Guerra, Fé e Cerveja

Voltamos à sala devagar, como se aquele instante sob a sakura tivesse descolado o tempo do mundo. O vento ainda trazia no corpo pétalas cor-de-rosa que dançavam em espirais preguiçosas ao nosso redor, e, por um momento, me perguntei se algum Deus não estava sussurrando ao destino: deixe-os só mais um pouco.

Mas não. O dever, sempre ele, nos chamava de volta. E como dois estudantes tardios em uma escola sagrada, cruzamos a porta da sala universitária com os olhos cúmplices e o sorriso contido de quem compartilhava algo que os outros não podiam entender — ou não deviam.

O primeiro som que nos recebeu foi o estalar do cachimbo do Professor Oliver von Fell. A fumaça púrpura que exalava dele agora formava figuras geométricas no ar — pirâmides, cubos flutuantes, até um pequeno dragão que se desfez em espirais — como se estivesse particularmente inspirado.

Oliver, apoiado sobre sua mesa, ergueu uma sobrancelha enquanto nos observava cruzar o umbral da porta.

Aaaaah, meus queridos leitores — disse ele, com sua voz rouca e teatral —, eis que os pombinhos retornam do jardim do Éden, debaixo da sakura eterna, alimentando-se não do fruto proibido, mas de bolinhos de arroz com rostinhos apaixonados!

A sala estava vazia, claro, mas ele fez uma pausa dramática como se uma multidão de estudantes estivesse prestes a explodir em risadas e aplausos. Ele bateu o cachimbo na borda da mesa, como quem marca o compasso de uma história que acabou de ganhar um novo capítulo.

— Eu estava quase mandando uma busca divina atrás de vocês. Uma Deusa e um morto-vivo fugindo da aula... isso dá um excelente conto. Trágico? Talvez. Romântico? Com certeza. Didático? Nem um pouco!

Perséfone, ainda com ares de colegial debochada, piscou para ele e se sentou no mesmo lugar de antes, cruzando as pernas com leveza e balançando o pé no ar.

— Estávamos apenas... aprofundando a lição de história, professor.

— Ah, claro! "A geopolítica das pétalas de cerejeira e o impacto afetivo nos necromantes de primeira viagem", um clássico da literatura mágica! — exclamou ele, abrindo os braços com exagero, e uma explosão de fumaça roxa formou um pergaminho no ar com esse título.

Eu me sentei ao lado dela, sem conseguir esconder o leve sorriso que escapava. Pela primeira vez desde que cheguei naquele mundo, me senti... confortável. Vivo.

Oliver se recompôs com uma mão no peito, como um diretor voltando ao centro do palco após o aplauso imaginário.

— Muito bem, muito bem. Agora que os Deuses foram alimentados, os corações batem em uníssono e os leitores estão encantados com o drama romântico de nossa trama... — ele apontou com o cachimbo para o quadro-negro, onde girava um mapa flutuante de Chaia. — Vamos voltar à nossa querida, perigosa, encantadora realidade.

Ele acendeu novamente o cachimbo com um estalar de dedos, e a fumaça tomou a forma de uma coroa flamejante.

E assim, com um leve gosto de pudim ainda na boca, e o calor do toque de Perséfone ainda na pele, eu voltei à aula da morte, da história — e da vida.

— E agora para o próximo reino:

Reino de Cloudia

O professor Oliver von Fell ergueu uma das mãos, como um maestro prestes a reger a próxima sinfonia de caos e política.

Ah, Cloudia... — disse ele, soltando uma baforada de fumaça roxa que se moldou lentamente no ar, revelando o contorno de vinhedos infindos, torres esguias e salões de baile envoltos em névoas púrpuras. — O nome parece delicado, não é, meus caros leitores? Cloudia. Como se fosse feito de nuvem, de leveza, de sonho. Mas não se enganem.

O mapa de Chaia girou mais uma vez, e ao leste do continente uma nação alongada brilhou em tons de vinho tinto e dourado envelhecido.

— O Reino de Cloudia, ou como gostam de chamar a si mesmos: A Última Bastilha da Razão. Um nome pretensioso? Absolutamente. Mas nada que não combine com sua aristocracia — disse, dando uma risada debochada, enquanto a fumaça desenhava silhuetas de nobres com máscaras finas e taças erguidas.

Ele andou até o quadro com passos dramáticos e bateu o cachimbo na beirada da mesa.

— Cloudia é, em essência, um país ateu. Não renegam os Deuses... eles os ignoram. Como se fossem apenas mitos incômodos, como barulhos ao fundo de uma ópera. Preferem a lógica, a matemática, a política fria. Não há templos em Cloudia. Há apenas salões de poder. — Disse isso com certa solenidade, como quem recita um epitáfio.

— Seus governantes são uma casta fechada de aristocratas. Um conselho de sangue-azul, onde cada palavra pesa mais que mil espadas. Lá, o povo é... bem, o povo é útil. Como vinhas: precisam ser cultivados, podados, espremidos — e eventualmente fermentados em algo agradável. — Disse com um tom ácido, enquanto uma uva gigante aparecia em meio à fumaça e era esmagada por mãos invisíveis.

Cruzei os braços, pensativo.

— Então eles vivem bem?

— Oh, vivem muito bem, se estiverem no topo. Cloudia produz os melhores vinhos de todo o continente. Suas colinas onduladas, solo fértil e clima temperado criam uvas que beiram o divino. Ironicamente, claro. — Oliver piscou como quem entrega uma piada.

Ele ergueu uma taça imaginária com um floreio teatral.

— Um brinde aos que não creem em Deuses, mas produzem uma bebida tão perfeita que faria até Ao chorar.

Perséfone, ao meu lado, sussurrou com um sorrisinho:

— Eles sempre foram um espinho na carne das divindades. A fé não vive onde o vinho é mais forte que a esperança.

Oliver girou nos calcanhares.

— E com isso, encerramos nossa visita a Cloudia. Um lugar de névoas, de salões em mármore, de conspirações eternas... onde o prazer é poder, e o poder é a única fé.

Ele apontou com o cachimbo para o próximo ponto brilhante no mapa.

— Mas não vamos perder tempo com os que não acreditam em nada... há outros reinos, mais crentes — e mais perigosos — que nos aguardam.

E o mapa girou mais uma vez, enquanto o som de uma taça quebrando ecoava entre as paredes encantadas da sala.

Eu me recostei na cadeira, ainda digerindo mentalmente o sabor doce das últimas palavras do professor — e, honestamente, ainda com o gosto da comida de Perséfone na boca. A fumaça roxa continuava a flutuar no ar como pensamentos vivos, enquanto o mapa etéreo de Chaia pulsava, girando lentamente como se o continente tivesse um coração próprio.

Foi então que Oliver apontou com seu cachimbo para uma pequena região logo ao oeste de Umbrenor. Uma península estreita, cercada por águas de tom prateado, com traços de arquitetura geométrica, precisa, quase… inumana.

Próxima parada, meus curiosos companheiros de páginas viradas: 

Principado de Nymereth

Principado…?

— Ei — murmurei, virando-me um pouco para Perséfone. — No que um principado é diferente de um reino?

Ela assentiu com a cabeça, com aquele ar de quem já sabia que eu faria a pergunta.

— Um principado é uma forma de governo onde quem governa é um príncipe, geralmente subordinado a uma autoridade maior, como um rei, ou no caso… um império.

Exatamente! — disse Oliver, escutando claramente meu murmúrio. — Nymereth é uma terra peculiar. Um principado tecnocrata e funcional, que se destaca não por sua fé, ou sua arte, mas por sua engenhosidade implacável. Não se engane com o tamanho modesto no mapa… Nymereth pode ser pequeno, mas é um formigueiro de máquinas e mentes brilhantes.

A fumaça formou uma cidade que parecia feita de vidro e engrenagens. Torres retas, trilhos aéreos, e abaixo, figuras metálicas — autômatos. Criaturas humanoides feitas de aço, bronze, mana condensada, com olhos como lanternas e movimentos quase graciosos.

— São famosos por uma invenção que mudou o equilíbrio de poder: os autômatos. Criaturas artificiais criadas com alma forjada em runas, servo-magos que não dormem, não questionam, e não conhecem misericórdia. Ferramentas? Armas? Escravos? Tudo depende de quem os comanda.

Oliver então caminhou devagar pela frente da sala, como se pisasse em chão histórico, suas palavras cadenciadas como páginas virando.

— Nymereth não é governado por qualquer príncipe... mas sempre — sempre — pelo segundo príncipe de Umbrenor. O primeiro herda a capital, a glória, o trono, os dragões da sabedoria e o fardo do governo arcano. O segundo… recebe Nymereth. Um presente? Um castigo? Quem sabe?

Uma leve amargura escorreu da voz do professor, como se falasse de algo pessoal.

— Lá, o segundo príncipe molda sua glória com engrenagens, ferro, e inteligência. Eles criam, eles constroem. Não para adoração... mas para controle.

Perséfone cruzou as pernas, brincando com uma pétala caída sobre o colo da saia.

— A filosofia deles é simples — disse ela, com um leve sorriso irônico. — "Se os Deuses não descem para nos ajudar, construiremos os nossos próprios." E eles construíram.

Eu olhei para aquele pedacinho do mapa — Nymereth, reluzente como uma lâmina em meio ao continente — e não consegui evitar o arrepio que correu pela espinha.

Havia algo profundamente inquietante na ideia de criar vida a partir de engrenagens e magia. Algo que me lembrava… de mim mesmo. Recriado. Reconstruído. Reanimado.

Talvez por isso eu tenha prendido a respiração quando o professor apagou a imagem do principado com um estalar de dedos, como se deletasse uma memória artificial.

— E assim deixamos Nymereth para trás. Príncipes rejeitados, soldados de latão e um futuro onde nem os mortos descansam — disse ele, sorrindo. — Mas não se preocupem. Ainda temos muitos mundos a visitar antes que esta aula acabe... e antes que a história de vocês, meus jovens leitores, comece de fato.

O professor Oliver, com sua teatralidade habitual, caminhou de volta ao centro do semi-anfiteatro enquanto uma nova espiral de fumaça roxa se erguia de seu cachimbo, moldando no ar uma vasta planície dourada, pontilhada por tendas coloridas, estandartes ondulando ao vento, e o som distante de cascos ecoando em ritmo cerimonial.

E agora, meus queridos leitores — oh, como esperei por este momento — permitam-me apresentar o lugar onde a terra canta sob os cascos dos gigantes: 

Beilhique de Zar-Aegion

A palavra “beilhique” acendeu um lampejo de curiosidade em mim. Eu nunca tinha ouvido esse termo, mas parecia envolver algo entre tribo e reino. Como se adivinhasse minha dúvida — ou talvez apenas lesse meu rosto como se fosse uma página aberta — Perséfone se inclinou levemente e explicou em voz baixa:

— Um beilhique é uma espécie de domínio feudal autônomo, geralmente liderado por um bei, ou um senhor guerreiro. Ele pode ser subordinado a um império ou khaganato maior, mas mantém sua própria identidade, seus exércitos, sua cultura…

Perfeitamente explicado, moça do uniforme engraçado! — elogiou Oliver, sem sequer virar a cabeça. — Zar-Aegion é um beilhique singular, subordinado ao vasto Khaganato de Khazara, mas com uma alma… selvagem. Orgulhosa. Indomável.

As imagens na fumaça tomaram vida própria: homens e mulheres em armaduras de couro batido, aço escurecido pelo deserto, lanças com fitas tremulantes, elmos em forma de chifres ou asas. Alguns montados em cavalos cobertos por mantos tribais, outros… sobre rinocerontes blindados, suas patas como trovões golpeando a areia. E outros ainda — os mais exóticos — sobre camelos de guerra, adornados com sinos e placas de obsidiana.

— Zar-Aegion é berço de cavaleiros lendários, forjados sob três sóis — o do deserto, o da glória e o da morte. Seus filhos nascem sobre selas, aprendem a guerrear antes de andar, e selam promessas com sangue.

As imagens se intensificavam. Um duelo entre dois cavaleiros numa duna flamejante. Um funeral onde o cavalo do falecido era solto na estepe. Uma criança de olhos dourados treinando com uma lança sob o olhar severo de um ancião.

— Seus códigos são orais. Seus hinos, cravados em ossos de bisão. E sua fidelidade? Ah, essa vai para Khazara. Eles servem Athena, a Deusa da Guerra, com fervor animalesco. Mas nunca... nunca ajoelham. Nem diante de um imperador.

— Então... são aliados? — perguntei, tentando compreender a dinâmica.

Aliados, sim. — disse Oliver, sorrindo com os olhos. — Subordinados? Talvez. Mas submissos...? Jamais. Zar-Aegion é como uma flecha cravada na carne de Khazara. Parte do corpo, mas com vontade própria.

Perséfone riu suavemente com essa metáfora, observando o céu simulado sobre nós no teto da sala, onde uma águia — talvez feita de fumaça, talvez de memória — cruzava os céus sobre Zar-Aegion.

— Eles acreditam que o céu é uma batalha eterna — sussurrou ela. — E que cada trovão é o som de um cavaleiro caindo… ou ascendendo.

Eu não soube se era poesia ou crença. Talvez nos mundos dos mortos, essas coisas fossem a mesma coisa.

Zar-Aegion. O nome ficou preso na minha mente, como o eco de um galope distante. Não era um império, nem um reino. Era algo mais feroz. Mais antigo. Um povo que vivia entre lendas e poeira, entre aço e orgulho.

E no fundo, algo em mim — em minha alma recém-remendada — respeitava isso profundamente.

O professor Oliver girou o bastão de giz entre os dedos com teatralidade, como se fosse uma bengala de palco, e apontou para a próxima projeção etérea feita da fumaça púrpura que brotava de seu cachimbo encantado. A bruma tomou forma de torres de mármore branco, cúpulas douradas e soldados com armaduras reluzentes marchando sob estandartes de luz. Ao fundo, um canto coral grandioso ecoava, como se o próprio céu cantasse louvores.

E agora, caros leitores — segurem os queixos, cubram os olhos, ou rendam-se ao esplendor — pois chegamos à majestosa, imaculada, impecavelmente luminosa... 

Teocracia de Amara

Ele fez uma reverência zombeteira à fumaça, como quem cumprimenta a plateia após uma ópera divina.

Este é o reino sagrado da Luz, o coração pulsante da fé na Deusa da Vida, Amara, aquela cujos passos fizeram brotar flores nas cinzas da criação.

As imagens dançavam. Palácios esculpidos em pedra alabastrina, templos resplandecentes onde sacerdotisas de mantos dourados flutuavam acima do chão, cidades construídas em espirais ascendentes como se quisessem alcançar o próprio trono dos céus.

Perséfone, ao meu lado, cruzou os braços e suspirou, com algo entre respeito e desaprovação.

— A devoção deles é… inabalável — comentou ela. — Mas não isenta de arrogância.

Oliver acenou com a cabeça, como se Perséfone fosse apenas mais uma personagem em sua narrativa.

— Sim, sim, sim, Senhora dos Reinos Além. A Teocracia de Amara é tudo o que se espera de um reino sagrado: radiante, puro, e levemente... obcecado por sua própria virtude. — Ele olhou para nós com um sorriso enviesado. — Talvez mais do que levemente, diria eu.

O professor apontou então para os cavaleiros de luz que marchavam pela fumaça. Cada um portava lanças de cristal solar e capas com bordados celestiais. Em suas armaduras não havia manchas, apenas reflexos. Olhos frios, convictos. Guerreiros de uma causa divina.

— Diferente de seu reino irmão, o sereno e tolerante Auramalis, a Teocracia de Amara acredita que a luz deve ser imposta. Não apenas ensinada. Não apenas celebrada. Mas conquistada.

As imagens mudaram. Cruzadas flamejantes avançando sobre cidades menos devotas. Livros sagrados sendo carregados como estandartes. Povos convertidos pela espada. Crianças ensinadas a orar antes de aprender a falar.

— Eles acreditam que o mundo é um espelho partido e que só a fé em Amara pode colar seus fragmentos. E se algum fragmento se recusar... bem, o martelo também é uma ferramenta de Deus.

Um silêncio tenso pairou por um instante. O Perséfone olhava para as imagens com um certo pesar. Eu, por outro lado, sentia uma contradição inquietante. Um reino da vida... que matava em nome da vida?

— Eles acham que estão salvando o mundo — murmurei, mais para mim mesmo.

— E talvez estejam, respondeu Oliver, sério por um instante. — Mas mesmo os anjos mais brilhantes podem queimar os olhos se você os encarar por muito tempo.

As imagens se dissiparam como poeira ao vento. Ficou apenas o nome escrito no quadro negro: Teocracia de Amara.

E abaixo dele, em letras menores, uma citação:

"A luz, quando fanática, cega mais que a escuridão."

Eu não sabia quem tinha escrito aquilo — talvez o próprio professor, ou talvez... um dos mortos. Mas naquele instante, as palavras pareceram verdadeiras demais para serem apenas metáfora.

O professor Oliver soprou mais uma nuvem de fumaça púrpura, que se contorceu pelo ar como uma serpente mágica até tomar forma diante de nossos olhos. O som de tambores secos e cantos guturais ecoou entre as paredes da sala universitária onírica. Quando a imagem clareou, vimos o deserto — mas não um deserto morto, e sim um mar de areia vibrante, povoado por embarcações com velas triangulares cortando dunas como se fossem ondas.

E agora, meus queridos leitores e passageiros de primeira viagem nas trilhas do impossível… conheçam o 

Beilhique de Aegiskhan

— bradou Oliver, com uma reverência exótica, como se estivesse apresentando um bando de nobres piratas em uma corte real. — Também subordinados ao grande Khaganato de Khazara, seus irmãos de sangue e aço. Mas não se enganem, pois onde Khazara manda cavaleiros para o campo... Aegiskhan envia navegadores para os mares de areia e sal.

Perséfone deixou escapar uma risada breve, balançando a cabeça enquanto o professor continuava sua encenação vívida.

— Em Aegiskhan, os beis são muito mais do que generais. Eles são líderes de clãs marítimos do deserto, senhores das caravanas velozes, e comandantes das frotas que velejam pelos rios subterrâneos e pelas costas esquecidas.

A fumaça revelou grandes navios adaptados para a areia, com pás giratórias e casco resistente, tripulados por guerreiros de pele bronzeada, roupas de couro leve e lanças longas como mastros.

— São conhecidos em toda Chaia como os "Vikings do Deserto". E sim, isso é um apelido, e sim, eles o adoram. Suas embarcações são rápidas, seus bordos afiados, e suas festas duram noites inteiras sob as estrelas do Saqar, o céu do sul onde cada estrela é uma alma de guerreiro caído.

Ele girou o cachimbo e soltou outra espiral roxa, agora moldando cenas de combate: lanceiros abrindo buracos em muralhas com investidas de precisão cirúrgica, escaramuças em praias desertas, emboscadas em caravanas comerciais. O som de chifres de guerra ressoava, distante, melancólico e glorioso.

— Seus lanceiros são temidos. Há uma lenda que diz que um único batalhão de Aegiskhan deteve a investida de três legiões de Emberfell apenas com lanças e estratégia... e um pouco de areia nos olhos. — Oliver piscou, maroto.

Eu observei em silêncio. Algo naquele povo vibrava com um espírito indomável. Nômades do deserto, mas donos de uma identidade inquebrantável. Não eram apenas subordinados de Khazara. Tinham sua própria glória.

— Eles parecem… livres — murmurei.

— Livres até a última gota de suor, meu jovem leitor! Mas lembre-se, a liberdade também tem preço. Em Aegiskhan, ninguém vive sem lutar por algo. — disse Oliver, com um toque de respeito na voz.

No quadro, em letras douradas e caligrafia inclinada, surgiu o nome:

Beilhique de Aegiskhan

"Dos grãos do deserto nasceram velas. Das tempestades, heróis."

A fumaça se dissipou, e o professor girou nos calcanhares, pronto para apresentar o próximo reino — mas não sem antes lançar um olhar sugestivo para mim e para Perséfone:

— E cuidado, jovens corações: dizem que os amantes que se beijam sob a areia ardente de Aegiskhan jamais se separam. Mas isso é história para outro capítulo...

Ele piscou. Perséfone sorriu de canto.

E eu só conseguia pensar em como esse mundo, mesmo comigo estando morto, parecia mais vivo que o que deixei para trás.

O professor Oliver deu uma tragada profunda em seu cachimbo encantado, a fumaça roxa dançando pelas bordas da sala como se procurasse um palco. Seus olhos brilharam com um entusiasmo quase indecente, e seu sorriso traiu o tipo de admiração que só se vê em bardos apaixonados por histórias (ou por belas figuras femininas).

— Ah… caros leitores, preparem seus corações — ou o que resta deles após tantas revelações — pois agora adentraremos as terras do 

Principado de Galath’enor

 — Ele disse o nome com uma reverência dramatizada, como quem pronuncia a última palavra de um poema proibido.

A fumaça rodopiou, tomando a forma de grandes florestas tropicais entrelaçadas com torres de pedra negra e cristal, iluminadas por brilhos mágicos e por uma lua azulada que se erguia como um farol de poder. Em meio às sombras dançantes, silhuetas elegantes deslizavam com agilidade felina, conjurando rajadas de mana que explodiam em cores e sons quase sinfônicos.

— Subordinado ao vasto Império Thalanthir, sim, mas com sua própria batida, sua própria música. Ao contrário dos salões élficos onde as árvores falam e a razão impera, Galath’enor é regido pelos Homens-Feras… os verdadeiros senhores do instinto e da força primitiva. — O professor levantou uma sobrancelha, sua voz quase ronronando de prazer narrativo. — Lá, meus caros leitores, a magia não é estudada em pergaminhos… é sentida nos ossos, forjada no calor do combate, moldada a cada suspiro entre o bater de corações e o estalar de ossos.

A fumaça revelou uma batalha encenada: um guerreiro de aparência humana, mas com orelhas triangulares e olhos de predador, concentrando energia negra ao redor dos punhos antes de desaparecer num salto e desferir um soco que partia uma pedra ao meio. Não era apenas magia. Era corpo e alma canalizados em destruição pura.

— São os maiores magos de combate de todo o continente de Chaia. Em Galath’enor, um verdadeiro conjurador não se limita a gesticular de longe: ele pula no meio do campo de batalha e transforma o próprio corpo numa arma mística. Magia e músculo — uma combinação que, confesso, me faz invejar os mais jovens… e mais flexíveis. — Ele riu, olhando para nós por cima do ombro com uma piscadela cúmplice.

Perséfone, ao meu lado, segurava o riso atrás de uma mão delicada, tentando manter a pose enquanto o professor deixava a aula ainda mais… peculiar.

E então veio o comentário inevitável.

— E claro, quem poderia falar de Galath’enor sem mencionar… ah, as belíssimas mulheres-gato? — disse ele, com a voz repentinamente sonhadora, quase poética. — Oh, meus leitores, se as Deusas quisessem perder tempo com ciúmes, certamente teriam começado por lá. São mulheres de aparência humana, sim, mas com orelhas felinas, caudas elegantes, e olhos que brilham como lâminas sob a luz do luar. Um misto de doçura e ferocidade, como vinho apimentado ou sonho com garras.

Eu revirei os olhos, rindo sem querer.

— Você está se apaixonando por um país inteiro, professor?

— Meu caro herói póstumo, há paixões que transcendem corpos… mas algumas caudas são simplesmente irresistíveis. Literais ou não. — disse ele, levando a mão ao peito com um suspiro dramático.

No quadro atrás dele, surgiram palavras desenhadas como inscrições mágicas, brilhando em um dourado felino:

Principado de Galath’enor

"Onde o instinto é nobre, a magia dança, e o desejo ruge."

— E lembrem-se, Galath’enor não é só sedução e combate — é também onde as feras se tornam reis, e os reis… viram lendas com garras. — Oliver concluiu, batendo com o cabo do cachimbo na mesa como se fechasse um tomo sagrado.

A fumaça se dispersou, mas o calor da descrição ainda pairava no ar como o aroma de um incenso proibido. Perséfone desviou o olhar, fingindo não ver meu leve desconforto, e o professor girou em direção ao próximo destino, já preparado para nos lançar mais fundo na tapeçaria caótica e fascinante de Chaia.

O professor Oliver girou o cachimbo entre os dedos como um maestro preparando o próximo acorde, a fumaça roxa se condensando em espirais mais firmes. Com um estalar de dedos, a ponta brilhou — não em brasa, mas em uma luz dourada que perfumava o ar com algo entre mel queimado e especiarias exóticas.

— Ah... e agora, caros leitores, retornamos aos céus incendiados da linhagem dracônica. Mas desta vez, não ao trono de fogo, e sim ao seu escudo fiel, sua muralha viva: 

Principado de Veltharion

Com um gesto amplo, a fumaça desenhou vales montanhosos onde rios fumegantes corriam entre encostas, florestas temperadas e vastas plantações em terraços. No céu, dragões sobrevoavam as nuvens com imponência, mas abaixo deles, entre campos e fogões, homens e mulheres celebravam a vida de um modo muito mais... saboroso.

— Governado sempre pelo segundo príncipe de Thaldrakos — pois o primeiro carrega o fardo do império em chamas — Veltharion é mais do que um vassalo. É o guardião das rotas de acesso, o estandarte da honra dracônica em sua forma mais civilizada, e, talvez mais importante...

Oliver sorriu e deu uma piscadela lenta.

— ...é o lar da melhor culinária de todo o continente de Chaia. Sim, meus caros leitores, aqui o fogo dos dragões não apenas destrói. Ele cozinha. E cozinha com maestria.

A fumaça se transformou numa gigantesca panela de ferro fervendo sobre chamas azuis, de onde flutuavam aromas quase palpáveis. Pedaços de carne marinado em mel de fênix, arroz dourado preparado com leite de búfala-céu, bolinhos de ervas encantadas que brilhavam suavemente e, claro, a infame “trufa do trovão” — uma iguaria que, segundo Oliver, causa orgasmos espirituais em quem come.

— Veltharion não apenas alimenta o corpo. Alimenta a alma. E talvez, o ego... — Ele fez uma pausa, dramatizando com um suspiro. — Pois quem prova uma vez da cozinha de Veltharion... sempre volta. Nem que seja nos sonhos, nos pecados, ou na próxima vida.

Perséfone, sentada elegantemente ao meu lado, olhou para mim com um sorriso enigmático.

— "Lembra do nosso almoço? Algumas das receitas vieram de lá. Talvez você devesse ir aprender a cozinhar também, apóstolo", ela provocou com a mesma sutileza com que um gato empurra um vaso da estante.

O professor continuou, traçando no quadro mágico as palavras em letras de fogo suave:

Principado de Veltharion

"Escudo dos dragões, fornalha de sabores eternos, e onde o apetite é uma forma de fé."

— E lembrem-se, comedores de sonhos, que a guerra se vence com espadas... mas a lealdade se conquista à mesa. — disse Oliver com um sorriso quase paternal.

O quadro brilhou e sumiu, mas os cheiros pareciam ter se infiltrado na sala. E pela primeira vez naquela aula surreal, meu estômago — já parcialmente reanimado — roncou de leve. Perséfone riu baixinho. Oliver ouviu.

— Ah! Vejo que temos um futuro diplomata faminto por alianças gustativas! Muito bem, prossigamos... antes que todos decidam desertar a sala e invadir Veltharion pela barriga.

O professor Oliver parou por um momento. O cachimbo descansava entre os dedos como um cetro invertido, e sua expressão perdeu o tom irônico por alguns segundos. A fumaça ao seu redor não formou desta vez grandes imagens ou castelos flutuantes. Em vez disso, dançou suavemente, como se fosse conduzida por uma melodia invisível, tocada por mãos puras demais para este mundo.

— Ah... agora vamos ao contrário espelho da Teocracia Amara. Se Amara é o aço da fé, então esta próxima terra é seu coração pulsante: 

Teocracia Auramaris

A fumaça se condensou numa flor de lótus branca, que se abriu revelando uma paisagem imaculada — campos verdes eternos, rios límpidos serpenteando entre vilarejos serenos, e ao centro, uma cidade de cúpulas de cristal e mármore iridescente, como se a própria luz tivesse escolhido repousar ali.

— Lar da Última Santa Viva. Não, não estou exagerando, leitores queridos. Ela é a última mulher, ainda viva, pura e fiel o suficiente à Deusa Amara para carregar em si o eco da essência da Vida. Não como um dogma, mas como milagre contínuo.

Perséfone, sentada ainda ao meu lado, cruzou as pernas delicadamente e murmurou com uma doçura ambígua:

— Eu a vi uma vez. Ela chorava por um passarinho morto. E então o passarinho voltou a voar.

Oliver ouviu, e assentiu como se aquele simples comentário fosse o ponto final de uma dissertação complexa.

— Auramaris não conduz cruzadas. Conduz procissões. Não queima hereges, mas acolhe os errantes. Se a Teocracia Amara representa a justiça dura e resplandecente de um arcanjo, Auramaris é o colo materno onde até um assassino encontraria perdão se ousasse se arrepender.

A fumaça no quadro desenhou agora uma jovem de branco, de olhos fechados, com um sorriso sereno. Da palma de sua mão, jorrava luz líquida que caía sobre uma criança ferida e curava sua perna num piscar de olhos. Ao fundo, o templo principal de Auramaris reluzia, esculpido diretamente em pedra de luz. Algo entre alabastro vivo e o último suspiro da aurora.

— E se querem entender o poder de um coração limpo, saibam que os reis de Auramaris ajoelham diante da Santa. Pois o trono deles é apenas um banco diante da luz da Vida encarnada.

Ele se virou dramaticamente, acenando com o cachimbo.

— Se um dia vocês forem até lá, vão querer pecar menos. Não por medo. Mas por vergonha.

O nome surgiu escrito no ar com letras feitas de pétalas brancas:

Teocracia Auramaris

"Onde a misericórdia é lei, e a luz é um gesto simples de amor."

Oliver sorriu com os olhos umedecidos por alguma memória que não quis compartilhar. E então, como quem se recompõe após um sonho bom, estalou os dedos.

— Mas contenham-se, caros leitores. Temos mais reinos para visitar antes de queimar a língua com tanta doçura divina.

O professor Oliver deu uma tragada lenta no cachimbo, a fumaça roxa se dissolvendo no ar como pensamentos etílicos saindo da mente de um poeta bêbado. Com um sorriso de canto de boca, ele voltou-se para a classe – isto é, para mim e Perséfone, ainda a única plateia física ali – e girou um giz nos dedos com a leveza de um maestro antes de iniciar a sinfonia.

— Ah… e agora, meus caros leitores, adentramos o domínio do mais desbocado e irreverente dos territórios: 

Protetorado de Cloudia

— escreveu em letras tortas no quadro, como se já estivesse com um copo na mão.

A palavra Protetorado surgiu logo abaixo, sublinhada com fumaça dourada, tilintando como garrafas se chocando em brinde:

Protetorado: Uma nação ou território tecnicamente independente, mas sob a “proteção” e tutela política, militar e econômica de outra. No caso, de sua sagrada (ou etílica) pátria-mãe: Cloudia.

— Protetorado, sim, mas não se enganem. Estes homens e mulheres não se ajoelham por fé, ajoelham por tontura. Porque se há algo que rege suas vidas mais do que deuses... é álcool.

Ele estalou os dedos, e imediatamente a fumaça formou uma taberna lotada — mesas de madeira, copos tilintando, uma banda tocando violino com fúria e risos grossos enchendo o ar. Um homem barbudo erguia uma caneca de cerveja espumante e gritava algo ininteligível, mas claramente feliz demais para estar sóbrio.

— O Protetorado de Cloudia é o quintal dos aristocratas de Cloudia, um refúgio para os comerciantes mais decadentes e os pensadores mais cínicos. O vinho foi substituído por cerveja amarga e forte como aço derretido. Se em Cloudia a lógica governa, no Protetorado, a ressaca legisla.

Perséfone riu baixinho, cobrindo a boca com a mão.

— Então eles são ateus... bêbados?

Oliver ergueu o giz como quem levanta um cálice.

— Exatamente, minha cara Inevitável! Ateus, bêbados, e deliciosamente libertinos. Acreditam que se os deuses existissem mesmo, teriam inventado o álcool antes de qualquer outra coisa. Para eles, não há pecado que uma boa cerveja não perdoe.

— Mas cuidado: por trás da zombaria está um povo endurecido pela ausência de fé, mas afiado como navalha. O Protetorado forma mercenários, espiões e alforjes de moedas que pesam mais do que qualquer mandamento.

As palavras no quadro brilharam, suadas e douradas:

Protetorado de Cloudia

"Onde o álcool é rei, a fé é lenda, e ressacas são sagradas."

E então, com um ar cúmplice, o professor cochichou, como se falasse com uma câmera por cima do ombro:

— E dizem que os melhores brindes vêm de lá. Especialmente os que esquecemos no dia seguinte.

Ele sorriu largamente, como quem já teve muitas histórias inconfessáveis naquela terra. E o giz se preparou para revelar o próximo reino.