Oliver surgiu por detrás das cortinas violetas como se estivesse voltando de um número de mágica. Limpou as lentes de seus monóculos com um lenço invisível, tragou lentamente o cachimbo — que soltava pequenas notas musicais no ar, como se estivesse afinado com o que viria — e então se postou no centro da sala.
— Ah, meus caros leitores, depois de tanto amor nos campos dourados, é hora de voltarmos à poeira da estrada e ao tilintar das moedas — disse com um sorriso torto, o olhar faiscando sob as sobrancelhas espessas. — E que lugar melhor para isso do que a indomável, irreverente, perigosa...
Cidade Livre de Valéria
Com um estalar de dedos, o mapa de Chaia girou no ar e parou com precisão sobre um ponto vibrante e iluminado, à beira dos territórios que cultuam Athena, a Deusa da Guerra e da violência. A borda do mapa ali tremeluzia em vermelho e dourado, como se sentisse o calor da pólvora e o cheiro da liberdade.
— A Cidade Livre de Valéria — disse ele, fazendo uma pequena reverência como se saudasse uma rainha rebelde — não pertence a império algum, não se curva diante de reis nem de Deuses. E embora esteja colada nos limites da fé militante de Athena, ela se mantém firme, como uma flor de ferro entre espadas.
Ele caminhou devagar, como se estivesse desfilando por suas ruas caóticas e cheias de vida.
— Valéria é um caos ordenado por códigos próprios. Uma cidade construída sobre contratos, alianças temporárias e promessas que muitas vezes valem mais do que sangue. Lá, a moeda mais valiosa não é ouro, é reputação. Mercenários de todas as raças e credos vivem em suas muralhas de pedra negra e varandas coloridas, prontos para vender a lâmina, a magia ou o silêncio — dependendo do preço.
Com um gesto quase cerimonial, Oliver tocou o próprio peito com um dedo magro e enrugado, como se sentisse sob a pele algo que ainda batia, mesmo depois da morte.
— O nome Valéria — disse ele, a voz mergulhada em saudade disfarçada — vem da primeira hierarca da cidade. Uma mulher de fogo e aço. Ex-namorada minha, se querem saber. Ah… Valéria. Feroz, livre, e absolutamente insuportável quando contrariada.
Ele suspirou, deixando o cachimbo escorregar levemente no canto da boca, como se o peso daquela lembrança exigisse menos rigidez.
— Ela rompeu com Umbrenor quando ainda era jovem. Pegou assassinos, poetas bêbados e andarilhos, e com eles fundou uma cidade que não se curva a nenhum trono. Sem reis. Sem dogmas. Só… liberdade.
Eu não consegui esconder a expressão de descrença no rosto — Oliver, um romântico? Um homem com aquele ar eternamente rabugento e teatral, envolvido em algo tão... humano? Pers percebeu de imediato. Ela sempre percebia.
— Eles viveram na mesma época — explicou ela, com uma ternura sutil nos lábios — Foi uma história linda… e triste. Um amor impossível, como quase todos os que valem a pena. Posso te contar, se quiser. Sempre fico emocionada quando...
Antes que ela pudesse terminar, uma espessa nuvem de fumaça púrpura se ergueu ao nosso redor, como cortinas fechando um palco prestes a mudar de ato.
— Caros leitores — anunciou Oliver, com ares de maestro contrariando os violinos — ainda não é hora de ficarmos emotivos. Guardem as lágrimas e suspiros. Temos uma aula a terminar antes que o sino da eternidade nos cobre presença.
Pers soltou uma risadinha contida, mas seus olhos ainda traziam vestígios de um passado que, por um instante, quase ressuscitou entre nós.
O cachimbo soprou uma nuvem de notas musicais roxas, como sinos distantes ecoando pelas colinas, quase uma medida desesperada para mudar de assunto.
— E falemos do Festival do Vento Livre... Ah, três dias e três noites onde a música não para, onde dançam os corpos e os corações, e onde até os Deuses, se ousassem pôr os pés lá, seriam convidados a cantar ou calar. A cada ano, a cidade se transforma num grande palco, com músicos pendurados em telhados, malabaristas em cordas entre torres, e dançarinos que tomam as ruas até o último grão de poeira parecer brilhar.
Ergueu os braços como quem evocava um brinde invisível.
— Valéria é isso. Um grito contra tudo que é estático. Uma fogueira acesa na beira da fé. Um beijo dado antes da guerra.
Depois piscou, deixando que o silêncio pousasse como poeira após um desfile.
— E agora, me digam, meus atentos leitores... Que danças apaixonadas vocês dariam nesta cidade de sombras e estrelas?
A chama do cachimbo se curvou como se dançasse também e senti um leve rubor nas bochechas de porcelana da Pers, adicionei uma nota mental para convidá-la para dançar depois.
Oliver caminhou até uma das paredes forradas de mapas e puxou um tecido azul-escuro que cobria uma ilustração antiga.
Assoprou uma fumaça roxa nele e revelou em alto relevo a cidade de Valéria que se erguia com torres tortas e bandeiras em cada beiral, enquanto figuras encapuzadas e cavaleiros de armaduras leves se misturavam na multidão.
— Mas é claro — disse ele, encostando os dedos no cachimbo como se acariciasse uma lembrança — apesar das contribuições em ouro de todos os reinos do mundo, nenhuma cidade se sustenta apenas na ideia de liberdade. Até o caos precisa de estruturas, ainda que disfarçadas de anarquia. E Valéria tem suas forças, suas sombras, seus nomes sussurrados em tabernas e acordos selados ao luar.
Movido pela curiosidade, voltei o rosto para Pers, prestes a perguntar por que todas as nações enviavam dinheiro para Valéria. Mas antes mesmo que eu abrisse a boca, Oliver ergueu um dedo no ar, como se lesse meus pensamentos na fumaça púrpura que pairava ao nosso redor.
— Ah, Valéria… — disse ele, com aquela voz de quem saboreia cada sílaba — Os cofres se abrem não por generosidade, mas por estratégia. As nações que veneram Athena temem algo que habita além de suas fronteiras. E, caro leitor… — ele sorriu para o vazio, como se olhasse diretamente para um público invisível — ...financiar Valéria é a maneira mais elegante de conter a influência daquelas que marcham sob o estandarte da violência... e da guerra.
Fez uma pausa dramática, deixando a fumaça dançar em redemoinhos teatrais, depois completou, com um brilho maroto nos olhos:
— Ambos os blocos fazem fronteira com um reino cuja natureza maligna exige uma introdução à altura. Mas, se me permitir… falarei dele no momento certo.
Assenti em silêncio. Debater com Oliver era como tentar refutar uma peça de teatro em pleno ato final. Ele seguia o enredo que escrevia na própria cabeça, com a convicção inabalável de um autor que também é ator — e único espectador de sua própria genialidade.
Após, ele assoprou usando seu cachimbo e quatro figuras, cada uma representando uma das principais facções da cidade apareceram.
— Os Gaviões de Ferro. Mercenários de elite. Peritos em estratégias, espionagem e contratos de guerra. Usam armaduras leves, forjadas com escamas de aço preto, e seu símbolo é um olho atravessado por uma flecha. Dizem que, se um Gavião aceitar uma missão, ela será cumprida — ou ele morrerá tentando. E eles raramente morrem.
Deslocou-se para a figura seguinte, uma mulher de olhos cobertos por um véu dourado.
— A Corte de Névoa. Místicos, ilusionistas, espiões. São artistas da enganação e da beleza. Seus membros nunca mostram o rosto, e tudo que dizem pode ou não ser verdade. Governam a cidade de dentro dos salões de seda, dos becos cheios de fumaça, dos sonhos que não se consegue esquecer.
A terceira figura era um ancião com uma balança numa mão e um pergaminho queimado na outra.
— O Pacto Cinzento. Juristas, escribas, contadores. Parece chato? Talvez. Mas são eles que garantem que os contratos sejam cumpridos à risca. Nada escapa à letra miúda quando um Cinzento está envolvido. Eles comandam o verdadeiro poder de Valéria: o peso da palavra escrita.
Por fim, um jovem com cabelos soltos, corpo coberto de tatuagens em espiral e uma harpa nas costas.
— E os Filhos do Vento. Artistas, músicos, poetas — e assassinos, quando a arte assim exige. São os rostos do festival, os corações pulsantes que mantêm a cidade viva. Dizem que tocam canções que matam, declamam versos que enlouquecem, e fazem amor como se fosse a última noite do mundo.
Enquanto a fumaça sumia no ar, Oliver complementou com um suspiro quase terno.
— Juntas, essas quatro casas mantêm Valéria em seu delicado equilíbrio. Não há rei, mas há respeito. Não há exército, mas há promessas. Não há dogma, mas há paixão. E cada uma delas tem voz quando se aproxima o Festival do Vento Livre, quando o povo vota em um novo Hierarca da cidade, alguém que não governa... mas representa.
Ele voltou à mesa, girando seu cachimbo entre os dedos.
— E, ah, meus caros... Nem todos os Hierarcas sobrevivem ao fim de seus mandatos de cinco anos.
Ergueu uma sobrancelha, como quem lança uma isca a um público silencioso.
— Mas isso... isso é história para amanhã.
A fumaça agora subia em espirais largas, como se imitasse o rastro de um pássaro voando alto sobre a cidade.
— Por hoje, fiquem com essa ideia: liberdade... não é ausência de correntes. É o direito de escolher quais correntes se vão quebrar.
E então se sentou devagar, como quem se encosta num trono de histórias, esperando as perguntas que talvez não viessem — ou talvez mudassem o rumo de tudo.
Enquanto Oliver folheava lentamente suas anotações, a fumaça de seu cachimbo formava espirais, lançando sombras trêmulas sobre as paredes lisas da sala de aula. Sentados lado a lado, Pers e eu estávamos próximos o bastante para compartilhar o mesmo silêncio — aquele tipo raro que não pesa, mas envolve.
Ela virou um pouco o rosto na minha direção. Seus cabelos brancos, soltos agora, caíam pelas costas como fios de luar, e seus olhos vermelhos encontraram os meus com uma dúvida que parecia ter vindo de um lugar muito íntimo.
— Hades… — sussurrou ela, sem desviar o olhar — Você se arrepende? Do beijo.
A pergunta veio como uma pétala caindo num lago. Sem peso, mas com ondas. Demorei um segundo para responder, não porque não soubesse, mas porque a sinceridade pedia um cuidado quase ritual.
— Não. — falei, com honestidade simples. — Você?
Ela hesitou. Depois sorriu. Um daqueles sorrisos pequenos, quebradiços, como se ainda estivesse aprendendo a sorrir assim.
— Nem um pouco. — disse, mas a voz era um pouco mais baixa. — Só… você acha que foi cedo demais?
Olhei para frente por um momento. Pensei no beijo. No toque da pele dela contra a minha. No silêncio depois. E no que não dissemos, mas sentimos.
— Talvez. — admiti. — Mas se foi… foi a única pressa que fez sentido desde que cheguei aqui.
Ela se aproximou um pouco mais. O ombro dela tocou o meu, de leve. Como se, mesmo na quietude, precisássemos garantir que não era um sonho.
— Isso é meio assustador. — disse ela, num tom quase risonho. — Sentir tudo isso tão rápido.
— Eu sei. — respondi.
Por um segundo, nossos dedos se encontraram ali. Não entrelaçados, não firmes. Apenas tocando-se, como um reconhecimento sutil.
Mas o momento não durou.
— Ah, meus jovens e impacientes leitores! — exclamou Oliver, sem sequer olhar para nós, como se tivesse olhos no queixo — Se não tem mais dúvidas, nem sobre minha pessoa e nem sobre a geopolítica da região… então deixem que os demais aproveitem a história, sim?
Se ele respondesse às perguntas pessoais sobre ele…
Oliver se levantou com seu habitual floreio, girando o cachimbo entre os dedos como um bastão de maestro.
— Porque o amor, meus caros — disse, com uma piscadela — às vezes é uma pergunta… mas quase nunca precisa de resposta.
Sentou-se de volta com um suspiro satisfeito, as sombras tremeluzindo ao seu redor como se a própria sala tivesse sorrido junto. E naquele instante, entre o calor corporal da Pers, o toque leve dela ao meu lado e o eco das palavras de Oliver, eu soube que algo novo tinha começado. Algo que não precisava ser explicado. Apenas sentido.
Oliver von Fell deixou que o eco final de sua fala pairasse como um suspiro no ar antes de erguer o cachimbo ao alto, exalando uma fumaça púrpura que se torcia em arabescos preguiçosos, quase hesitando antes de revelar o próximo segredo do continente.
— Caros leitores — anunciou ele, com aquela voz que ronrona como couro antigo —, prossigamos nossa odisseia pelos domínios de Chaia. Chegou a vez do
Grão‑Ducado de Everbloom
A fumaça se condensou num rótulo flutuante: “Everbloom” em letras de luz vegetal, tremulando como se carregasse orvalho matinal. Ao fundo, o mapa etéreo destacou a mancha prateada do ducado, colada às fronteiras de Umbrenor, mas com um brilho que escapava de qualquer lealdade formal.
— Tecnicamente — continuou Oliver, inclinando-se para diante, o cachimbo rodopiando entre os dedos —, Everbloom ainda figura sob o selo de Umbrenor. Mas, na prática… bom, digamos que o ouro de Kharzak‑Tor fala mais alto que tratados e juramentos. Cada barão, cada duque e cada marquesa foi comprado, um a um, até render-se à maré de pepitas e propostas sussurradas ao limiar da noite.
A fumaça formou então a silhueta de três árvores altíssimas, troncos tão pálidos que pareciam feitos de luar sólido, e copas que cintilavam com pontos de luz próprios, como estrelas enraizadas.
— O nome “Everbloom” homenageia as famosas árvores que só existem ali — explicou ele, a voz baixando para um tom quase reverente — árvores que nunca perdem as folhas, nunca curvam os galhos ao peso do inverno. Elas brilham dia e noite, como se fossem coletores de luar, transformando o bosque num sonho constante.
Pers inclinou-se para murmurar ao meu ouvido, os fios brancos roçando minha pele:
— Elas são um mistério até para nós, Deuses.
Assenti em silêncio, sentindo o peso das promessas ocultas na beleza imortal.
— Mas não se deixem enganar pela beleza — prosseguiu Oliver, erguendo sua bengala com solenidade —. Sob esse manto prateado, Everbloom tornou-se um jardim vendido. Cada flor reluzente pode ocultar acordos selados com sangue e contratos que se renovam em moeda fria.
Ele soprou uma última nuvem de fumaça, que se desfez num leve sussurro antes de desaparecer. Então olhou para os dois como se esperasse alguma objeção, mas também como quem confia no silêncio cúmplice de seus únicos ouvintes.
— E assim conhecemos mais um capítulo deste livro vivo que é Chaia — concluiu, com um sorriso travesso. — Quem sabe, um dia, alguém possa resgatar essas árvores da vendeta dos mercadores. Mas, por ora, deixemos que o brilho perpétuo de Everbloom nos lembre de que nem toda beleza é livre.
E, com isso, recuou um passo e deixou a sala respirar novamente, envolta na luz difusa e na fumaça que persistia, lenta e indomável, como um feitiço sem fim.
Eu recostei-me no assento elevado, sentindo o leve tremor do piso de madeira sob meus pés, enquanto Oliver von Fell inclinava-se para frente, o cachimbo mágico exalando espirais de fumaça púrpura que formavam, como num sussurro, as palavras “Comuna Marc”.
— Meus caros leitores — começou ele, a voz grave soando como um sino distante —, nosso próximo destino é a
Comuna Marc
A fumaça rodopiou e esculpiu no ar fábricas cinzentas, chaminés soltando vapores e bandeiras com símbolos enigmáticos. Senti um arrepio quando as construções subiram diante de mim, como se estivessem erguidas por mãos invisíveis.
— Antigamente, Marc pertencia ao reino de Cloudia — continuou Oliver, girando o cachimbo como se comandasse uma orquestra de sombras —. Mas quando Thaldrakos invadiu Cloudia, aqueles bravos habitantes aproveitaram o caos para se libertar. E instauraram uma comuna que se espelha nos regimes mais rígidos: um punho de ferro embrulhado em propagandas grandiosas.
A fumaça formou agora um desfile militar: soldados marchando em uníssono, olhos fixos à frente, rostos impassíveis, bandeiras vermelhas tremulando como corações obcecados por lealdade. Pers, ao meu lado, cerrou ligeiramente as pálpebras, o uniforme escolar contrastando com o horror silencioso da cena.
— A história de Marc — prosseguiu Oliver, a fumaça agora delineando trabalhadores alinhados em colunas longas — é uma teia de culto ao líder supremo, economias planificadas e campos de produção onde nada vive sem autorização estatal. eles abraçaram o isolamento e o controle total para garantir que cada alma, cada máquina, cada suspiro, siga um mesmo compasso.
— Na Comuna Marc, a economia não é deixada ao acaso — prosseguiu — ela é modelada por planos implacáveis: indústrias pesadas dirigidas por comitês, produção calculada até o último grão de minério, e distribuição de recursos feita por uma burocracia imensa. Tudo é controlado para que nenhum cidadão desvie do caminho traçado.
Vi a fumaça desenhar linhas de barracas, prateleiras quase vazias e filas de espera para ração — um cenário que congelava a esperança. Oliver apoiou o cachimbo na bancada e inclinou-se ainda mais para nós.
— Eles construíram muros invisíveis, caros leitores — disse ele, quase sussurrando — muros de ordens, de vigilância, de devoção obrigatória. A única moeda que circula lá é a lealdade ao líder, gravada no rosto de cada cidadão antes mesmo do nascer do sol.
O ambiente inteiro pareceu respirar mais pesado. Pers exalou um suspiro delicado, como se o ar em Marc tivesse chegado até nós.
— E assim temos Marc — concluiu Oliver, erguendo o bastão como um maestro após o clímax de uma sinfonia sombria —, um lugar onde a promessa de liberdade se converteu em fardo de rigidez, onde cada sonho é fiscalizado e cada passo é cronometrado.
A fumaça final desenhou uma chave enferrujada que se dissolveu no ar, e a sala retornou ao silêncio pleno, aguardando o próximo reino ou o próximo sopro de verdade vindo das palavras do professor.
Eu me recostei no assento, observando Oliver von Fell acender o cachimbo e deixar que a fumaça púrpura se erguesse como uma cortina viva. Ele girou lentamente, o olhar prendendo Pers e a mim, antes de falar com aquela voz que sempre soa como um convite e um alerta ao mesmo tempo.
— Caros leitores — começou, estalando o cachimbo como quem dá o sinal de um duelo —, já conhecemos a Cidade Livre de Valéria, onde a liberdade é uma lâmina afiada, dançando entre as muralhas e nos salões de festa. Lá, as ruas pulsam sob o Festival do Vento Livre, e cada mercenário paga com a lâmina ou com o riso por sua escolha. Um lugar de caos ordenado, onde a moeda de reputação vale mais que o ouro de qualquer cofre.
A fumaça formou então duas silhuetas: de um lado, salões iluminados e bandeiras vibrantes; do outro, fileiras de chaminés e o rosto impassível de um comandante supremo.
— Agora voltemos os olhos para Marc — olhou para mim e Pers com um brilho irônico —, a Comuna que se ergueu em meio à tempestade de Thaldrakos. Lá, não há sinfonia de liberdade: há um metrônomo implacável, batendo o compasso de cada passo, de cada palavra e de cada suspiro. A promessa de autonomia cedeu lugar a um Estado de vigilância, onde a lealdade ao líder é a única divisa que permanece valiosa.
As duas silhuetas de fumaça deslizaram uma para perto da outra, enfrentando-se numa dança silenciosa.
— Valéria nos ensina que a liberdade pode ser um turbilhão de cores, mas também um risco constante de ruína. Marc nos mostra que o controle absoluto corrói até a esperança mais discreta. Um grito de alegria em Valéria pode inspirar revolução, mas um sussurro de descontentamento em Marc é apagado antes de nascer.
Oliver respirou fundo, deixando um último anel roxo subir ao teto, e concluiu:
— E assim, meus caros leitores, aprendemos que nem todo voo sem gaiola é genuína liberdade, nem toda gaiola impenetrável é a fortaleza que promete ser. Cada cidade, cada escolha, tem seu preço. E cabe a nós, leitores atentos, decifrar se ele vale a pena.
Eu me recostei no assento elevado, sentindo o eco dos meus próprios batimentos misturar‑se ao sussurro daquela sala universitária em meia‑lua, onde a luz filtrava‑se de janelas invisíveis e apenas Pers e eu éramos a audiência viva.
Oliver von Fell ergueu o cachimbo mágico, exalando fumaça de mana púrpura que se enroscava no ar como serpentes dançantes antes de tomar forma:
— Caros leitores — anunciou, o olhar atravessando o espaço vazio até Pers e a mim — é hora de adentrarmos o mais sombrio dos reinos:
Reino do Abismo
A fumaça moldou-se em vultos demoníacos de pele vermelha, chifres retorcidos e caudas que se agitavam com vida própria, enquanto se erguia um cenário de rochas negras incandescentes.
— Vejam suas legiões, resistentes ao fogo mais cruel — continuou Oliver, desenhando brasas no ar — Pois suas almas foram forjadas no coração flamejante do Abismo.
Pers inclinou‑se para mim, os cabelos brancos roçando meu ombro.
— Eles não vivem só de conquista — sussurrou, a voz tão grave quanto as sombras projetadas — Eles buscam algo maior: transformar seu Rei Demônio, Azur, em um verdadeiro Deus.
Senti um arrepio – não de frio, mas da vastidão do que isso significava. Pensei na fúria dos demônios, no poder de um líder alçado à divindade.
— Como eles descobriram sobre Ao? — perguntei, os olhos fixos na dança pendular da fumaça.
— Mistérios antigos florescem nas profundezas — respondeu Pers, os olhos vermelhos faiscando — Eles urdiram cultos secretos nas cavernas, inflamando corações dispostos ao sacrifício.
Oliver bateu no ar com o cabo do cachimbo, e a fumaça se transformou em altares às chamas, símbolos de adoração feitos de magma brilhante.
— Imaginem — disse ele, em tom quase teatral — uma fé que arde mais quente que qualquer crença mortal. Um Deus nascido da fúria e reverenciado por horrores.
Pers ergueu a mão, como se quisesse tocar aquelas chamas ilusórias.
— E eu me pergunto, Hades — murmurou, os olhos rubros capturando a luz bruxuleante das brasas imaginárias — se nós, que caminhamos entre mortos, estivéssemos sob o julgo de um Deus de fúria… nossa noção de poder e de vida não seria para sempre reescrita?
— Seria um cataclismo de almas — respondi, sentindo o peso daquela possibilidade apertar meu peito — decretar Azur como Deus mudaria as regras de Chaia.
Oliver sorriu, o cachimbo rodopiando entre os dedos.
— Viram só? — disse, quebrando uma quarta parede imaginária como sempre — Os dilemas mais profundos nascem onde o medo e o fanatismo se encontrarem. E vocês, meus únicos alunos, estão diante da escolha: temer o fogo ou se render ao culto.
A fumaça final dispersou‑se, deixando apenas o eco das palavras e o batimento dos nossos corações acordados. Pers inalou devagar, os ombros relaxando.
— Vamos, Hades — disse ela, voz firme como aço incandescente — precisamos estar prontos para o que vier.
Oliver deixou o nome “Rei Demônio Azur” pairar no ar como uma maldição não conjurada. O cachimbo em seus lábios soltou uma espiral mais densa que o normal, púrpura escuro, quase negra, como se até a fumaça hesitasse em tocar naquele assunto.
Em silêncio, ele caminhou até o centro da sala, o som de seus passos ecoando entre os assentos vazios — como se memórias antigas os ocupassem agora.
— Foi durante o cerco a Valéria... — disse, enfim, com um suspiro carregado de passado. — Eu estava lá. Fazia parte de uma missão acadêmica. Estudava o comportamento dos demônios, suas marchas, sua magia, suas falhas...
Ele fez uma pausa, puxando uma longa tragada do cachimbo. A fumaça se alastrou pelo chão da sala como névoa viva e formou uma réplica da Cidade Livre, suas torres iluminadas e seus mercenários lutando com selvageria. E então, uma sombra colossal caiu sobre tudo. Azur.
— O Rei Demônio... — murmurou Oliver. — Nunca vi nada parecido. Ele caminhava como um Deus exilado, e com um olhar podia partir muralhas. Eu era considerado o mago mais poderoso da minha geração, tentei contê-lo com toda minha maestria em mana, conjurei círculos de contenção, prendi os ventos, curvei a gravidade... Mas a pressão mágica dele... — a imagem tremia — rasgava o chão. Os blocos se partiam antes que ele sequer erguesse a mão. Era como se a própria realidade hesitasse diante dele.
Eu não conseguia piscar. Meu coração estava apertado, como se o medo de Oliver ressoasse dentro dele.
Pers cruzou as pernas, os olhos fixos na projeção da luta. — Essa foi sua segunda morte, não foi? — disse ela, com doçura triste.
Oliver assentiu, e por um breve momento, sua figura pareceu menor sob a luz sobrenatural daquela sala impossível.
— Sim. Rasgado como papel. Silenciado como se minha alma tivesse sido apagada com um sopro. Mas... — virou-se para mim, e agora havia um brilho quase divertido nos olhos — cá estou. Graças à nossa anfitriã.
O silêncio seguinte pesou. Mas não de forma amarga. Era um silêncio antigo, quase sagrado. Como se, por um instante, todos tivessem lembrado que estavam sentados entre mundos. E que a morte — mesmo a morte — dançava sob comando de alguém que estava usando uniforme escolar e sorria como quem guarda o maior segredo do mundo.
Oliver pigarreou, o som seco reverberando como um trovão contido na sala silenciosa. Ergueu a bengala e apontou com teatralidade estudada para o grande mapa flutuante à sua frente. A imagem tremeluzente de Valéria surgiu... em chamas.
— Se não fossem os esforços desesperados da Hierarca Valéria após a minha morte — disse ele com ironia destilada, os olhos semicerrados em direção à projeção — e, claro, uma pitada generosa de sorte cósmica, a querida cidade da liberdade não teria vivido o suficiente para soprar sua primeira vela.
Ele girou o cachimbo entre os dedos, como se enrolasse pensamentos invisíveis, e depois o levou aos lábios com naturalidade ensaiada. Uma baforada roxa escapou, formando volutas que lembravam espadas cruzadas.
— Caros leitores… — disse ele, os olhos cintilando como se atravessassem a página de um livro invisível — recordam da quase-pergunta do nosso aprendiz sombrio aqui presente? Pois bem. Valéria se mantém viva — e, mais do que isso, necessária — porque divide fronteira com o temido Reino do Abismo… ao lado das nações da Deusa Athena. E isso, ah… isso muda tudo.
Deu uma nova tragada lenta, o tempo estendendo-se com o roxo da fumaça. A explicação veio como quem desfia um segredo que poucos ousariam pronunciar.
— Os demais reinos… os mais ricos, os mais cínicos, os mais medrosos… financiam Valéria para que Athena não se torne o único pilar de proteção contra os demônios. Um contrapeso político, entende? Se só Athena resistisse ao inferno, logo exigiria mais do que gratidão. E nenhum rei gosta de dever.
Ao meu lado, senti o leve movimento de Pers. Ela se virou devagar, o cabelo branco caindo em cascata sobre os ombros, algumas mechas cobrindo-lhe o rosto como véus de luar. Quando nossos olhos se encontraram, havia neles um brilho estranho — como se ela carregasse ali mil memórias que preferia não despertar. Ainda assim, falou:
— Athena e Azur, o Rei Demônio, são jurados inimigos. Toda vez que colidem, o continente sangra. Agora, Azur está confinado na própria capital. E ele sabe… sabe que, se sair, Athena o destruirá. Talvez — talvez — isso possa se tornar uma oportunidade. Um dia... poderíamos nos livrar de ambos.
As palavras dela caíram como lâminas veladas no ar. Lentamente, a certeza que eu evitaria confrontar se ergueu em minha mente: para herdar a divindade, eu teria de enfrentar apóstolos. Mas... Deuses?
“Será que sou capaz de matar um Deus?”, pensei, sentindo o peso gelado da pergunta espreitar sob a pele. “E se eu falhar? E se... tudo o que amo for arrancado de mim outra vez?”
Como se ouvisse cada pensamento, Pers estendeu a mão e tocou meu rosto com delicadeza. Seus dedos tinham o calor de uma promessa.
— Você se lembra do que eu disse? — sussurrou, a voz feita de melancolia e juramento. — Eu vou estar com você. Contra apóstolos. Contra o Rei Demônio. Contra os próprios Deuses, se for preciso. Eu vou te ajudar.
Assenti, como quem agradece com o silêncio. Mas dentro de mim, algo ainda pesava, latejava, buscava sentido. E então perguntei, com um nó de incredulidade apertando minha garganta:
— Como Ao permitiu a existência de um ser como Azur? Um mal tão puro, tão corrosivo... algo que sequer teme os Deuses?
Por um instante, o tempo pareceu parar. A fumaça do cachimbo de Oliver congelou no ar, e até as sombras nas paredes da sala ficaram mais densas. Pers ficou quieta. Mas seus olhos — oh, os olhos de Perséfone — tinham aquela tristeza antiga, guardada como uma carta nunca enviada.
— Você se lembra do que eu te disse quando nos encontramos pela primeira vez? — perguntou, baixinho.
— Que Ao era o equilíbrio acima de tudo.
— Exato — ela assentiu, com os lábios apertados —. Todos os outros deuses, mesmo os de coração escuro, criaram raças que carregam uma centelha de bem. Mas Ao... ele criou Azur não por malícia. Mas por... precisão.
— Então... — murmurei, engolindo o amargor da verdade — Ao criou o próprio Rei Demônio para equilibrar o mundo?
As palavras saíram como um rugido abafado. Como se cortassem o ar. E cortaram. Perséfone desviou o olhar por um instante, e quando voltou a me encarar, seus olhos estavam rubros de emoção contida, tão vivos que pareciam prestes a derramar eras de dor.
— Agora você entende? — disse ela, com a voz trêmula. — Por que fugi? Por que abandonei o trono? Ao... esse Deus de equilíbrio absoluto... ele tornou o mundo doente. Uma balança eterna onde até o mal mais monstruoso precisa de espaço.
Toquei o ombro da Pers com cuidado. Pensei em todos os momentos em que ela me amparou. Nas palavras doces entre os girassóis. No beijo que ainda ardia em mim como se tivesse acontecido um segundo atrás.
— Você me disse que me ajudaria quando eu estivesse prestes a quebrar — murmurei. — Agora, me deixe ajudar você.
Ela não respondeu. Apenas se atirou contra mim num abraço inesperado, firme, desesperado, como se estivesse tentando conter milhares de anos de lágrimas com o toque dos braços. Não chorou — mas eu senti. Senti que queria.
E, pela primeira vez desde que conheci Oliver, ele ficou em silêncio. Silêncio completo. Como se, mesmo para ele, aquele assunto fosse sagrado demais para sarcasmos.
Foi então que percebi. Todos os reinos que ouvimos falar... todos tinham suas divindades, seus cultos, seus dogmas. Mas nenhum deles cultuava Perséfone. Nenhum templo. Nenhum altar.
Ela... era uma Deusa sem fiéis?
Ela disse que fugiu. Que se escondeu.
E quando a pergunta queimava na minha garganta, prestes a explodir, Oliver enfim quebrou o silêncio.
— Sim, Hades — disse ele, antes mesmo que eu falasse. — Você não está enganado. Mas deixemos essa revelação para mais adiante na aula. As cortinas ainda não estão prontas para esse ato final.
O cachimbo brilhou com uma centelha púrpura.
E eu soube, ali, que havia muito mais na história da Deusa da Morte do que qualquer um ousava sussurrar.
— E, caros leitores — disse, quebrando a tensão com uma piscadela para a câmera imaginária —, se sobreviver a um demônio desses não vale uma vida extra, então nada vale.
Pers soltou do abraço e deu um risinho.
A piada de Oliver foi um sucesso para quebrar o gelo mas enterrou qualquer expectativa minha de continuar naquele assunto.
— Pelo menos você morreu com estilo — Ela disse.
— Três vezes — corrigiu Oliver com orgulho. — E em todas, ressuscitado com um toque de elegância.
Eu olhei para os dois e me dei conta de que, naquele lugar fora do tempo, morrer era só um detalhe. Mas as memórias... essas, queimavam fundo.
A sala envolvia-nos numa penumbra aconchegante, onde a luz parecia ter vida própria, dançando nas bordas invisíveis das janelas sem molduras. O professor Oliver, com seu cachimbo sempre à mão, soltava nuvens de fumaça púrpura que formavam morcegos no ar, como lembranças etéreas. Pers estava silenciosa, mas com o brilho enigmático que só uma Deusa da Morte poderia exalar.
— Hoje, caros leitores — começou Oliver, sua voz vibrando no ar — para finalizar, voltamos nosso olhar para um dos territórios mais enigmáticos e poderosos do continente:
Grão-Ducado de Nosferatus
Subordinados ao Império Emberfell, esse ducado é governado pela lendária família Nosferatus. Uma linhagem envolta em mistérios e segredos tão antigos quanto o próprio mundo.
Pers sorriu, seus olhos refletindo um fogo que parecia vir de dentro dela mesma.
— Eles são muito mais do que uma família. Eles são a raça que criei com minhas próprias mãos — disse, sua voz suave, porém impregnada de uma autoridade ancestral.
Oliver inclinou-se para frente, com um olhar quase teatral.
— Ah, eis que a própria Perséfone decide nos conceder um vislumbre da verdade! Quero que todos prestem muita atenção, pois o que virá agora vai desafiar o que vocês conhecem sobre vampiros e a própria morte.
Pers caminhou pelo espaço, cada passo sereno, e continuou:
— Um vampiro não é simplesmente um morto-vivo comum, tampouco um ser amaldiçoado à toa. Eles são uma forma de existência que transcende a vida e a morte, um equilíbrio delicado entre ambos os mundos.
Oliver fez um gesto dramático, lançando uma nuvem de fumaça que se transformou em morcegos que voavam em círculos ao redor de uma fortaleza digna de um Lorde Vampiro.
— De todos o vampiros criados, apenas cinco sobreviveram e são os Nosferatus que governam esse ducado: o Duque Drácula von Nosferatus — conhecido não apenas por sua riqueza incomparável, mas também por sua influência e poder político — sua esposa, a enigmática Duquesa Orianna van Nosferatus, os irmãos do duque: Vladimir von Nosferatus e Viego von Nosferatus, e Mavies van Nosferatus, irmã de Orianna. Cada um deles carrega em si uma centelha da minha essência.
Pers acrescentou, com uma leve risada que soava como o vento noturno entre as árvores.
— Os Nosferatus são únicos — disse Perséfone, a voz baixa, quase reverente. — Eles não apenas existem entre a vida e a morte… eles carregam dentro de si a centelha da minha essência. Não são apenas filhos das trevas, como muitos pensam. São meus filhos. Criados por minha vontade. Criados para lembrar ao mundo que eu ainda estou viva.
As palavras dela dançaram no ar como um segredo antigo demais para ser sussurrado. Ali, no silêncio entre duas batidas do meu coração ressuscitado, senti a pergunta que há muito me queimava a garganta se tornar inevitável.
— Nenhum dos reinos que o Oliver mencionou cultua você… — murmurei, com a voz cautelosa. — Por um tempo, eu até achei que você fosse… uma Deusa sem fiéis.
Perséfone parou. Como se aquela frase tivesse tocado algo muito mais profundo do que eu pretendia. Lentamente, ela se virou para mim. Seus olhos, dois rubis acesos sob uma luz antiga, me atravessaram com uma intensidade que fez a sala inteira parecer encolher ao redor de nós.
— Quando desapareci, minhas irmãs acreditaram que Ao havia me destruído — disse ela, com uma clareza que parecia aço recém-forjado. — Elas choraram em silêncio… e depois continuaram. Tomaram seus tronos, ergueram seus templos, sem olhar para trás.
— Mas você não morreu — sussurrei, mesmo já sabendo a resposta.
— Não — confirmou Pers, aproximando-se um passo. — Eu me escondi. Fingi estar morta por milênios. Enquanto elas fincavam raízes, eu recuei para a escuridão. Alimentei meu poder com o silêncio. Com a ausência. Com o esquecimento. Tudo para que, quando a hora chegasse... eu pudesse entregar tudo a você.
— A mim? — Minha voz saiu rouca. — Você fez tudo isso por minha causa?
Ela assentiu. A intensidade de sua presença enchia a sala, o ar entre nós denso como uma profecia prestes a se cumprir.
— Você é o meu apóstolo, Hades — disse ela, com uma doçura feroz. — Eu vi o seu nascimento, a sua morte… e a sua ressurreição. Vi cada uma das suas quedas. Vi quando sua alma sangrou, e vi quando se recusou a apagar. E por isso, escondi-me do mundo. Para que, ao renascer, você tivesse ao seu dispor uma reserva de poder ancestral, alimentada por eras de solidão.
As palavras pareciam maiores que o tempo.
— Mas... o que você quer dizer com “renascer”? — perguntei, hesitante.
Ela se aproximou ainda mais. Seu perfume era feito de sombra e flor, um sussurro doce que me envolvia sem esforço.
— Os vampiros não se reproduzem como outras raças — explicou. — Eles precisam de um comando direto. Um propósito claro. E agora… esse propósito chegou. Você renascerá como o herdeiro esperado pelos Duques Nosferatus. Eles aguardam sua chegada como quem aguarda a alvorada após mil noites escuras.
Meus olhos se arregalaram. — Então… além de tudo, vou ter que renascer… como um vampiro?
Pers sorriu, mas havia algo de melancólico naquele gesto. Ela se sentou ao meu lado, os dedos se entrelaçando com os meus com naturalidade.
— É mais do que apenas “ser um vampiro”. — disse. — É ser algo raro, quase sagrado. Os Nosferatus não são monstros. São guardiões do limiar. Carregam a morte nos olhos, mas a vida no coração. Eles amam como poucos conseguem. Vivem por milênios, e sentem tudo com intensidade desumana. São leais, são perigosos... e são meus.
Ela me fitou longamente, como se buscasse a menor dúvida escondida dentro de mim.
— Vampiros, neste mundo, não são aberrações nascidas do acaso. São criações. Minhas criações. Os únicos seres que caminham entre os vivos e os mortos com a benção do silêncio e da noite. Não se alimentam por capricho, mas por necessidade. E, acima de tudo, jamais são criados sem propósito.
Fiquei em silêncio por um tempo, digerindo tudo, sentindo a gravidade de cada revelação pousar sobre minha alma como uma neve morna. Eu iria renascer. Eu seria o herdeiro dos Nosferatus. Eu seria… um vampiro. O primeiro em milênios. E o último criado pela Deusa da Morte com as próprias mãos.
— Ainda não sei o que pensar — admiti, com um sorriso frágil.
— Você não precisa pensar — respondeu ela, apertando levemente minha mão. — Apenas seja. Seja o que você já é. Porque, Hades… os filhos da noite não se fazem com explicações. Eles nascem com um propósito. E o seu é maior do que qualquer um ainda pode compreender.
E pela primeira vez, senti o nome Hades encaixar-se em mim não como um título… mas como verdade.
Oliver balançou a cabeça, com um sorriso meio melancólico.
— Por isso, os Nosferatus — apontou Oliver para as silhuetas na fumaça — são os únicos vampiros verdadeiros que existem, a linhagem original. E só eles sabem que Perséfone ainda caminho entre os mortais, vigiando e governando o ciclo da morte.
Ela sorriu enigmaticamente.
— A revelação de que vampiros não surgem do nada e que sua existência está diretamente ligada à Deusa da Morte — concluiu Oliver — é um segredo guardado a sete chaves. Um segredo que, se revelado, poderia abalar os alicerces de muitos reinos.
Olhei para Pers, sentindo o peso daquela verdade.
— E eu — disse ela, com voz suave, porém firme — Escolhi os Nosferatus para manter essa chama acesa, para que o mundo nunca esqueça que a morte não é o fim, mas o princípio de algo maior.
Oliver assentiu, como um maestro conduzindo uma sinfonia oculta.
— Eles são os únicos que sabem que Perséfone ainda caminha entre os mundos. Eles veneram-na, não por medo, mas por compreensão profunda do ciclo eterno da morte e da renovação.
Oliver continuou, a fumaça formando novamente símbolos antigos no ar.
— Imaginem, portanto, a responsabilidade de carregar não apenas uma herança, mas a própria essência da morte e da vida entrelaçadas. É um dom que poucos entendem — e que exige sacrifícios incalculáveis.
Perséfone se ajeitou em seu lugar e finalizou, com um tom quase maternal.
— Eles são os guardiões do meu nome, os únicos que conhecem minha existência verdadeira e aceitam o peso de caminhar comigo nessa linha tênue entre o fim e o começo. Enquanto eles persistirem, eu também persistirei.
O silêncio da sala tornou-se pesado, carregado de significado. Oliver soltou uma última baforada de fumaça que se dispersou lentamente.
— Agora, Hades, leitores, reflitam comigo: o que significa ser criado pela própria Deusa da Morte? Que poder e qual preço isso impõe? E mais importante, como isso moldará aqueles que se atreverem a trilhar esse caminho?
Perséfone sorriu, um brilho travesso nos olhos.
— É um poder que escolhe seus portadores. E eu estou curiosa para ver como você, Hades, lidará com essa herança.
Oliver riu baixinho, enquanto a fumaça púrpura formava um coração e um morcego que dançavam juntos antes de desaparecerem no ar.
— Pois bem, caros leitores, a morte não é o fim — é o começo de uma jornada. E os Nosferatus são o testemunho vivo desse eterno retorno.