se os próprios ventos a obedecessem.
— Vi sua alma ser esculpida entre explosivos e fuzis.
Vi sua fúria, sua culpa, seu amor silencioso por sua irmã, seu desejo de carregar o mundo nas costas só para poupar alguém da dor.
Vi você matar, mas também vi você carregar os mortos nos olhos.
Você não virou pedra por dentro como os outros.
Você sangrou por dentro… e não endureceu.
Ela então se sentou na cadeira vazia à mesa debaixo do guarda-sol. Não como uma imperatriz, mas como uma amiga cansada de esperar.
— Você pertence ao mundo dos vivos…
Mas serviu à Morte com mais verdade do que qualquer professor, qualquer guerreiro ou assassino.
Você não fugiu dela. Não a ignorou. Não a adorou cegamente.
— Você a entendeu.
Silêncio.
Os girassóis giravam suavemente com o vento.
E então, como quem entrega um segredo sagrado, ela disse:
— Tenho uma oferta: eu quero que você seja meu Apóstolo.
— Não servo.
— Não peão.
— Não mártir.
Ela inclinou a cabeça com um olhar que misturava afeto e solenidade.
— Um Apóstolo da Morte Viva, como dizem os cantos esquecidos do início.
Aquele que caminha entre mundos e sussurra nos ouvidos dos moribundos.
Aquele que não leva… mas guia.
Aquele que não mata… mas revela.
— Há um equilíbrio que precisa ser restaurado.
E o tempo dos mortais se aproxima de um abismo do qual poucos retornarão.
A Morte… precisa de voz. De gesto. De presença.
— Precisa de você.
Ela então estendeu a mão novamente — segurando uma maçã — não mais apenas com compaixão…
Mas agora como quem sela um pacto eterno.
— E eu lhe prometo…
— Se você aceitar, não estará sozinho.
— Porque até na morte…
há vida.
Ela segurava a maçã entre nós como quem segura o fio do destino.
Seu vermelho era vivo, como se pulsasse — quase um coração exposto, prestes a ser dividido. E, de certo modo, era exatamente isso: uma partilha entre dois mundos, dois reinos, duas vontades que convergiam num único gesto.
Perséfone me fitava com aquela serenidade antiga. Os girassóis sussurravam ao vento, as cores ao redor pareciam mais vívidas do que qualquer sonho que eu já tivera. E ainda assim… eu hesitava.
— Eu… — minha voz falhou, e um nó tomou minha garganta. — Eu enterrei tantos.
Tantos.
Homens.
Amigos.
Culpados e inocentes.
— Como posso ser eu o escolhido para representar aquilo que me dilacerou por dentro?
Ela não respondeu com palavras, mas com presença.
Olhos vermelhos como crepúsculo que viu demais.
Lábios imóveis, mas compreensivos.
Uma Deusa… que não julgava, mas acolhia.
— Você não foi escolhido pela perfeição, — disse ela, enfim, com voz suave, baixa, e eterna.
— Foi escolhido pelas cicatrizes.
— Só quem foi quebrado tantas vezes e continua a caminhar entende o peso de guiar os outros.
— A Morte não precisa de pureza.
Ela precisa de alguém que conheça a queda.
E que ainda escolha levantar-se.
Ela ergueu a maçã entre nós.
Segurando com ambas as mãos.
— Este é o pacto.
— Mordido ao mesmo tempo.
— Não há dominação.
— Não há hierarquia.
— Apenas dois destinos… que se encontram.
Engoli em seco.
Senti o gosto da terra nos pulmões.
O eco da guerra nas costelas.
O choro da minha irmã nos ouvidos.
Mas também senti o cheiro da infância no ar.
O vento do campo.
Girassóis se curvando ao redor de nós como se rezassem.
Eu respirei.
E lentamente… me aproximei.
Nossos rostos ficaram a poucos centímetros de distância.
Olhos nos olhos.
Ela segurava a maçã com uma delicadeza ritual.
Como se soubesse o que esse momento significava desde antes da criação dos mundos.
— No fim… — sussurrei, com lágrimas nos olhos, — …eu só queria salvar alguém.
— Nem que fosse só a mim mesmo.
Ela assentiu.
Como se dissesse: Você já salvou mais do que imagina.
Então, juntos, inclinamos a cabeça.
E mordemos a maçã ao mesmo tempo.
A casca se rompeu sob os nossos dentes com um estalo seco — mas naquele som havia trovões de criação.
As bocas se encontraram na polpa úmida.
E por um instante, foi como se nos beijássemos através da eternidade.
O suco da maçã escorria quente, doce, carregado de algo que não era deste mundo.
Ferro, mel, luz, sombra, memória, destino.
Tudo ali.
Tudo entre nossas bocas, como um selo antigo finalmente refeito.
E então…
Tudo mudou.
O campo brilhou em um dourado mais profundo.
As flores se curvaram como se estivessem diante de um rei coroado.
O ar tremeu — como se o próprio tecido da realidade respirasse.
E dentro de mim, algo despertou.
Não era mais só dor.
Era poder.
Era propósito.
Era a Morte… estendendo a mão.
E eu… segurando-a de volta.
O suco da maçã ainda estava fresco na minha língua quando o mundo pareceu… respirar dentro de mim.
Foi diferente de tudo o que eu já havia sentido.
Não era como a dor física de um corte.
Nem como o calor de uma explosão.
Era algo intenso, invisível… como se uma centelha ancestral tivesse sido reacendida em minhas entranhas.
De repente, senti meu peito vibrar, como se o próprio ar estivesse pulsando através de mim.
Meus dedos tremeram, não de fraqueza, mas de algo primal, antigo — como se eu tivesse acabado de colocar a mão em um rio subterrâneo de energia que corre sob todos os cemitérios do mundo.
— O… que é isso? — perguntei ofegante, levando a mão ao peito.
Havia um brilho escuro sob a pele, como se sombras líquidas fluíssem lentamente pelas veias.
— É mana?
— Mana preta?
Perséfone não respondeu de imediato.
Ela apenas sorriu, como alguém que observa uma criança dar os primeiros passos… em meio a um campo de espadas.
— Sim.
— E não.
Ela se aproximou, parando ao meu lado, seus pés descalços flutuando levemente sobre os girassóis.
— É mais do que mana.
— É a essência da morte.
— O que você sente é o sangue do mundo morto correndo pelas suas veias.
— Você não é apenas um usuário de magia negra agora…
— Você é magia negra.
— Você é meu Apóstolo.
As palavras dela vibraram dentro de mim como sinos em uma cripta sagrada.
— Você foi tocado pelos três Aspectos da Morte, — continuou ela, agora com um tom mais sério, quase litúrgico. — Cada um reflete uma parte de mim… e de você.
Ela ergueu a mão e, ao redor de nós, três símbolos negros se materializaram no ar como brasões flutuantes, rodopiando lentamente: um olho devorador, um espelho de obsidiana, e asas prateadas cobertas de sangue seco.
— O primeiro é o Aspecto do Devorador.
— Ganância e Gula.
— Você poderá invocar Ceifadores — criaturas além da carne, olhos que veem até a alma.
— Mas cuidado. Eles se alimentam de sua fome… e ela nunca mais será saciada.
— Você vai comer mais do que nunca. Vai desejar mais ouro, mais armas, mais… tudo.
— E se não se vigiar… você se tornará aquilo que devora.
Senti meu estômago roncar. Literalmente.
E percebi, com horror cômico, que um desejo súbito por carne assada com molho apareceu na minha cabeça — mesmo que eu tivesse acabado de “morrer”.
— O segundo… é o Aspecto do Belo.
— Luxúria e Orgulho.
— Sua presença será irresistível. As pessoas vão te seguir, te amar, te desejar.
— Especialmente as mulheres.
Fiz uma careta.
— Mas… eu já era bonito antes — resmunguei, quase como defesa automática.
Ela riu.
— Agora você é perigoso até para mim.
— A parte ativa desse aspecto permite que você solidifique a mana morta — transformar pensamentos escuros em matéria negra.
— Lâminas, armaduras, sombras vivas…
— Mas há um preço.
— Você não conseguirá resistir aos avanços de nenhuma mulher que você ache atraente.
— E seu orgulho exigirá que você seja o herói… mesmo quando isso te levar à ruína.
Arregalei os olhos.
— Tá de brincadeira, né?
Ela apenas sorriu. Cruel e doce.
— O terceiro… é o Aspecto do Anjo da Morte.
— Preguiça e Inveja.
— Você poderá voar.
— Se teleportar para onde seus olhos alcançarem.
— Escapar, caçar, aparecer atrás de reis e Deuses como o próprio destino.
Ela então se inclinou, o olhar agora mais sombrio.
— Mas vai sentir a necessidade de ser o melhor.
— Sempre.
— Não poderá tolerar ser superado.
— Sua inveja será um espinho invisível no seu coração.
— Ótimo. — murmurei. — Um faminto, mulherengo orgulhoso e competitivo com problemas de ego.
— Exatamente o tipo de pessoa que devia… representar a morte.
— Exatamente. — ela respondeu, séria.
— Porque a morte… conhece cada fraqueza.
— E ainda assim, se move.
— Mesmo quando está cansada.
— Mesmo quando quer desistir.
Olhei para minhas mãos.
Sombras sutilíssimas dançavam na pele, como tatuagens vivas.
Três marcas começaram a se formar: uma mandíbula faminta na palma direita, uma rosa escura no pulso esquerdo, e um par de asas entre as omoplatas.
Fechei os olhos.
Tudo estava prestes a mudar.
E eu…
Eu ainda era o mesmo.
Só que agora, o mundo ia ter que lidar com o Apóstolo da Morte.
Ela me observava em silêncio, os olhos rubros como dois sóis gêmeos se pondo em um céu de outono. A brisa no campo de girassóis era morna, como o hálito de um verão morrendo devagar.
Então ela falou, com gentileza:
— E qual é o seu nome, Apóstolo?
Meu coração estremeceu.
Eu abri a boca… e não saiu nada.
A garganta secou. A mente embaralhou.
Vinham imagens, rostos, sangue, vozes… mas meu nome?
Nada.
Eu franzi o cenho, como alguém tentando se lembrar de um sonho que evaporou ao abrir os olhos.
E então, sussurrei:
— Eu… não me lembro.
Ela assentiu, como se aquilo fosse esperado.
— Um refluxo póstumo — disse, sua voz carregada com a leveza do saber eterno. — A morte limpa mais do que o corpo.
— Ela também desfaz os fios que te prendem à tua história… por um tempo.
— Mas seu nome não está perdido.
— Ele apenas está… dormindo.
— Dormindo… — repeti, ainda desconcertado, como se o som das palavras me arranhasse por dentro.
— Com o tempo — ela continuou, agora caminhando em minha direção —, as memórias voltam.
— Algumas como sopros… outras como trovões.
— E o seu nome… também retornará.
— Quando você estiver pronto para carregá-lo de novo.
Me sentei sobre o campo, deixando os girassóis tocarem meus braços como dedos infantis.
— Eu… estudei isso uma vez. — falei baixinho. — Os pecados, os aspectos… tudo isso está relacionado aos sete vícios capitais, não?
— Mas... há apenas seis até agora.
Ela parou.
Por um instante, o vento cessou.
O campo pareceu prender a respiração.
Até os girassóis se voltaram para escutar.
Foi então que ela disse, com um leve sorriso enigmático:
— A Ira... sou eu.
Meu corpo inteiro reagiu.
Um arrepio escalou minha coluna como um animal desperto na escuridão.
— A Ira? — repeti, quase num sussurro.
— Sim.
— O último aspecto não é uma dádiva externa…
— É a semente que eu plantei em você ao mordermos juntos a maçã.
— Dorme em seu sangue.
— Em seus ossos.
— Em sua dor.
Ela ergueu o braço, e por um breve instante, vi atrás dela asas de sombras, como um eclipse em forma de mulher.
Ela era bela, sim, mas de uma beleza que poderia queimar o mundo.
— A Ira — disse — é o Aspecto da Própria Deusa da Morte.
— Ele não apenas aumenta seus atributos físicos conforme seus sentimentos se elevam...
— Ele permite que você continue lutando mesmo quando estiver à beira do esquecimento.
— Seu corpo se curará das piores feridas.
— Mesmo que sua alma já tenha partido.
Fiquei em silêncio. Aquilo era... poder demais.
— E o preço? — perguntei, finalmente. — Qual é o defeito?
Ela me fitou por um longo momento.
Depois, com um tom mais baixo, quase maternal, respondeu:
— Esse… é um segredo.
— Você saberá quando chegar a hora.
Engoli em seco.
Por alguma razão, essas palavras foram mais pesadas do que qualquer arma que já carreguei.
O campo de girassóis seguia dourado ao redor de nós.
Mas eu já não era apenas um homem perdido.
Algo dentro de mim… despertava.
Como um rugido afogado vindo de um abismo esquecido.
E eu não sabia ainda se era minha salvação.
Ou minha condenação.
Eu me aproximei dela — Perséfone — como um homem que se aproxima de um abismo que conhece bem demais. Seu olhar vermelho ainda estava cravado em mim, terno e paciente, como o de alguém que já testemunhou todas as mortes possíveis.
Minha garganta estava seca.
As palavras vieram com dificuldade.
— Por quê?
Ela inclinou a cabeça, curiosa, como se não esperasse que eu perguntasse tão cedo.
— Por que eu?
— Por que me observar por tantos anos?
— Por que... me dar tanto poder?
Minha voz falhou no fim, embargada por um terror silencioso.
Não era o medo de morrer. Já morri.
Era o medo de ter sido escolhido.
Nada é de graça. E eu aprendi isso da forma mais cruel.
Por um longo momento, ela nada disse. O vento cessou, os girassóis congelaram como pintura.
Quando ela falou, sua voz era como o som de um sino distante ecoando por séculos.
— Uma pergunta justa.
Ela se afastou alguns passos, deixando suas vestes esvoaçarem como um fragmento de noite em pleno dia.
— Milênios atrás — começou — havia apenas o Vazio.
E do Vazio, brotou um pensamento.
Um sonho.
Um desejo.
Ela ergueu uma das mãos. Do céu, filamentos de luz e sombra desceram como fitas dançantes.
— Esse desejo deu forma ao primeiro Deus: Ao, o Criador.
Ele não era bom.
Não era mau.
Era... origem.
Vi as fitas girando, formando o contorno de uma figura colossal, sem rosto. O Criador.
— Para equilibrar a Criação, Ao dividiu-se em Sete Partes.
Sete ideias.
Sete possibilidades do feminino.
Sete deusas.
Cada uma com uma porção da natureza que Ele mesmo não compreendia.
Ela voltou-se para mim e, com um estalar de dedos, figuras surgiram ao redor:
translúcidas, douradas, negras, prateadas. Divinas.
— Das que seguem o bem:
— Amara, a Deusa da Vida, fonte de cura e esperança.
— Ísis, a Deusa da Magia, guardiã dos segredos cósmicos.
— Apollo, a Deusa dos Animais, essência dos elfos, dos homens-fera e da floresta eterna assim como todas as criaturas que nela habitam.
— Das que abraçaram o mal:
— Moradina, a Deusa das Riquezas, que ensinou os anões a medir o mundo em ouro.
— Athena, a Deusa da Guerra, nascida do sangue derramado no silêncio.
— Astarot, a Deusa dos Dragões, que sonha em ver o mundo arder sob suas chamas.
Ela então colocou a mão sobre o próprio peito.
— E havia... eu.
— Perséfone.
— A Deusa da Morte.
— Neutra.
— O espelho do fim.
— O julgamento final.
Meu coração bateu mais forte. Senti a pulsação nas têmporas. Estava entendendo. Ou tentando.
— Mas por que... me escolher?
Ela se aproximou, devagar. Como se atravessasse séculos com cada passo.
— Porque você é o primeiro homem... que abraçou a morte sem desejar o fim.
— Você a enfrentou tantas vezes que ela te reconheceu.
— Você a dominou sem saber.
— E acima de tudo, você nunca fugiu dela.
— Nem quando era jovem e viu seus pais morrerem sem sentido.
— Nem quando segurou o corpo da sua irmã nos braços.
— Nem quando condenou seus homens... e caiu sozinho no campo.
Minha respiração falhou. Senti os olhos marejarem.
Ela continuou:
— Ao me criou para julgar.
— Mas ao olhar para o mundo que Ele fez... percebi um erro.
Um longo silêncio.
— Ele criou o mal.
— Criou o livre-arbítrio, sabendo que levaria ao egoísmo.
— Criou a beleza, sabendo que geraria orgulho.
— Criou a vida, sabendo que inevitavelmente ela traria a dor da morte.
— E ainda assim... me deu o cargo de julgá-lo.
— E como julgar aquilo que me criou?
Ela olhou para o céu, com raiva contida.
— Minha neutralidade me impediu.
— Então me calei e desapareci.
— E foi no meu silêncio... que as trevas floresceram.
— As Deusas malignas se uniram.
— E quando Ao enfim tentou desfazer sua criação… elas se voltaram contra Ele.
— Antes de sua essência ser apagada, Ao selou seu poder.
— Em um local esquecido.
— Um poder que só pode ser acessado por um Apóstolo de uma das Sete Deusas.
— Eu escolhi você.
O ar parecia ter parado. Cada girassol agora se curvava como em reverência.
Eu, um soldado, um irmão, um fracassado — escolhido para algo que ultrapassa eras.
— Mas por quê?
— Porque quando o selo se romper... os Apóstolos das Deusas más também tentarão reivindicá-lo.
— E o mundo será novamente engolido por fogo, ambição, ganância e guerra.
— Eu não preciso de um herói.
— Preciso de alguém que viu o abismo.
— Que entendeu o peso da perda.
— E mesmo assim... continua de pé.
— Você, meu Apóstolo, é a minha última esperança de justiça.
Ela ergueu a mão. E senti meu peito queimar.
Uma lembrança me atravessou.
O gosto de sangue.
O choro da minha irmã.
O eco de gritos no campo de batalha.
O último olhar de um soldado que confiava em mim.
Me ajoelhei. Não por submissão. Mas porque não conseguia mais ficar de pé.
Ela se aproximou.
E então ela falou, como se pronunciasse o início de um novo tempo:
— Um Apóstolo não é um servo.
— É um espelho.
— Um eco da minha vontade.
— Um arauto da Morte que julga o mundo.
A compreensão dessas palavras chegaram em mim, do pacto, de tudo que significava e no final a maçã em minha mão ainda pesava. Como se contivesse não só o pacto, mas o próprio universo comprimido em sua casca escura e brilhante. Eu a sentia pulsar, como se tivesse um coração próprio — talvez o meu — agora alterado para sempre.
As palavras de Perséfone ecoavam em minha mente como ecos de um oráculo distante, reverberando entre os cacos da minha alma remendada.
“Um Apóstolo não é um servo. É um espelho. Um arauto da Morte que julga o mundo.”
Mas o que isso significava, na prática?
Eu olhei para a palma da mão, onde corria agora um fio fino e escuro de energia, como um rio negro sob minha pele. Uma névoa leve de mana flutuava ao meu redor, sem forma ainda, mas viva.
Instintivamente, percebi que ela me obedeceria. Que ela me conhecia.
Um sussurro escapou de minha boca, a voz quase rouca de um renascido:
— Como eu uso isso?
— Como eu domino... os poderes da morte?
Perséfone sorriu. Não com condescendência, mas com o tipo de ternura amarga que só quem observa há séculos pode oferecer.
— Você não está pronto.
— Ainda não.
— Os Aspectos que agora vivem em você... são sementes. E sementes precisam ser regadas com conhecimento, desafio, dor e domínio.
— Mas antes de qualquer passo… antes de aprender a devorar, seduzir ou voar… você precisa entender o mundo que o cerca.
— Precisa de contexto, de conhecimento prévio. Sem isso, seus poderes serão como lâminas cegas brandidas por um cego.
Ela girou o pulso no ar, e como se o próprio tecido da realidade se abrisse, um véu de névoa se ergueu ao nosso redor, revelando vislumbres de terras esquecidas, cidades em ruínas, montanhas flutuantes e abismos sem fim. Um mundo que não era o meu — ou talvez fosse, depois da morte.
— Este lugar onde estamos agora, o campo de girassóis, é o meu domínio.
— Uma dobra entre mundos, onde tempo e espaço se curvam à minha vontade.
— Eu criei esse refúgio além da vida e além da morte, para abrigar aqueles que merecem... ou necessitam... de algo além do fim.
Ela fez uma pausa, observando minha expressão atônita, como quem esperava a resistência da mente que ainda se agarra ao que era humano.
— Aqui, escondidas em camadas profundas da realidade, existem três almas.
— Três espíritos que eu mantive vivos, íntegros, conscientes... por milênios.
— Eles não foram escolhidos ao acaso. São mestres.
— Cada um carrega dentro de si o conhecimento bruto, acumulado, das eras passadas.
Ela apontou para o leste, onde as pétalas dos girassóis pareciam inclinar-se com reverência.
— O que te ensinará o aspecto da Luxúria e Orgulho era um mago combatente do mundo antigo, que tocou os véus da existência com mãos de ébano e língua de ouro. Ele te ensinará o que é mana e como conjura-la para fortalecer seu corpo e mente.
— Ele não é gentil. Mas sabe que sua existência depende de você.
Depois, para o oeste:
— O outro foi um historiador das eras esquecidas, um espírito que viu civilizações nasceram e se afogarem no próprio orgulho.
— Ele conhece as leis do mundo espiritual, as regras entre os Deuses e mortais, o equilíbrio que resta quando tudo se parte.
— Ele lhe ensinará os aspectos da Preguiça e Inveja, a história do mundo e como conjurar magia para fora de seu corpo.
E finalmente, ao sul:
— A última alma... foi uma assassina.
— Silenciosa, calculista, cínica.
— Ela compreende o que é matar e morrer... com sentido, sem sentido, com culpa, sem remorso.
— Ela te ensinará os aspectos da Ganância e Gula e como lidar com o fardo da Morte. Não a poder... mas a responsabilidade.
Ela voltou o olhar para mim com intensidade:
— Você aprenderá com eles antes de tudo.
— Só então poderá caminhar pelas três trilhas dos Aspectos.
— Não subestime essa parte, Apóstolo.
— Força sem sabedoria gera monstros.
— Poder sem contexto gera tiranos.
A névoa ainda dançava em torno de mim como um véu diáfano, e as últimas palavras solenes de Perséfone ainda ecoavam na minha mente como um hino esquecido. As revelações tinham sido muitas — os mestres, os aspectos, o pacto, o destino do mundo — e eu mal conseguia respirar diante do peso daquilo tudo. O campo de girassóis girava como um mar dourado à minha volta, mas mesmo a beleza celestial parecia distante, abafada pela avalanche de emoções e perguntas sem resposta.
Foi então que ela mudou.
Perséfone, a Deusa da Morte, a entidade imortal que regia os ciclos da finitude e que havia me tocado com um poder ancestral, relaxou. Seu semblante, até então majestoso e imperturbável, suavizou. As linhas de seu rosto se tornaram mais suaves, e o brilho em seus olhos vermelhos perdeu o peso do julgamento divino e se acendeu com algo... mais próximo. Mais íntimo. Mais humano.
Ela respirou fundo, quase como se estivesse se libertando de um papel antigo.
— Ei… — disse ela, sua voz agora mais suave ainda, mais doce, com uma ternura que me pegou desprevenido — acho que já é hora de deixar um pouco de lado essa coisa toda de “Deusa enigmática e distante”, não é?
Ela riu baixinho, quase envergonhada, e seu sorriso parecia capaz de aquecer até mesmo os ossos frios de alguém que já morreu.
— A introdução acabou. O discurso sagrado também. Agora… posso ser só eu. Só Perséfone.
Seus olhos encontraram os meus, e pela primeira vez eu vi ali algo mais profundo do que compaixão divina. Era algo caloroso, próximo. Como se ela estivesse… feliz por eu estar ali.
— Eu estive observando você por muito tempo. Muito mais do que você pode imaginar. Vi as batalhas que travou… dentro e fora de si. Vi sua dor, sua força, suas falhas. Vi sua solidão, seus silêncios. E por tudo isso… eu escolhi você.
Ela se aproximou devagar, como quem não quer assustar um animal ferido. E talvez fosse isso que eu era. Um espírito perdido em sua própria carcaça de lembranças e responsabilidades não cumpridas.
— Eu estarei com você sempre que vacilar, sempre que o mundo parecer prestes a te esmagar. Sempre que o peso for demais. Não apenas como Deusa… — seus olhos brilharam, e havia ali um calor que me desarmava — mas como alguém que se importa com você. De verdade.
Minhas pernas fraquejaram um pouco, e senti o nó na garganta subir de novo. Tentei conter, mas o olhar dela parecia atravessar todas as minhas defesas.
Ela sorriu mais uma vez, doce e leve, como uma brisa de primavera.
— E não se preocupe em morrer, tá bem?
Eu franzi o cenho, confuso.
— Como assim?
— Bem… — ela deu um passinho para o lado, pegando o caule de um girassol e girando-o entre os dedos — você já está morto. Oficialmente, tecnicamente… espiritualmente.
— Então se, por acaso, acontecer de você “morrer de novo”... — ela fez aspas com os dedos, divertida — você só vai... voltar. Eu mesma vou puxar você de volta, entende?
Ela soltou o girassol e estendeu a mão para mim, não com solenidade, mas com gentileza, como quem convida alguém a caminhar por um bosque tranquilo.
— Eu te dei poder, sim. Mas não dei para você carregar sozinho. Esse caminho... não precisa ser solitário.
Por um instante, senti o peito aquecer, mesmo sem um coração que batesse. Aquela mulher — Deusa, criatura eterna, guardiã da morte — falava comigo como se eu fosse... importante. Como se, em meio a toda aquela eternidade silenciosa, eu fosse o detalhe que ela mais esperava ver florescer.
— Agora vá — sussurrou ela, com um carinho indescritível na voz. — Conheça o mundo, seus mestres, suas sombras. E quando tudo parecer demais... feche os olhos.
Ela encostou levemente os dedos nos meus, e murmurou:
— Eu estarei lá. Sempre.
Então, com um leve gesto da mão, ela se afastou, os girassóis abrindo espaço ao redor dela como se o próprio campo a adorasse. Sua silhueta sumiu aos poucos na luz dourada.
E pela primeira vez… depois de tanto tempo…
Eu me senti vivo.
Olhando para os três caminhos que Perséfone havia traçado para mim. Leste. Oeste. Sul. Três direções. Três almas. Três aspectos da morte — e da vida que eu levaria a partir dali.
Respirei fundo. O perfume das pétalas me lembrava minha infância… e o peso do momento me lembrava que eu já não era mais aquele menino.
Para o leste, os girassóis se curvavam como fiéis diante de um altar invisível.
— “O que te ensinará o aspecto da Luxúria e Orgulho era um mago combatente do mundo antigo...” — as palavras de Perséfone ainda estavam frescas na minha mente.
A ideia de controlar a mana negra, de moldá-la, solidificá-la, canalizá-la para o corpo... Era fascinante. Aquilo era o alicerce do meu novo ser. A própria estrutura da magia negra. Se eu quisesse sobreviver, teria que entender esse poder. Não era só sedução e força: era domínio, carisma, controle.
Mas…
— “Ele não é gentil. Mas sabe que sua existência depende de você.”
Isso soava como um aviso. Um mago antigo, tocado pela escuridão e pela glória, provavelmente via o mundo com uma arrogância que desafiava até os Deuses. O tipo de mestre que ensina te quebrando. Que exige reverência antes mesmo de ensinar. Um teste constante de orgulho — tanto dele quanto meu. Ir até ele agora, tão cru, tão recém-nascido nesse mundo, talvez fosse como mergulhar em mar revolto sem aprender a nadar.
A oeste, o horizonte era sereno. O campo parecia suspirar, e as pétalas dos girassóis, ali, não se curvavam… mas pairavam, imóveis, como se esperassem pacientemente.
— “O outro foi um historiador das eras esquecidas...”
— “Ele conhece as leis do mundo espiritual, as regras entre os Deuses e mortais...”
Havia algo nesse caminho que me atraía como um espelho. A promessa de compreender. De ter respostas. De olhar para tudo isso — a morte, os Deuses, os pecados — e ver as linhas por trás do bordado.
O historiador parecia ser o mais... racional. Talvez o mais gentil. Ou talvez o mais cansado.
Ele me ensinaria sobre a Preguiça e a Inveja, sim… aspectos perigosos. Mas havia sabedoria ali. A capacidade de teleportar-se e voar. Liberdade. Mobilidade. Poder contido em silêncio. E o conhecimento sobre as leis dos mundos...
Afinal, eu precisava entender o jogo antes de jogar, não?
Mas também... talvez fosse fácil me perder nesse conforto. Nessa ideia de observar mais do que agir. A Preguiça podia me fazer esquecer que eu precisava lutar. E a Inveja... bem, ela corrói por dentro, mesmo quando se está ganhando.
Ao Sul, o vento era seco, cortante. Como uma lâmina. O campo de girassóis parecia menos florido naquela direção. Mais... vazio. Solitário.
— “A última alma... foi uma assassina.”
A forma como Perséfone disse isso... como se ela a temesse. Ou a admirasse. Ou ambos.
— “Ela compreende o que é matar e morrer... com sentido, sem sentido, com culpa, sem remorso.”
Essa mulher carregava Ganância e a Gula. Poder bruto. Invocar ceifadores — entidades sombrias que eram mais instinto do que intelecto. Havia força ali. O tipo de força que me protegeria. Que me permitiria esmagar os inimigos antes que me esmagassem.
Mas...
Aquele era o caminho mais escuro. O mais instintivo. O mais perigoso. E eu não sabia se confiava o que restava da minha alma a alguém que havia matado tanto que já não distinguia arrependimento de aceitação.
Fechei os olhos.
Respirei o cheiro de terra, de sol, de flor. E fui honesto comigo mesmo.
Eu precisava entender. Antes de agir. Antes de reagir. Antes de queimar.
Antes de poder usar meu poder… eu precisava saber o que ele era.
Abri os olhos e falei, quase num sussurro:
— Oeste.
Perséfone não apareceu. Não houve trombetas, nem sussurros mágicos. Apenas o leve tilintar do vento balançando as flores, como se elas aprovassem minha escolha.
E então, eu comecei a andar.
Para o Oeste.
Rumo ao homem que lembrava do que o mundo havia esquecido.
Rumo ao aspecto que escondia a verdade por trás da névoa.