Oliver inclinou-se sobre a mesa, apoiando as mãos magras e rindo com aquele tilintar inconfundível do seu cachimbo mágico — um som que, para mim, marcava o fim de cada sessão.
— Está ficando tarde, meus caros leitores — anunciou com teatral seriedade — e nossos cérebros já fumegam mais do que este velho cachimbo. Continuaremos amanhã esta jornada por Chaia, por seus impérios e pecados, pela política dos mortos e pela ciência dos vivos.
Ele bateu palmas num ritmo cadenciado, como se desse o toque de silêncio a um salão de baile.
— Até amanhã, e sonhem com o que vimos hoje.
Enquanto o eco de suas palavras se dissipava, Perséfone ergueu-se com um sorriso travesso nos lábios vermelhos. Seus olhos brilhavam de diversão.
— Então, que tal fazermos algo divertido nos nossos aposentos eternos?
Aquele tom brincalhão quebrou o clima sério e me fez rir, mesmo sem saber exatamente o que ela queria dizer — mas já sentia que a “diversão” prometia ser bem diferente do que eu imaginava.
Perséfone me puxou suavemente pelo braço, guiando-me para fora da sala como se conduzisse um amigo travesso para uma pequena aventura.
— A diversão vai ser escolher roupas novas para você — disse com um sorriso que era ao mesmo tempo um desafio e um carinho.
— Algo que combine com a idade atual — vinte anos — e com esses seus olhos verdes que não mentem, e esses cabelos negros que parecem ter sido feitos para chamar atenção.
Ela parou um instante para me observar de cima a baixo, o olhar cheio de admiração.
— Você é bonito, sabia? Mais do que imagina.
Fui levado a um salão amplo, iluminado por velas que dançavam ao ritmo de uma brisa invisível, e logo percebi que não era um lugar comum. Esqueletos — sim, esqueletos! — trabalhavam com uma precisão quase mecânica. Teciam, costuravam, ajustavam roupas com movimentos fluidos e silenciosos. Entre eles, um se destacou: um esqueleto de bigode espesso, cuidadosamente aparado, que me encarou com um brilho de profissionalismo nos olhos vazios.
Ele se aproximou com um metro de alfaiate na mão e começou a tirar minhas medidas com uma precisão surpreendente, anotando cada detalhe. O estranho ritual parecia tão natural naquele salão místico quanto a própria respiração. Ali, naquele instante, entre ossos e tecidos, algo dentro de mim começava a se transformar — não apenas por fora, mas por dentro também.
Então, sem uma palavra, desapareceu entre cortinas de veludo e quando voltou, trazia um traje.
E que traje.
Uma camisa de colarinho alto, preta com fios de prata nas costuras, desenhada para acompanhar cada movimento do meu corpo como uma segunda pele, sobre ela, um colete de couro escuro, elegantemente ajustado, com botões de metal esculpidos com runas que se acendiam levemente quando eu respirava.
Por cima disso, uma capa curta, carmesim escuro com interior dourado, presa ao ombro esquerdo com uma rosa de ferro negro, as calças eram justas, reforçadas nos joelhos e canelas com tiras de couro entrelaçadas, como se pensadas tanto para caminhar por salões quanto por campos de batalha.
As botas, oh, as botas, negras, com solado firme e acabamento artesanal, feitas para não fazer som ao andar, perfeitas para um futuro apóstolo da morte.
— Uau... — murmurei, e por um momento esqueci que estava morto.
— Ficou bonito — disse Perséfone com a simplicidade desarmante de quem olha e enxerga mais do que o espelho mostra — Combina com o que você está se tornando.
Tentei agradecer, mas ela apenas colocou um dedo nos meus lábios.
— Não precisa — disse — vamos guardar as palavras bonitas para depois.
E então, em silêncio, nos olhamos por um instante longo demais para ser casual e curto demais para ser eterno.
O silêncio no salão era quebrado apenas pelo leve sussurrar das velas, que tremulavam como se percebessem o que estava prestes a acontecer. Eu ainda admirava a nova roupa quando Perséfone me pediu que esperasse um instante. Seu tom tinha uma calma calculada, mas seus olhos... seus olhos diziam outra coisa.
— Só um momento — disse ela, com aquele meio sorriso que parecia saber mais do que eu jamais poderia descobrir. — Preciso me trocar.
Ela desapareceu atrás de uma cortina de veludo negro, e o salão caiu num silêncio quase cerimonial. Os esqueletos alfaiates recuaram, como se compreendessem que agora não lhes cabia mais lugar. Sentei-me em uma poltrona acolchoada próxima, o novo traje ainda quente sobre minha pele, feito há poucos minutos, mas já parecendo parte de mim.
O tempo passou como nuvens pesadas deslizando por um céu de fim de tarde. Minutos longos, arrastados, o som das minhas próprias batidas cardíacas — ou o que quer que funcionasse como coração agora — era tudo o que eu ouvia.
E então ela surgiu.
A cortina se abriu como se fosse puxada pelo próprio destino e por ela passou uma visão que me fez esquecer por completo onde eu estava. Perséfone. Não como a guia, a Deusa, a voz mística no salão da aula — mas como algo diferente. Algo mais próximo. Algo infinitamente mais perigoso.
O vestido era preto como o espaço entre as estrelas, feito de um tecido que parecia absorver a luz ao seu redor e ao mesmo tempo devolvê-la em reflexos sutis, quase lunares. Longo, com fendas laterais que revelavam suas pernas com a precisão de uma lâmina bem apontada. O decote era ousado sem ser vulgar, moldado como se tivesse sido tecido por sombras apaixonadas por sua silhueta. Havia detalhes prateados ao redor dos ombros e da cintura — serpentes e rosas entrelaçadas em fios metálicos, como lembranças de quem ela era: morte e beleza, desejo e silêncio.
O cabelo estava solto, com algumas mechas puxadas para trás por presilhas negras adornadas com pequenas pérolas escuras. Os olhos dela, sempre vivos, brilhavam agora como dois portais para algo que eu ainda não estava preparado para compreender. Era uma visão que fazia parecer que a própria noite havia vestido sua melhor forma para me encontrar.
Eu tentei dizer algo. Qualquer coisa. Mas minha garganta secou antes que as palavras chegassem.
— Qual a ocasião...? — consegui murmurar enfim, sentindo-me pequeno diante daquela presença.
Ela se aproximou com passos suaves como névoa sobre mármore, e inclinou-se levemente, o sorriso voltando aos seus lábios com um ar de segredo bem guardado.
— Nós vamos nos divertir — disse, como se fosse óbvio.
E pela primeira vez, percebi que não fazia ideia do que aquilo significava. Mas, mesmo sem saber, eu segui ela.
Porque como se diz não a uma Deusa que sorri como se fosse pôr o mundo inteiro de joelhos só pra te ver sorrir de volta?
Ela deu um passo à frente, e a luz tênue do salão vestiu sua silhueta com reverência. A cauda do vestido negro arrastava-se atrás dela como a noite seguindo a lua. Antes que eu pudesse perguntar para onde iríamos com tanta elegância, ela tomou meu braço com delicadeza e sussurrou com um sorriso misterioso:
— Vamos ao teatro. Nada melhor do que arte para temperar a morte.
E assim fomos, atravessando corredores silenciosos e jardins que pareciam flutuar no tempo, até que as colunas de mármore do grande teatro dos mortos se ergueram à nossa frente como um templo erguido à beleza e à decadência.
O caminho até o teatro foi tranquilo, quase onírico. Perséfone caminhava à minha frente com a segurança de quem conhecia cada curva daquele mundo morto como a palma da própria mão. E eu, ainda tentando entender o peso e o caimento da roupa nova — e, mais do que isso, a presença dela ao meu lado — seguia como um personagem empurrado por um roteiro que ainda não havia lido.
O teatro em si era uma construção grandiosa, antiga e elegante, feito de mármore esbranquiçado que cintilava sob uma luz que não vinha de lugar algum. As colunas altas sustentavam um teto onde constelações se moviam lentamente, como se o firmamento tivesse decidido repousar ali só por uma noite.
Lá dentro, o ambiente era iluminado por candelabros flutuantes e fileiras de assentos de veludo púrpura. O lugar estava cheio, estranhamente cheio — mas não de vivos. Esqueletos elegantemente vestidos ocupavam os lugares com a solenidade de um público nobre. Alguns usavam máscaras teatrais, outros mantinham cartolas ou véus, mas todos pareciam profundamente envolvidos no espetáculo que estava prestes a começar.
Perséfone escolheu dois lugares na primeira fileira. Sentou-se com uma elegância natural, cruzando as pernas devagar, e me lançou um olhar brincalhão, como se dissesse: "Aprecie, essa é a melhor parte da eternidade."
As cortinas subiram com um rangido melancólico e logo os atores surgiram — esqueletos articulados, vestidos com trajes renascentistas, maquiados e iluminados de forma dramática. A peça... ah, a peça. Uma tragédia de amor e morte, claro. Algo entre "Romeu e Julieta" e uma versão ainda mais sombria, onde dois amantes de reinos rivais tentavam se unir em um mundo que os empurrava à destruição.
Havia duelos com espadas enferrujadas, beijos que tilintavam ossos contra ossos, juras de amor eterno ditas com vozes encantadas por necromancia e um lirismo que fazia a morte parecer poesia. Em um dado momento, o esqueleto de Julieta arrancou as próprias costelas em desespero, oferecendo-as ao esqueleto de Romeu que, em troca, cravou uma adaga em si mesmo feita de uma vértebra sagrada. Um coro de caveiras cantava ao fundo uma melodia que parecia sair de um piano quebrado e de um coração que nunca mais bateria.
E eu... eu ri. Rimos.
Não do drama — não do amor ou da dor — mas do exagero, da teatralidade macabra, da maneira como até os mortos pareciam rir de si mesmos. Perséfone apoiou a cabeça no meu ombro em certo momento, os olhos brilhando com divertimento genuíno.
— Arte é o que resta quando o tempo já levou tudo — sussurrou — Até o amor, às vezes, sobra por aqui.
Naquele momento, com o teatro inteiro encantado por uma história que já terminou mil vezes e continua sendo contada mesmo assim, percebi que estar morto, naquele mundo entre o fim e o recomeço, podia ser... leve.
E por um instante, só um instante, esqueci completamente que aquilo tudo — o traje novo, a Deusa ao meu lado, o teatro de esqueletos — não era um sonho. Era apenas... o começo.
Com o fim da peça, não houve cortinas fechando, nem músicos em despedida — apenas o silêncio das velas se apagando uma a uma e o ranger discreto dos esqueletos curvando-se em reverência final. Os aplausos partiram apenas de nós dois, e mesmo assim, num gesto simbólico, como se quiséssemos agradecer não apenas pela atuação, mas pela estranha beleza de tudo aquilo.
Saímos do teatro de pedra antiga sem pressa, como se o tempo houvesse se afrouxado em nossos pulsos, e cada passo ecoava no chão polido como um sussurro entre lembranças.
Do lado de fora, o mundo parecia outro — ainda mais quieto, ainda mais mágico. As ruas por onde caminhamos eram estreitas, curvas, adornadas por arcos cobertos de trepadeiras e flores que não murchavam. As paredes pareciam ter ouvido mil histórias e, por algum feitiço sutil, devolviam apenas as mais doces na forma de fragrâncias e brisas mornas. Perséfone caminhava ao meu lado em silêncio, mas era um silêncio confortável, o tipo que só se compartilha com quem se entende com um olhar.
Ela me levou por vielas esculpidas em mármore negro até um canal escondido entre campos ondulantes de girassóis, cujas cabeças douradas seguiam, curiosas, o reflexo da lua na água. A embarcação à nossa espera era estreita, elegante, com entalhes de flores e espinhos correndo por suas laterais, e adornada por pequenas lanternas presas aos bordos, que brilhavam com uma luz tênue e azulada. O barqueiro esquelético nos saudou com um gesto cortês da cabeça — usava um chapéu de feltro puído e um lenço no pescoço, como se ainda se lembrasse da elegância de outra vida.
Subimos no barco, e ele partiu suavemente, como se navegasse sobre o próprio véu entre mundos. O som do remo cortando a água era ritmado, hipnótico, e o cenário parecia retirado de um sonho antigo. De ambos os lados do canal, os girassóis se estendiam até onde a vista alcançava, dourados e majestosos, balançando com a brisa como se acenassem para nós. Acima, o céu era uma tapeçaria costurada à mão, salpicado de estrelas que pareciam acender só para assistir nossa travessia.
Perséfone, sentada ao meu lado, deixou os dedos tocarem a borda da água, e a superfície respondeu com pequenos círculos prateados. Seu vestido preto, ainda mais belo sob a luz da noite, reluzia com um brilho sutil que lembrava asas de mariposa. Quando me virei para ela, flagrei um sorriso quase nostálgico, como se aquele momento a tivesse transportado para um tempo que mesmo ela havia esquecido.
— Aqui… — disse ela, a voz baixa, quase como se falasse consigo mesma — às vezes eu consigo sentir que tudo ainda pode ser bonito. Mesmo a eternidade, mesmo a morte.
Assenti, sem palavras, sentindo que qualquer som que eu emitisse quebraria algo frágil demais para ser remendado. E assim navegamos — dois mortos flutuando entre flores vivas, entre mundos, entre o que foi e o que podia vir a ser. O barqueiro, sempre silencioso, remava como quem compreendia mais do que dizia, e naquela noite, por um breve instante, eu me esqueci completamente do motivo de estar ali. Não era aprendizado. Não era missão. Era apenas… presença.
E era suficiente.
O barco encostou suavemente à margem, e o barqueiro esquelético inclinou-se com uma reverência silenciosa, como um fantasma cortês encerrando sua parte no espetáculo daquela noite. Perséfone desceu primeiro, os passos graciosos fazendo seu vestido negro ondular como sombra líquida, e estendeu a mão para mim com um sorriso que ainda trazia a luz suave dos girassóis. Quando tocamos o chão firme novamente, percebi que a noite estava longe de acabar.
Ela me guiou por uma alameda iluminada por lanternas flutuantes até um restaurante entalhado diretamente na rocha de uma colina baixa, com janelas que se abriam para a vastidão estrelada do submundo. Era um lugar discreto, mas luxuoso, com mesas de mármore branco e guardanapos bordados com fios dourados, como se o tempo ali tivesse esquecido a pressa e abraçado apenas o requinte. Sentamo-nos à mesa mais afastada, com vista para um lago escuro onde pequenas criaturas luminosas dançavam sob a superfície.
Os pratos que chegaram — os garçons eram esqueletos também — eram tão belos quanto o ambiente — porções finamente decoradas de ingredientes que eu não reconhecia, mas cujo sabor beirava o divino. O vinho era de uma coloração rubi profundo, servido em taças longas que capturavam a luz das velas em espirais cristalinas. Conversamos sobre a peça, sobre o teatro, sobre a estranha graça de esqueletos apaixonados. Ela ria com facilidade, e eu me vi querendo dizer mais só para vê-la rir de novo.
Em certo momento, enquanto os talheres repousavam no prato já vazio e o vinho descia com suavidade, Perséfone inclinou-se ligeiramente para frente e apoiou o queixo nas mãos entrelaçadas, os olhos fixos nos meus.
— Pode me chamar de Pers. — disse, com um tom íntimo e leve, como quem oferece um segredo guardado há muito tempo. — Poucas pessoas me chamam assim. Mas você pode.
Aquela permissão, singela e carregada de significado, aqueceu o peito frio que eu havia trazido da morte. Assenti, um pouco sem jeito, e sorri. Ela então se recostou na cadeira, o olhar dançando de vinho para vela, até pousar de novo em mim.
— Agora falta você. Precisa de um nome. — disse ela, com um ar quase solene.
— Um nome? — perguntei, surpreso. — Mas... eu já tenho um nome, não tenho?
Ela balançou a cabeça devagar, como se dissesse que sim, mas que aquilo não bastava.
— Você tinha um nome que esqueceu. Mas aquele morreu com o corpo antigo. O que você é agora… precisa de um nome novo, verdadeiro.
— Tem alguma sugestão?
Pers pousou a taça na mesa e me encarou por um instante longo, como se medisse minha alma.
— Que tal… Hades?
O nome pairou entre nós, pesado e ao mesmo tempo familiar, como um manto que já me conhecia antes mesmo de eu vesti-lo.
— O que significa?
— Guardião da Morte — respondeu ela, com um leve sorriso, os olhos fixos nos meus. — Na língua antiga. É mais do que um título. É uma lembrança do que você é. Do que está se tornando.
Pensei por um instante. E então, pela primeira vez desde que morri, senti que algo se encaixava.
— Hades… — repeti, deixando o som do nome descansar sobre a língua como se o experimentasse. — Sim. Acho que gosto disso.
— Eu sabia que iria gostar — disse Pers, levantando sua taça em um brinde silencioso.
Ergui a minha também. E naquele toque sutil de cristal, selamos algo que nenhum de nós soube nomear direito… mas ambos entendemos.
As taças tilintaram suavemente quando se encontraram mais uma vez, selando aquele pacto não escrito que nascia entre olhares, entre silêncios, entre nomes. E, como se aquele gesto libertasse palavras que haviam ficado adormecidas sob a língua, começamos a falar.
No início, timidamente. Comentários sobre o vinho, o sabor estranho mas envolvente das ervas no prato principal, as cenas favoritas da peça de esqueletos. Mas pouco a pouco as palavras se aprofundaram, como raízes procurando água em terra seca.
A luz do restaurante era suave, banhando a mesa com um brilho dourado que parecia quase mágico, como se o próprio tempo tivesse desacelerado ali dentro. Pers olhou para mim com um misto de seriedade e ternura, seus olhos refletindo não apenas a chama das velas, mas séculos de existência. Ela respirou fundo antes de continuar.
— Sabe, Hades — disse ela, a voz mais baixa, quase hesitante — eu nunca fui mortal. Nunca tive a chance de viver de verdade, de viver sem sentir o peso do fardo dado a mim desde minha criação. Sempre fui uma Deusa, algo além do tempo e das emoções que vocês carregam. E, às vezes, isso me pesa — é como estar presa numa eternidade onde tudo é constante, menos eu.
Ela passou a mão pelos cabelos prateados, que dançavam levemente com a brisa trazida por uma janela aberta.
— Este domínio, os campos de girassóis, é uma extensão de mim. Ali guardo segredos que o mundo profano não pode sequer imaginar. É meu refúgio e minha fortaleza, e é por isso que nunca permito que ninguém adentre sem que eu permita. Nem mesmo os mestres que caminham comigo têm tal privilégio.
Eu a observava fascinado, sentindo a profundidade daquela alma imortal que, paradoxalmente, parecia carregar uma solidão antiga demais para ser dita em palavras comuns.
— Você foi o primeiro a atravessar essa fronteira — continuou Pers, com um leve sorriso — e isso diz muito sobre você, Hades. Sobre aquilo que ainda está por vir.
Ela fez uma pausa, seus olhos vermelhos como rubis fixos nos meus.
— Mas me diga, o que pesa no seu coração? O que do seu passado te trouxe até aqui, até mim?
O silêncio que se seguiu foi um convite, um espaço sagrado onde nossas histórias começariam a se entrelaçar. Eu senti que, naquela noite, não estávamos apenas compartilhando uma mesa e um vinho caro — estávamos dando os primeiros passos de um destino que se revelaria muito maior do que ambos podíamos imaginar.
Falei sobre o mundo de onde vim. Sobre a estranheza de acordar num lugar onde os mortos tinham propósitos e sentidos mais claros que os vivos. Falei das ruas de pedra, das árvores do outono, da escola, da primeira vez que vi a neve.
Pers ouvia em silêncio, às vezes sorrindo, às vezes apenas respirando fundo, como se estivesse provando cada lembrança em silêncio. Quando mencionei minha irmã, sua expressão mudou. Ela não disse nada. Apenas baixou levemente os olhos, como se aquela palavra – “irmã” – tivesse um peso sagrado demais para ser comentado.
Eu contei de como ela era pequena, curiosa, com olhos sempre acesos e um jeito de se pendurar nos meus braços quando queria atenção. De como a morte dela partiu algo em mim por deixá-la ir.
— Você sente falta dela — disse Pers, não como uma pergunta, mas como um reconhecimento silencioso.
Assenti. Ela não comentou mais nada, mas seu olhar se demorou em mim com uma ternura estranha, misturada a um tipo de tristeza que não vinha de mim. Algo dentro dela parecia ecoar aquela dor. Algo que talvez eu ainda não entendesse.
Depois de um tempo em silêncio, ela se levantou, esvaziou a taça em um gole elegante, e caminhou até uma das janelas do restaurante que se abria para um horizonte dourado.
— Sabe… como eu disse antes, você é a primeira pessoa a pisar aqui — disse ela, de costas para mim, a voz baixa, quase como um segredo confessado ao vento. — Nos meus campos de girassóis.
Disse ela de novo como se estivesse reafirmando, mostrando que isso tinha um peso imensurável.
Me aproximei devagar, como se temesse que minhas pegadas quebrassem algo sagrado.
— Nem os outros mestres podem sair de seus domínios — continuou — Todos estão presos a seus papéis, a seus títulos, a suas bibliotecas, suas torres, seus tronos.
Ela virou o rosto por sobre o ombro e me olhou, um meio sorriso brincando nos lábios.
— Mas eu… eu criei esse lugar só para mim. Um refúgio onde posso existir sem as correntes do mundo debaixo da terra. Onde posso ser apenas… Pers.
As flores lá fora dançavam sob uma brisa que não vinha de lugar algum. Um mar dourado sob uma lua pálida, mais bela do que qualquer céu que eu lembrasse. E, por um instante, percebi o que ela quis dizer. Estar ali, com ela, era mais do que compartilhar um jantar. Era estar dentro de algo que ninguém mais havia tocado.
E por algum motivo, ela me deixou entrar.
— Por que eu? — perguntei, deixando as palavras escaparem baixas, quase arrastadas pelo som das flores dançando ao vento. — Por que me deixou entrar aqui?
Ela não respondeu de imediato. Apenas continuou olhando os girassóis, como se ouvisse uma canção antiga que só ela conseguia entender. O campo parecia respirar com a gente — lento, morno, vivo de um jeito estranho. A luz da lua caía sobre os ombros dela como véu prateado, e eu fiquei esperando. Paciente, mas inquieto.
— Quando você dominar os três aspectos… — disse ela, enfim, com a voz doce e firme, sem me encarar ainda — e quando aprender o quarto comigo…
Virou-se então, e nossos olhos se encontraram. Naquele instante, senti o ar entre nós ficar denso como uma promessa não dita. Os olhos dela tinham algo de triste, algo de decidido. Algo que me prendeu como corrente feita de flor.
— …eu conto por quê.
Ela estendeu a mão para mim. Um gesto simples, mas cheio de um significado que eu não sabia traduzir. A ponta dos dedos brancos brilhava sob o luar, e por um momento, só por um, pensei se aquilo tudo era mesmo real. Mas o calor da palma dela ao tocar a minha era quente demais pra ser sonho.
— Vem. Quero te mostrar algo.
Seguimos sem pressa, deixando o restaurante, os talheres prateados e os vinhos caros para trás, cruzando uma escadaria em espiral cercada por lanternas flutuantes que oscilavam no ar como vaga-lumes encantados. A cada degrau, os sons do mundo iam diminuindo, até que tudo o que restou foi o farfalhar dos girassóis se abrindo com a noite.
O caminho entre as flores se formava por vontade própria, como se o campo nos reconhecesse. As pétalas roçavam meus braços enquanto passávamos, e o cheiro era doce, quente, com algo de infância, de saudade, de vida antiga. Caminhei atrás dela, sentindo o coração morto bater como se estivesse lembrando de viver.
Pers ia à frente, cabelos longos deslizando como seda sobre o vestido escuro, os pés descalços mal tocando o chão. E eu, apenas a seguia. Sem saber onde estava indo. Sem querer ir pra nenhum outro lugar.
No começo, era só ela — Pers — com aquele sorriso brincalhão que parecia nascer da própria terra, olhos brilhando como se guardassem segredos antigos enquanto dançava entre os girassóis. Suas provocações vinham leves, quase infantis, um convite disfarçado de desafio. “Você corre tão devagar que até as flores me alcançam,” ela dizia, e eu sentia um calor estranho no peito, como se aquela voz quebrasse as sombras que habitavam meu ser.
Eu tentava acompanhar, mas ela era um relâmpago dourado entre as hastes altas, seu cabelo branco esvoaçando como asas prateadas no sol. A cada vez que eu me aproximava, ela ria — uma risada que tinha o sabor da liberdade e da eternidade misturadas — e escapava com agilidade, brincando de me provocar como uma criança que conhece as regras do jogo, mas prefere inventar outras.
— Vamos, Hades. ela cutucava.
— Não me diga que só porque morreu esqueceu de como brincar.
Aquele apelido, dado com leveza e proximidade, ainda soava estranho, mas me fazia sorrir. Era impossível resistir àquela provocação que vinha acompanhada de uma ternura escondida.
A cada passo, o cheiro da terra úmida, misturado ao perfume doce das flores, enchia o ar. O sol aquecia a pele e fazia a luz dançar nos girassóis, criando sombras alongadas e douradas que pareciam envolver nossos corpos numa aura mágica, fora do tempo. Sentia o coração batendo mais forte, não só pelo esforço da corrida, mas porque a presença dela fazia tudo pulsar diferente.
Logo, as provocações deram lugar a uma brincadeira verdadeira. Começamos a correr — de verdade — como crianças esquecidas do mundo, corríamos entre os caules altos, rindo sem medo, rindo como se o peso do passado e da morte não existisse naquele instante. Eu sentia a liberdade no ar, sentia que podia respirar pela primeira vez em eras.
Ela sumia e reaparecia, um vulto ágil e radiante, e quando me alcançava, seu toque era leve, uma faísca que queimava e ao mesmo tempo aquecia.
— Tá com você!
Sussurrou, quase um desafio, e logo estávamos girando, rodopiando entre as flores, os girassóis se inclinando ao nosso redor como testemunhas silenciosas daquele momento roubado ao destino.
O chão chegou sem aviso, e caímos juntos entre as flores, o mundo reduzido ao calor do corpo dela tão perto do meu, ao ar quente que escapava entre nossos lábios, à suavidade do silêncio que caiu como um manto entre nós. Senti a respiração dela, o sussurro de vida e mistério, e seus olhos — profundos, quase hipnóticos — prenderam os meus com uma força que não precisava de palavras.
Ali, deitados entre os girassóis, o tempo parou, como se o mundo tivesse decidido esperar. O vento trouxe um suspiro leve, uma promessa antiga, e naquela quietude sagrada, percebi que algo em mim estava mudando. Não era só o corpo que encontrava juventude, não era só a pele que sentia como se um sol estivesse brilhando. Era a alma, talvez pela primeira vez, que se deixava tocar.
— Você entende, Hades? — sussurrou ela, radiando uma luz comparável com o próprio sol.
Eu só podia assentir, porque naquele instante, entre risos, suspiros e flores douradas, entendi que aquele lugar, aqueles momentos, eram a chave para algo muito maior — uma dança entre a vida e a morte que eu estava apenas começando a aprender a dançar.
O ar parecia suspenso entre nós. O tempo desacelerava e tudo ao redor se desfocava enquanto eu sentia o calor da pele dela tão perto dos meus lábios. O perfume sutil que carregava, como um sussurro de verão, preenchia meus sentidos, e o toque delicado das mãos dela em meu rosto fazia meu coração bater em compassos que eu nunca tinha sentido antes.
Quando nossos lábios se tocaram pela primeira vez, foi como um despertar lento e doce, um encontro de almas que se buscavam sem pressa nem medo. O beijo começou suave, quase hesitante, como se estivéssemos descobrindo juntos o que aquilo significava, e aos poucos ganhou força, profundidade, um fogo contido que ardeu silencioso entre nós.
Meus pensamentos se perderam no sabor dela, na textura dos seus lábios, na forma como seu corpo se moldava ao meu. A respiração dela misturava-se à minha num ritmo perfeito e inesperado. Ela fechou os olhos e sussurrou palavras que pareciam feitas só para mim:
— É o primeiro beijo que eu dou.
Naquele instante, um sorriso trêmulo escapou dos meus lábios e eu confessei sem hesitar:
— Eu também nunca tive tempo para isso na minha vida passada.
Havia uma ternura imensa naquele momento, uma mistura de descoberta e vulnerabilidade que tornava tudo ainda mais real e intenso. O beijo durou o que pareceu uma eternidade comprimida num só instante de paixão e silêncio, um tempo em que éramos só nós dois, flutuando entre girassóis dourados e o suspiro suave do vento.
Ela segurou minha mão com firmeza quando finalmente nos afastamos. Seus olhos brilhavam com a luz tênue da emoção.
— Eu não sabia que um beijo podia ser assim — disse ela num sussurro quase perdido na brisa.
Eu sorri, sentindo que algo profundo começava ali.
— Então vamos viver tudo o que nunca tivemos antes.
E naquele olhar trocado ficou selada a promessa de um começo novo, uma história escrita com toques e suspiros, em meio ao silêncio e à beleza dos campos que nos abraçavam. Enquanto o sol se punha no horizonte, eu sabia que nada jamais seria igual.
Nós queríamos que aquele momento durasse uma eternidade. No silêncio dourado dos campos de girassóis, cada folha dançava ao sabor da brisa como se estivesse aplaudindo algo sagrado e secreto. Mas o céu começava a clarear, tingido por tons suaves de pêssego e lavanda. O dia nascia, silencioso e inevitável, rasgando o véu noturno da eternidade que haviam partilhado.
Com certa relutância, trocamos de roupa. Pers voltou ao seu uniforme escolar tradicional Japonês, o tecido branco assentando-se com perfeição sobre sua silhueta elegante. Os longos cabelos brancos foram presos em um laço simples, mas nem mesmo isso diminuía o brilho que emanava dela.
Antes que eu pudesse perguntar, ela sorriu e me entregou uma nova muda de roupas. Eram simples à primeira vista, mas havia algo nelas — um design pensado, funcional e charmoso.
Calças de couro maleáveis, uma camisa clara de tecido leve que abraçava o peito e os braços com naturalidade, era meio provocativo, aberto no peito apenas com cordões segurando para não mostrar demais, acompanhada de um cinto de couro grosso, cheio de pequenas bolsas e fivelas prateadas. Vesti tudo sentindo-me, de certo modo, mais eu mesmo do que jamais fora em vida.
Caminhamos juntos pelos corredores do colégio, e a arquitetura antiga parecia observar nossos passos com olhos de pedra. O som dos nossos sapatos ecoava com um ritmo calmo, e mesmo o silêncio parecia cúmplice do que havíamos compartilhado. Quando abrimos as portas da sala, Oliver já estava lá, inclinado sobre a mesa como sempre, o cachimbo equilibrado no canto dos lábios, soltando fumaça cor púrpura.
Ele nos olhou e sorriu de lado, com aquele ar de quem já sabia de tudo antes mesmo de acontecer.
— Ah... O casalzinho de leitores retorna! — exclamou ele, com um estalar de dedos e um gesto teatral. — Como foram os estudos extracurriculares? Espero que tenham aprendido algo mais valioso que geopolítica e necromancia.
Pers disfarçou uma risada com a mão, sentando-se com uma elegância casual, enquanto eu tentava esconder um sorriso tolo. Oliver inclinou-se ainda mais para frente, apoiando o queixo nas mãos, os cotovelos na madeira, e soprou uma nuvem de fumaça que desenhou um coração no ar.
— Vocês sabiam — disse ele, como se recitasse uma poesia antiga — que até as estrelas se apaixonam uma vez a cada milênio? Só espero que, quando explodirem, não levem minha casa póstuma junto.
Pisquei devagar, sem saber se ele estava apenas brincando ou lançando alguma profecia disfarçada. Com Oliver, nunca se sabia. Mas naquele instante, envolto por fumaça mágica, olhares cúmplices e ecos de um beijo ainda fresco na alma, senti que mesmo as provocações carregavam carinho.
Que, de algum modo, todos ali — vivos ou mortos — sabiam que algo tinha mudado. Que um novo capítulo havia começado.
Eles queriam que aquele momento durasse uma eternidade — e eu também queria. Ainda sentia o gosto do beijo nos lábios, o calor dos dedos dela entrelaçados nos meus, e o perfume sutil de flores noturnas que parecia vir da própria pele da Pers.
Olhei para Pers. Ela me olhou de volta. E, mesmo que ninguém dissesse mais nada, sabíamos o suficiente. Tínhamos cruzado uma linha invisível. E, naquele novo território, tudo ainda era desconhecido — mas não assustador. Era como caminhar na beirada de um novo mundo. Juntos.