Historiador Onisciente

Caminhando entre os girassóis que se estendiam como um mar dourado sob um céu límpido, o aroma doce das flores misturando-se com um leve frescor no ar. Cada passo fazia o campo sussurrar, e meu coração acelerava, pulsando com uma ansiedade que não me permitia ignorar o que estava por vir. O silêncio do campo era ao mesmo tempo reconfortante e ameaçador — uma calma antes da tempestade do conhecimento.

À minha frente, uma trilha estreita serpenteava até uma construção que parecia não pertencer àquela paisagem onírica. A estrutura simples, quase modesta, contrastava com a vastidão vibrante dos girassóis ao redor. Aproximando-me, senti o peso do momento esmagar meus ombros: era ali que o primeiro mestre me aguardava.

Minhas mãos tremiam levemente ao tocar a maçaneta fria da porta de madeira. Inspirei fundo, tentando ancorar meus pensamentos. A porta rangeu ao ser aberta, revelando um ambiente inesperado — uma sala universitária clássica, com assentos elevados dispostos em semicírculo, iluminada por uma luz natural que parecia filtrar-se de janelas invisíveis, parecia ser maior por dentro do que por fora.

No centro, de olhos fixos em um quadro negro onde seu nome estava escrito em caligrafia firme e precisa, estava ele: Oliver von Fell. Seu cabelo preto encaracolado caía de forma desordenada sobre a testa, e a barba por fazer lhe conferia um ar de quem vive mais nas ideias do que no mundo ao redor. De seu cachimbo, não saía o cheiro comum do tabaco, mas uma fumaça densa, roxa, que parecia pulsar com a essência pura da mana — um aroma estranho, quase hipnótico, que carregava a promessa do poder que eu buscava.

Vestia um terno marrom, pesado e bem ajustado, marcado por cotoveleiras de couro que davam um toque rústico ao blazer, como se estivesse preparado para batalhas tanto intelectuais quanto físicas.

Meus olhos encontraram os dele, e naquele instante soube que não seria um professor qualquer — aquele homem era o guardião das leis invisíveis que sustentavam tudo. A ansiedade tornou-se curiosidade e, por trás dela, um fio de esperança.

A aula, ou talvez o teste, estava prestes a começar.

O silêncio da sala foi interrompido por um estalo seco — o som da bengala de Oliver von Fell batendo no chão, ainda que ele não precisasse dela para se sustentar. Era mais um adereço, um símbolo de teatralidade calculada. Ele ergueu os braços como um maestro à frente de uma sinfonia invisível e abriu um sorriso torto, como se já soubesse cada passo da conversa que ainda não havia começado.

— Ah, meus caros leitores! — exclamou com voz clara, reverberante, como se falasse com mais do que apenas a mim. — Sejam bem-vindos a mais um capítulo de uma história tão absurda quanto inevitável. E vejam só, o protagonista finalmente chega à sala...

A surpresa me atingiu de forma tão sutil quanto um relâmpago. Fiquei paralisado por um momento, encarando aquele homem que, pelo jeito, desafiava completamente a rigidez da sua aparência. Esperava erudição formal, citações de tom sepulcral, talvez um sermão sobre o fardo do conhecimento ancestral — mas não aquilo. Ele não era um oráculo; era um contador de histórias. Um dramaturgo.

— Vocês sabem, há sempre algo poético em um recém-nascido da morte entrando em uma sala de aula. — disse, assoprando mais da fumaça roxa que dançava no ar e se desvanecia em traços que lembravam runas. — Mas antes de nos aprofundarmos em leis espirituais e magias transcendentais... por que não se senta, meu jovem autor acidental?

Virei os olhos pela sala, procurando um lugar nos bancos elevados... e foi quando o vi. Ali, quase no centro — alguém. O único assento ocupado.

Era ela.

Perséfone. A Deusa da Morte. A mesma figura divina e solene que, momentos antes, falava comigo com a voz de mil eras, com a alma de uma eternidade de luto, agora... usava um uniforme escolar japonês. Camisa branca perfeitamente passada, saia plissada azul-marinho, meias até os joelhos, e laço vermelho no colarinho.

Ela cruzava elegantemente as pernas, as mãos repousadas sobre o colo, e quando notou meu olhar, acenou com a mesma serenidade que teria uma estudante entediada esperando o intervalo.

— Você não vem sentar, senpai? — ela disse, sorrindo.

O que... você está fazendo aqui? — perguntei enquanto me aproximava, ainda tentando entender se aquilo era algum tipo de teste ou um devaneio induzido pela mana roxa que saia do cachimbo do professor.

Ela olhou para mim de lado, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.

— Estou aqui para a aula, claro. — respondeu casualmente. — Mesmo Deusas aprendem algo novo de vez em quando. Além disso, queria ver o que você vai fazer. Aposto que vai ser interessante.

Sentei ao seu lado, ainda tentando processar a justaposição entre a Perséfone-mística, Deusa da Morte, juíza das almas, e essa... colegial sarcástica de olhos vermelhos que mascava uma bala de hortelã com ar indiferente. O contraste era absurdo. Talvez isso fosse parte da lição.

Lá na frente, o professor bateu a bengala mais uma vez e girou o cachimbo entre os dedos como quem prepara um truque de mágica.

— E agora que a audiência está composta pela Inevitável e seu bravo cavalheiro — disse com entusiasmo —, podemos começar nossa tragicômica dissecação da realidade. Vamos falar de Preguiça, Inveja e História... Três palavras que, ironicamente, explicam o fracasso de 87 civilizações.

Ele virou-se para o quadro negro, e com um gesto lento, desenhou uma linha sinuosa com o dedo. De onde tocava, nascia um traço de mana púrpura incandescente que escrevia sozinha.

— Mas antes de ensinar-lhe a conjurar, meu caro protagonista — disse sem se virar — você precisa entender por que o mundo sangra. E mais importante: por que o seu nome está escrito no último parágrafo do próximo capítulo.

Ao meu lado, Perséfone cochichou:

— Ele é meio teatral... mas dá boas aulas. Preste atenção.

E assim começou a aula do professor von Fell, onde os livros eram feitos de almas, os quadros desenhados com energia e cada palavra... pesava como o tempo.

O professor Oliver von Fell caminhava lentamente em círculos diante do quadro negro, cada passo deixando pequenos rastros de luz violeta que se desvaneciam como brumas. O cachimbo pendia do canto da boca, ainda soltando a fumaça roxa que serpenteava pelo ar e formava símbolos esquecidos, que talvez só ele compreendesse. Com um estalar dos dedos, a mana se condensou à sua frente em uma superfície suspensa — uma espécie de mapa plano, desenhado com linhas douradas e pulsantes, como veias de um titã adormecido.

— E agora, meus caros leitores — disse, girando sobre os calcanhares com uma teatralidade digna de um palco de ópera —, chegou o momento de falarmos da geopolítica de Chaia, o único continente de nosso mundo. Uma única terra, uma única mesa... com vinte facas apontadas umas para as outras.

Ele ergueu a bengala como se fosse uma batuta, e o mapa iluminou-se mais intensamente.

— Comecemos pelo maior, o mais... imperial, por assim dizer. O gigante adormecido que nunca dorme. Número um:

Império Emberfell

A palavra brilhou em letras rúnicas acima do território maior do mapa. A luz se expandiu, revelando as fronteiras de Emberfell em tons carmesins e dourados.

Ah, Emberfell... onde nasci, onde quase morri, onde fui exilado por ensinar o que não devia. — comentou com um meio sorriso, que não escondia nem rancor nem saudade, mas algo mais complexo: respeito. — Um império de pedra e sangue. Expansionista. Glorioso. Impiedoso.

As imagens começaram a dançar no ar: legiões em formação, cidades de colunas imensas e ruas largas, aquedutos que cortavam os céus como serpentes de mármore. Os soldados marchavam em silêncio, disciplinados como engrenagens de um relógio ancestral.

— Os arquitetos de Emberfell constroem cidades como se eternidade fosse uma garantia. Palácios de granito branco, templos onde os deuses são lembrados mais por medo do que por fé. Você já deve ter notado a semelhança com um certo império antigo de seu mundo, não?

Ele piscou diretamente para mim — para mim mesmo, não para a sala — quebrando uma quarta parede imaginária como se fosse uma vidraça.

— Sim, sim, não finjam surpresa, caros leitores. Sei que vocês também notaram. Mas diferente de Roma, Emberfell ainda está no auge... e isso é o que o torna perigoso.

Voltou-se para o mapa e tocou a região com a ponta da bengala.

— Suas legiões ainda marcham. Seu senado ainda decide quem vive e quem é esmagado sob as rodas do progresso. Emberfell não caiu. Emberfell aprendeu.

Eu observei atentamente cada detalhe da projeção. Havia algo de dolorosamente familiar naquelas cúpulas, nos arcos, nas estátuas de heróis mortos... Era como encarar um reflexo distorcido do meu próprio mundo — mas este ainda respirava, ainda matava, ainda sonhava.

Ao meu lado, Perséfone sussurrou com um tom ambíguo, entre o sarcasmo e a ternura:

— Impressionante, não? Mas todo império queima do lado de dentro antes de ruir por fora.

O professor continuou:

— Emberfell governa pelo medo, pelo ouro e pelo fogo. Mas nem mesmo o mais vasto império é eterno. Os outros dezenove países? Ah, esses são como satélites, rivais, parasitas ou sobreviventes... e falaremos deles em instantes.

Ele se virou mais uma vez, fixando os olhos em mim.

— Mas agora, diga-me, protagonista: o que é mais difícil de destruir — um império... ou a ideia de um império?

E, como se soubesse que eu não teria resposta, sorriu com uma satisfação quase paternal. Então bateu a bengala no chão com força, e as palavras seguintes pairaram no ar:

O professor Oliver von Fell deixou que o nome Emberfell se dissolvesse no ar como brasa queimada por tempo demais. A fumaça púrpura do cachimbo formava agora um redemoinho, dançando com uma ansiedade silenciosa, como se o mundo quisesse empurrá-lo para o próximo capítulo.

— Ah... — disse ele com um tom mais grave, quase sombrio. — Agora falaremos do número dois. O espelho distorcido, o irmão renegado, o dente que morde quando a boca deveria apenas falar. Meus caros leitores, permitam-me apresentar...

Império Thaldrakos

As letras surgiram em chamas azul-escuras, rugindo como se estivessem vivas. O território se iluminou no mapa com escamas cintilantes, tonalidades que oscilavam entre o azul-celeste e o verde-esmeralda profundo, como as escamas de um dragão que nunca adormeceu.

Thaldrakos... — ele murmurou o nome com um respeito visível, como se pronunciar aquilo fosse evocar algo ancestral demais para ser completamente humano. — A terra onde a eternidade é medida não por estátuas, mas por asas. Onde o sangue ferve com chamas. Onde reis não nascem... são chocados.

O mapa se transformou diante de nós, revelando torres esculpidas a partir de ossos de dragões, cidades cravadas em penhascos altos demais para cavalos, mas perfeitos para criaturas aladas. Estátuas da Deusa Astarot dominavam cada praça, olhos de ônix, chifres imensos apontando para os céus.

— Adoradores fervorosos da Deusa dos Dragões, Astarot, Senhora das Chamas e do Voo. Ela não exige fé — exige sangue. E os Thaldrakianos... oh, esses nunca hesitam em oferecer o próprio.

As imagens mudaram para nobres em tronos de obsidiana, com olhos reptilianos e pele pálida demais para ser humana. Uma transformação grotesca — e gloriosa — começou: asas se rasgando das costas de um príncipe, presas substituindo dentes. Um rugido sacudiu a sala, mesmo sendo só projeção.

— Alguns entre a realeza... ainda se transformam. Ainda queimam. Ainda voam.

Ele soprou uma nuvem de fumaça que formou um dragão, serpenteando pelos bancos vazios como um espectro ancestral. A criatura parou sobre Perséfone, que simplesmente soprou de volta e desfez a forma com um sorriso debochado.

— Rivais mortais de Emberfell desde o alvorecer das eras. Os dois impérios já destruíram juntos mais cidades do que toda Chaia pode contar. Lutam pela hegemonia não apenas de terra, mas de narrativa. Ambos querem ser o último capítulo do mundo.

Oliver se aproximou do mapa e tocou as bordas entre Emberfell e Thaldrakos com o bastão. Elas brilharam como cicatrizes.

— Aqui... — ele disse num tom quase sussurrado — já morreram mais reis do que plebeus. Aqui se travaram guerras não por necessidade, mas por orgulho. A glória se tornou um vício. E vocês sabem como são os viciados...

Fez uma pausa dramática, olhou para mim — e depois para o lado, para uma câmera imaginária, que nem um personagem de um seriado que eu assistia na Terra — e arqueou uma sobrancelha.

— Eles queimam tudo que amam.

Voltou a se afastar, dando uma tragada profunda no cachimbo.

— Então, dois impérios, dois futuros que se negam a coexistir. Um regido por odes e águias... o outro, por fogo e escamas.

Perséfone, ainda com seu uniforme escolar, cruzou as pernas e murmurou com um ar de desdém afetuoso:

— Se você acha Emberfell perigoso, espere até encontrar um dragão que fala.

O professor ergueu o bastão novamente.

— E agora, meus caros, para o terceiro país... embora depois desses dois titãs, tudo pareça um pouco... menor, não acham?

O professor Oliver von Fell deixou o silêncio pairar após falar de Thaldrakos. A fumaça púrpura de seu cachimbo subiu num espiral preguiçoso, como se hesitasse em anunciar o próximo nome, não por medo, mas por reverência.

Ele se virou para nós com um sorriso contemplativo, os olhos semicerrados como se saboreasse uma memória antiga.

— E agora, leitores atentos, deixemos para trás as muralhas de pedra e os céus em chamas... Vamos adentrar o sussurro das folhas, o eco dos galhos, o perfume do musgo molhado e da madeira viva. Permitam-me apresentar...

Império Thalanthir

As linhas do mapa se transformaram novamente. Agora, a projeção era verde e dourada, viva, pulsante. Não um território morto, mas um organismo, como se o próprio país respirasse sob nossos olhos. Cidades não apareciam como manchas de pedra — mas como nós luminosos entre raízes, entrelaçadas em copas e galhos.

— Thalanthir — disse Oliver com tom quase poético, — onde o céu é filtrado pelas folhas, e as casas são construídas não contra a natureza, mas dentro dela. Onde se vive em harmonia com o sagrado... porque o sagrado ainda vive ali.

Ele andou devagar até o mapa, apontando com o bastão uma gigantesca árvore no centro do império, que se elevava até as nuvens.

— No coração desse reino repousa a Árvore Primordial. Uma dádiva da deusa Apollo — e sim, ela é uma deusa, não um deus, antes que algum leitor com mania de correção venha me interromper. Ela, com sua luz dourada, plantou essa árvore nos primórdios da criação. E desde então... Thalanthir floresceu ao seu redor.

As imagens mudaram.

Vimos as formas altas e graciosas dos elfos e seres que tinham olhos selvagens, traços bestiais, cabeças de leões, caudas de pantera, orelhas felinas que se moviam com o vento.

— Ah sim... os homens-feras — disse Oliver com entusiasmo. — Espíritos livres, corpo de homem e alma de animal. São os guardiões da floresta, caçadores, sacerdotes e artistas. Dizem que quando um elfo ou um homem-fera nasce em Thalanthir, o vento canta uma canção. E quando ele morre, a árvore-mãe chora com folhas douradas.

Perséfone, ao meu lado, sussurrou com um sorriso discreto:

— Um povo de alma antiga... vivem milênios, mas amam como se tivessem apenas um verão.

Oliver ouviu e acenou com a cabeça.

— Justo. Justíssimo. Eles amam devagar, como quem cultiva uma flor rara. Mas odeiam rápido, como uma tempestade. E são... orgulhosos. Muito. Não gostam de forasteiros pisando em suas raízes. Não gostam que toquem em sua árvore. E se você matar uma árvore sagrada de Thalanthir...

Ele fez uma pausa. O silêncio se estendeu como uma sombra.

— ...enterram você com as raízes. Literalmente. Dizem que o chão se abre e... bom, os detalhes não são para antes do almoço.

A fumaça do cachimbo assumiu a forma de uma floresta em miniatura, e em seu centro, a árvore mãe tremulava como uma vela sagrada. O professor a soprou com cuidado, como se temesse ofender.

— Eram aliados antigos de Emberfell, recentemente foram pegos na onda expansionista do império e perderam uma região substancial que hoje é um ducado que por motivos de progressão da história será explicado por último. Não gostam das guerras, mas são obrigados a se posicionar. Afinal, o mundo não é gentil com quem permanece neutro por muito tempo.

Ele caminhou de volta para o centro da sala, girando elegantemente sobre os calcanhares.

— Então, queridos leitores, conhecemos agora três forças que moldam o continente de Chaia: o punho flamejante de Emberfell, as garras aladas de Thaldrakos, e o coração enraizado de Thalanthir.

Virou-se diretamente para mim.

— Diga, apóstolo da morte... em qual desses lugares você morreria primeiro?

Perséfone soltou uma risada breve, e eu não consegui deixar de sorrir também.

Oliver acenou dramaticamente com a bengala.

— Agora, para o quarto país... a dança continua.

Oliver von Fell, com seu olhar sempre teatral, esperou que o silêncio se assentasse como poeira sobre a madeira da sala. Ele caminhou até o quadro, riscando com o giz um símbolo antigo, parecido com um martelo cravado num monte.

Virou-se para nós — ou melhor, para seus leitores — com uma expressão de empolgação sutil, como se se preparasse para narrar a cena de um épico.

— E então, após os vales sombrios e os bosques sagrados... o som do aço ecoa. Pancadas regulares, fornalhas acesas há milênios, barulhos de moedas caindo em sacos pesados. Bem-vindos ao coração dos montes e à ganância que brilha como fogo eterno. Bem-vindos ao...

Reino de Kharzak-Tor

— Ah... Kharzak-Tor — disse, quase salivando de prazer. — Se Emberfell é a espada, Thaldrakos o rugido, Thalanthir o espírito... Kharzak-Tor é o som do ouro caindo.

O mapa se dobrou outra vez, revelando a região sudeste do continente de Chaia. Uma cadeia montanhosa imensa surgiu, como cicatrizes antigas do mundo. E dentro dela, cavernas fundas, túneis que iam tão longe para baixo quanto as torres de Emberfell subiam para cima.

A projeção centralizou-se na capital: uma cidade inteira feita de ouro polido. Torres de ouro. Muros de ouro. Estradas de ouro. Templos dourados que reluziam como sóis gêmeos.

— Esta, meus caros leitores — disse Oliver, batendo com a bengala no chão — é Thronghal-Tor, a Capital de Ouro. Forjada com as próprias mãos dos primeiros anões, e consagrada com o poder direto de Moradina, a Deusa das riquezas, da forja, dos contratos e, claro... dos impostos.

Riu alto de sua própria piada, soltando uma espiral de fumaça lilás que se transformou numa balança flutuante. Um prato continha pepitas de ouro. O outro, uma espada curta.

— Moradina não é uma deusa que dá. Ela cobra. Tudo tem um preço. Até a salvação. E os anões sabem disso como ninguém.

A projeção mostrou desertos avermelhados, entrecortados por minas e fortes, as caravanas movendo-se entre dunas, protegidas por mercenários anões com machados de runas e capacetes pesados.

— O reino inteiro é uma máquina econômica. O mercado de Kharzak-Tor é o maior e mais influente de Chaia. Tudo passa por suas rotas. Comida, armas, segredos... até mesmo almas, dizem alguns.

Os olhos de Oliver cintilaram maliciosamente.

— Mas claro, isso seria ilegal. E os anões não fazem nada ilegal... sem cobrar bem por isso.

Perséfone soltou uma risada abafada ao meu lado, e eu franzi as sobrancelhas. Algo naquele reino parecia... duro. Implacável. Belo, sim. Mas como uma joia que corta a carne quando tocada.

— E os ferreiros, ah... — continuou Oliver com reverência. — Se você nunca segurou uma lâmina forjada em Kharzak-Tor, então você nunca segurou nada. Cada martelada nas forjas deles carrega bênçãos de Moradina e segredos herdados de seus pais e avôs. Dizem que algumas armas escolhem seus donos, tamanha é a força mística de sua criação.

A fumaça do cachimbo agora girava como engrenagens, formando a imagem de uma bigorna flamejante com um anão martelando, olhos incandescentes sob o capacete.

— Mas cuidado. Kharzak-Tor é também um ninho de vícios. Gula. Ganância. Vaidade. Ninguém entra lá e sai igual. É onde o ouro reluz mais forte... e a alma se escurece mais rápido.

O professor parou, e encarou cada um de nós, seu olhar enfim recaindo sobre mim.

— Será que até mesmo um apóstolo da morte pode resistir à tentação do ouro eterno?

Perséfone me lançou um olhar ambíguo. Não respondi.

— Enfim, anotem aí, caros leitores — disse ele voltando para o quadro. — Um reino sem miséria... mas com muitos miseráveis.

E com isso, virou-se dramaticamente.

— Agora, para o quinto país... Ah, que segredos ele nos revelará?

Oliver ergueu a mão teatralmente como se estivesse segurando as rédeas de um cavalo invisível, e com um giro dramático do corpo, apontou para o centro-leste do continente de Chaia. O mapa respondeu ao seu gesto como uma cortina que se abre diante de um público ansioso, revelando uma vasta região árida, pintada em tons de dourado, ocre e vermelho.

Khaganato Khazara

— isso mesmo! Khaganato Khazara, meus caros leitores! — exclamou com a voz cheia de reverência e empolgação, como se evocasse o próprio espírito de uma lenda antiga. — Terra dos céus vastos e da poeira eterna. Onde o sol é cruel e o vento carrega histórias esculpidas na pele dos vivos e dos mortos.

A fumaça do cachimbo se retorceu no ar como uma serpente dourada, assumindo a forma de cavaleiros montados em criaturas que pareciam uma mistura de cavalos e leões, envoltos em armaduras lamelares cravejadas de ossos e dentes. As lanças brilhavam como trovões e as bandeiras dançavam ao vento como preces sagradas.

— Aqui, a guerra não é um meio... é um modo de existir. — A fumaça moldou-se agora em uma mulher de olhos flamejantes e uma lança em chamas nas mãos, sentada sobre um trono de escudos quebrados. — Athena, a Deusa da Guerra, reina com mão firme e coração incandescente sobre o povo de Khazara. Ela não precisa de templos. Cada guerreiro é seu altar. Cada combate, sua missa.

Os olhos do professor brilharam com um entusiasmo feroz.

— Este é o território com o maior número de fiéis de uma única deusa. Não por se espalharem entre muitos povos, como fazem Ísis ou Amara... mas porque Khazara é vasta. Incontável. Um mar de terra, fogo e aço. É dito que seus guerreiros são forjados no sangue de mil campanhas, que suas crianças aprendem a lutar antes de andar, e que os fracos... ah, os fracos não vivem tempo suficiente para serem lembrados.

O mapa se aprofundou, revelando savanas intermináveis onde rebanhos de girafas e zebras pastavam em meio a acampamentos nômades, e desertos escaldantes onde bandos de leões e hienas disputavam o território com homens de lança e turbante. Rinocerontes com couraças rúnicas protegiam as caravanas de guerra, e tambores soavam ao longe — não por música, mas por mobilização.

— É uma terra de besta e beleza, de rito e relâmpago. Os khans de Khazara não governam com leis... governam com lendas. Cada tribo tem seu próprio código, suas tradições, seus Deuses menores, mas todos se ajoelham diante da Senhora das Lâminas. E quando a deusa fala — sussurra, grita ou canta — o continente inteiro sente o estremecer de seus passos.

Oliver caminhou até a beirada do palanque e se inclinou na direção do público, ou do vazio, ou dos leitores invisíveis em sua mente teatral.

— Muitos pensam que são bárbaros. Que são primitivos. Mas perguntem a Emberfell quem estancou sua última invasão com apenas uma centena de cavaleiros. Perguntem a Thaldrakos quem impediu que seus dragões cruzassem a planície de fogo. Perguntem a Athena, e ela vos dirá: “Eles são os meus filhos. E eles não temem nem os deuses.”

Perséfone, sentada ao meu lado, observava com um sorriso enviesado.

— Sabe... — disse ela suavemente, só para mim — havia algo de trágico na fundação desse reino. Quando a Deusa da guerra chorou pela primeira vez, sua lágrima caiu num campo de batalha e deu origem ao primeiro khan. Ele nasceu da dor... não da glória.

Aquilo ficou preso em mim por um instante.

— E quanto à magia? — perguntei.

Oliver, como se tivesse lido minha mente, respondeu imediatamente, voltando-se para o quadro:

— Magia em Khazara? Só a que se manifesta em ação. Eles não se encantam com feitiços ou encantamentos. Eles são o feitiço. A própria guerra é a forma de magia que a deusa lhes deu. Um estado de espírito. Uma doutrina. Uma maldição?

Fez uma pausa dramática.

— Ou talvez uma benção... disfarçada de condenação.

Ele então se afastou do quadro, limpou-o com a manga do blazer, deixando rastros de giz como cicatrizes na madeira.

— Vamos para o próximo reino?

O professor Oliver von Fell segurou o giz como um maestro segura sua batuta. Com um gesto largo e desleixado, ele rabiscou um círculo nebuloso no centro-sul do mapa de Chaia. O traço tremia como se dançasse em encantamento próprio, até que, com um estalar de dedos, o giz cintilou — e o mapa explodiu em cores violáceas, verdes-luminosas e espirais de símbolos arcanos flutuando entre as linhas.

Reino de Umbrenor

— Ah... Umbrenor! — disse com um suspiro quase sensual, como quem fala de um amor antigo que ainda queima sob as cinzas do tempo. — Reino da magia, da ciência, dos paradoxos e dos sonhos engarrafados. Umbrenor não apenas estuda a realidade... eles a reescrevem, uma equação por vez.

A fumaça de seu cachimbo se adensou como se compreendesse o momento. E, de repente, tornou-se uma cidade suspensa por correntes de cristal, pairando sobre nuvens que reluziam como algodão encantado sob o sol da tarde. Torres dançavam ao som do vento e fontes transbordavam poções coloridas como arco-íris liquefeitos. Livros voadores cruzavam o ar como pássaros de papel.

— Aqui, meus leitores — disse ele com o sorriso de um ilusionista — a magia é o pão e o vinho. Cada criança aprende a conjurar antes de aprender a andar. Toda casa tem uma runa de calor, e as ruas são pavimentadas com fórmulas alquímicas que impedem poeira e confusão.

Ele deu uma tragada em seu cachimbo e exalou um anel de fumaça que flutuou suavemente até Perséfone, que o soprou de volta com um sorriso divertido, vestida ainda naquele absurdo uniforme escolar japonês.

— Ísis, a deusa da magia, é adorada com reverência acadêmica. Seus templos são bibliotecas. Seus sacerdotes, professores. Seus guerreiros... bem, seus guerreiros escrevem feitiços em flechas e gravam encantamentos em lâminas. Eles não gritam em batalha. Eles declamam.

Oliver voltou ao quadro e escreveu com um floreio teatral:

"Umbrenor: onde o impossível é a lição do primeiro dia."

— Os maiores magos do continente, senhores das estrelas, criadores de elixires que fazem o tempo retroceder por um suspiro. E, claro... — deu uma piscadela — foi lá que ganhei este cachimbo.

Levantou o objeto como se fosse uma relíquia sagrada.

— Fumaça de mana, essência de orquídea noturna, e um encantamento que me impede de tossir e me ajuda a gerar essa ilusões. Uma gentileza de um velho amigo que... bom, virou rato numa experiência fracassada. Acontece.

A turma — ou melhor, eu e Perséfone — rimos. Ela cruzou as pernas e me cutucou com o cotovelo.

— Se fosse você, pedia um desses depois. Dura milênios e ainda ajuda na concentração mágica. Sem falar no estilo.

Oliver girou no calcanhar, e a fumaça moldou-se agora em alquimistas mexendo caldeirões, em gigantescos telescópios observando estrelas dançantes e em torres que desafiavam as leis da física e da estética.

— Mas nem tudo são névoas de sabedoria e poções de amor, caros leitores... — disse ele, a voz mergulhando em um tom mais sombrio. — Umbrenor está em constante tensão interna. Há quem queira que o reino se torne um império. Há quem diga que já passaram do limite da ética ao fundir almas com autômatos e usar mortos como condutores de energia arcana. E, acima de tudo... há um debate antigo: quando o conhecimento se torna poder demais?

Parei, tocado pela pergunta. Era uma questão que me incomodava mesmo antes da morte. Mesmo agora... talvez mais do que nunca.

Oliver apagou o quadro com uma nuvem de mana púrpura que engoliu o giz.

Último reino antes do almoço, meus bons leitores. Respirem fundo. A comida dos mortos não é tão ruim quanto dizem.

E com isso, deu meia-volta, tirou um sanduíche de um compartimento mágico do bolso do blazer, e deu uma mordida satisfeita.

Vendo-o comer, pela primeira vez desde que havia morrido, me foi evocada a sensação de fome.

Não era uma necessidade agressiva, como aquela que corrói o estômago dos vivos e nos obriga a correr atrás de algo quente e salgado — era uma fome mais suave, quase simbólica, como se meu corpo quisesse participar do mundo novamente. Como se minha alma, recém-remendada, pedisse um gesto humano, cotidiano. Um gesto de vida.

Foi então que senti um leve puxão em minha manga.

— Você está pálido... mais do que o normal, quero dizer — disse Perséfone, sorrindo, enquanto se levantava da cadeira escolar. Seus olhos vermelhos brilhavam como rubis sob o feitiço da luz difusa que enchia a sala de aula.

Sem esperar minha resposta, ela levantou o dedo, e com um giro sutil, um anel negro em sua mão brilhou. Dele saiu um pequeno bento — perfeitamente lacrado, coberto por uma toalhinha delicada com desenhos de carpas douradas. A deusa da morte, a juíza dos mortos, carregava comida japonesa no dedo como uma esposa recém-casada apaixonada.

— Vamos. Lá fora. — Ela disse, quase com um tom de timidez, apontando com o queixo em direção à porta lateral da sala.

Caminhamos por entre corredores de madeira flutuante que se dobravam como origamis vivos até surgirmos em um pequeno jardim suspenso, coberto por grama suave como seda, onde uma gigantesca sakura estendia seus galhos em flor. As pétalas caíam devagar como neve cor-de-rosa, e o ar ali tinha cheiro de mel, chá-verde e primavera.

Ela se sentou à sombra da árvore, alisou a saia do uniforme escolar — ainda um absurdo inexplicável — e me chamou com um gesto doce.

— Aqui. Vamos comer juntos.

Sentei-me ao seu lado, um pouco hesitante. Não pela comida, mas pelo clima. Ela abriu o bento com cuidado, revelando comidas moldadas em pequenos corações: onigiris com carinhas felizes, tamagoyakis dourados perfeitamente enrolados, pedacinhos de frango frito decorados com lacinhos de alga. Havia até um pequeno pudim em forma de estrela, tremeluzente como um fragmento de céu.

— Isso é... — hesitei.

— Uma refeição de afeto — ela respondeu, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. — Algo que uma esposa faria para o marido na manhã seguinte ao casamento, nos tempos antigos. Achei que combinava com o clima da aula.

Ela pegou um hashi, separou um pedaço de omelete e, com um olhar gentil, o estendeu em direção à minha boca.

— Vai, abre. Não me faz passar vergonha.

Com o rosto corando, talvez pela primeira vez em toda minha existência pós-vida, abri a boca. O sabor era... inesperado. Doce, salgado, quente, reconfortante. Era como engolir um pedaço de infância esquecida, como sentir o cheiro da roupa da minha mãe nos lençóis lavados ao sol.

— Isso é ridículo — murmurei, quase rindo e tossindo ao mesmo tempo. — Você é a deusa da morte. Isso não combina com você.

— A morte é cheia de surpresas. E às vezes, ridícula, sim — ela disse, rindo com delicadeza. — Além do mais, você está faminto. E bem... eu sempre estarei por perto quando estiver prestes a quebrar, lembra?

Ela me deu mais um pedaço, dessa vez uma bolinha de arroz com umeboshi em forma de coração. Enquanto mastigava, olhei para os galhos floridos da sakura e murmurei:

— A aula foi interessante... esse professor é um personagem.

— Ele é mais sábio do que parece. E mais velho também. Já morreu três vezes, acredita?

— Isso explica a excentricidade — sorri.

— Mas me diz — ela olhou pra mim com aquele ar de curiosidade ardente que só os imortais e os gatos têm —, o que achou de Umbrenor?

— É estranho... mas me pareceu familiar. Como se eu já tivesse sonhado com esse tipo de lugar.

Ela assentiu, pegando um pedacinho de pudim com uma colherzinha mágica que surgiu do nada.

— Você já sonhou. Nós todos já sonhamos. A magia, a ciência, a busca por transcender a si mesmo... Umbrenor é o espelho dos desejos mais profundos da humanidade. Só que às vezes, os desejos mais profundos... são perigosos.

Ela me alimentou novamente, mas agora seus olhos estavam mais sérios.

— Você tem que aprender isso: conhecimento sem alma... é um fogo que queima para sempre.

Eu fiquei em silêncio. O vento passou, as pétalas dançaram. Perséfone se inclinou para mais perto e encostou a cabeça no meu ombro.

— Mas por agora... só coma.

E eu comi. Não por necessidade, mas por desejo. Pela estranha e doce ilusão de que, mesmo morto, eu ainda podia viver algo bonito.