Oliver pigarreou mais uma vez, como se suas cordas vocais fossem feitas de couro seco e precisassem ser despertadas antes de qualquer discurso. O cachimbo ainda soltava espirais de fumaça púrpura, agora mais preguiçosas, como se também já estivessem cansadas da aula.
— E com isso, caros leitores — disse ele, erguendo os braços com exagero teatral — encerramos a parte chata, porém essencial, da nossa adorável geopolítica. Podem respirar. A guerra ainda não começou, e os mapas ainda não sangram.
Pers sorriu para mim, aquele sorriso enviesado que ela usava sempre que Oliver dramatizava demais — o que, sinceramente, era quase sempre. O professor deu meia-volta em direção ao quadro, estalou os dedos e com um gesto abriu uma projeção feita de luz mágica, onde surgiram três moedas girando em suspensão.
— Agora que sabem quem governa e quem mata quem… — disse ele, acendendo o cachimbo novamente — vamos falar sobre o que move tudo isso: dinheiro.
As moedas dançavam no ar como se tivessem vontade própria, girando lentamente em torno de um eixo invisível. Três nomes foram inscritos em letras douradas ao lado de cada uma: Denários, Dracares e Moedinas.
— Chaia possui três moedas principais, cada uma tão problemática quanto quem as criou — começou Oliver, apontando para a primeira com sua bengala de ossos.
A moeda era prateada, cunhada com uma chama estilizada e um rosto severo de perfil, quase imperial.
— Denários de Emberfell — disse ele com um tom entre desprezo e fascínio. — Usados dentro do reino de mesmo nome. A cotação deles? Volátil como uma criança com um machado. Ninguém nunca sabe quem Emberfell vai atacar em seguida — nem mesmo os próprios generais. E por isso ninguém confia no valor dessa belezinha por mais de um mês seguido.
— Mas servem para comprar espadas, imagino — murmurei.
— Exato! — exclamou Oliver, apontando para mim como se eu tivesse vencido um jogo. — E quando seu valor sobe, todos tremem. Sinal de que as águias estão esfregando as garras em alguma muralha.
Ele passou para a segunda moeda. Era escura, de um negro profundo que parecia sugar a luz ao redor, gravada com uma serpente alada enroscada em torno de um obelisco.
— Dracares — disse Oliver com reverência quase irônica. — Moeda de Thaldrakos. Forjada com ouro negro, um metal tão raro quanto bom senso em assembleias reais. Paradoxalmente, sua cotação é baixa. Por quê? Porque o material é tão difícil de encontrar que ninguém se arrisca a confiar nela como base de economia estável. Mas há colecionadores e magos que pagam fortunas por uma dessas… embora, claro, isso não sirva para comprar pão.
— Ela é linda… — murmurei.
Pers assentiu. — E amaldiçoada — completou, tocando levemente o ar ao redor da projeção. — Ouro negro tem sede de sangue. Certa vez um rei derreteu cem delas para banhar seu trono. No fim, foi empalado nele por seu próprio filho.
Oliver arqueou as sobrancelhas como se dissesse “Viu só?” e apontou para a última moeda.
— E por fim, a queridinha de Chaia: a Moedina!
A moeda era dourada, pesada e grosseira, com a efígie de uma anã sorridente de barbas trançadas e um martelo sagrado nas mãos.
— Trocadilho entre Moeda e Moradina, a Deusa padroeira dos anões. Criada em Kharzak-Tor, onde cada moeda é abençoada, pesada e martelada à mão por um artesão juramentado. Elas são práticas, duráveis, e não queimam com magia. E o mais importante… são aceitas em todos os reinos civilizados.
— Até em Valéria? — perguntei.
Oliver sorriu.
— Sobretudo em Valéria. Mercenários confiam mais no brilho de uma Moedina do que no próprio escudo. Dizem que uma moeda dessas caiu do céu quando Moradina espirrou durante a criação do mundo. Os anões, claro, fizeram dela um molde.
Pers riu, um riso suave, quase nostálgico.
— E eu estava lá — disse ela, olhando para mim com brilho nos olhos. — Foi só um espirro mesmo, mas eles transformaram em dogma.
— E graças a esse dogma — continuou Oliver — temos um padrão econômico. Duas Moedinas valem dez Denários, e quinze Denários valem uma Dracares. Teoricamente. Claro que isso muda a cada feira e a cada assassinato real.
A fumaça do cachimbo girou lentamente no ar, desenhando os três símbolos das moedas como se fossem constelações.
— Agora que sabem como o ouro se move, talvez comecem a entender por que tanta coisa sangra.
— E o que vale mais do que todas essas moedas juntas? — perguntei, sentindo a pergunta sair antes mesmo de pensar nela.
Oliver sorriu com pesar e olhou para Pers.
— Vida. — respondeu ela, simples e firme. — Porque é a única coisa que nem mesmo os anões sabem forjar.
E por um momento, enquanto o silêncio pairava entre as colunas da sala, eu senti que aquelas três moedas flutuando no ar não eram apenas pedaços de metal... mas reflexos de todo o caos, orgulho e esperança que moldavam o continente.
Caía a cortina da aula. Mas o espetáculo de Chaia estava só começando.
Ele deu um leve golpe com a bengala no chão e a luz da sala mudou de tom — menos sóbria, mais quente. Os mapas desapareceram e, no lugar, surgiu no ar um brasão dourado com três símbolos entrelaçados: um lobo, uma águia e um morcego.
— Vamos falar de história. Da verdadeira história de Emberfell — disse ele, com uma reverência sarcástica — ou, como gosto de chamá-la, da mentira bem contada mais importante do continente.
Me ajeitei na cadeira. Algo na forma como ele encarava o brasão me fez sentir que estávamos prestes a cruzar outra daquelas linhas invisíveis, as que dividem o mundo dos vivos e o dos que realmente sabem.
— Todos aprendem que Emberfell nasceu do heroísmo e união de dois irmãos lendários — começou Oliver, gesticulando como um contador de histórias em uma taverna de guerra — Rômulo Ember, o guerreiro que conquistava com espada; e Remo Fell, meu ancestral e diplomata que dobrava impérios com palavras. Mas isso… é só parte da verdade.
Ele se inclinou para frente, os olhos faiscando por trás da fumaça roxa.
— O que não dizem nos livros — sussurrou com voz teatral — é que havia um terceiro fundador. Um nome que foi apagado dos registros, esquecido nos becos da história por um motivo muito simples: ele não era humano.
Oliver bateu com a bengala, e o brasão girou, revelando o morcego cravado no fundo do escudo. Um símbolo que jamais fora explicado nos brasões oficiais de Emberfell.
— Regis Nosferatus — anunciou Oliver — o primeiro vampiro do mundo. O pai da linhagem que ainda hoje habita o Grão-Ducado que leva seu nome.
Um arrepio percorreu minha espinha. Olhei para Perséfone, esperando que ela negasse, risse, ou ao menos completasse com alguma de suas frases leves. Mas não. Ela estava séria. Silenciosa.
— Regis era amigo pessoal de Rômulo e Remo — continuou Oliver, como se estivesse revelando um segredo sagrado. — E foi essencial para a fundação de Emberfell. Seu domínio sobre as trevas, sua longevidade e sua sabedoria garantiram que o Império não ruísse antes de nascer. Foi Regis quem selou alianças com entidades obscuras, quem ergueu as primeiras muralhas com magia de sangue, quem protegeu Emberfell quando ainda era só um sonho de glória.
— Mas se ele era tão importante… — comecei.
— Por que o esqueceram? — completou Oliver com um sorriso triste. — Porque a Deusa da Morte desapareceu. E quando Perséfone se ocultou do mundo, tudo o que a ela estava ligado começou a ser varrido dos registros. Inclusive seus filhos mais leais.
Pers finalmente falou. Sua voz era baixa, carregada de uma emoção contida que raramente mostrava.
— Regis… foi o primeiro a quem chamei de filho. — murmurou Pers, com o olhar perdido em uma distância que só os imortais conseguem alcançar. — Diferente dos mortos que ergo do silêncio, ele não nasceu da decomposição, mas da própria essência do que sou. Um fragmento da minha alma moldado na noite antes da história, quando Chaia ainda era apenas uma promessa sussurrada entre os véus do vazio. Regis, patriarca dos Nosferatus e pai do atual duque Drácula… já não caminha entre nós. Foi morto por Astarot para que o terceiro César de Emberfell, Maximus, pudesse viver. Uma troca injusta… mas necessária, ou assim acreditavam os homens.
Oliver assentiu, respeitoso.
— Após o seu desaparecimento de Perséfone, as igrejas apagaram sua imagem. As nações, temendo o caos, inventaram outra versão da história. Disseram que Regis era um conselheiro, um mago excêntrico, qualquer coisa menos o que ele realmente foi. Um dos fundadores do maior império da história de Chaia.
Pers olhou para mim, os olhos carregando séculos de dor e decisão.
— Eu me escondi para proteger o mundo, Hades. Se eu tivesse permanecido, as minhas irmãs teriam te destruído antes mesmo de você reencarnar. Então me tornei um mito. Um sussurro entre sombras. E meus filhos… aceitaram a condenação do esquecimento em silêncio. Até agora.
Meu coração pulsava alto. Aquilo mudava tudo. Vampiros criados pela própria Deusa da Morte. O terceiro fundador de Emberfell sendo um ser imortal esquecido pelo mundo. Eu olhei para Oliver, esperando o tom brincalhão habitual. Mas ele estava em silêncio, o cachimbo suspenso, o olhar perdido no brasão que ainda girava no ar.
— Os Nosferatus continuam lá, no seu ducado, fiéis, ricos, intocáveis — disse Perséfone, como quem fala de um segredo guardado com sangue. — Esperando o dia em que eu voltaria. E você, Hades… é o sinal de que esse dia chegou.
Silêncio. Um silêncio pesado, sagrado. Eu respirei fundo, tentando absorver tudo aquilo. Os vampiros não eram monstros, mas filhos de uma Deusa. Um império fora fundado com magia negra. E minha existência estava entrelaçada com tudo isso.
Pers apenas sorriu, mas seus olhos ainda estavam distantes. E eu, sentado naquela sala maior por dentro do que por fora, sabia que algo tinha mudado. Que cada palavra daquela aula fora mais do que informação.
Era preparação.
E o mundo, agora, parecia ainda mais fundo do que eu jamais imaginaria.
— Rômulo Fell… — murmurei, tentando encaixar as peças. — Então ele é seu ancestral, professor?
Oliver soltou uma baforada lenta de fumaça púrpura do cachimbo, que se dissipou no ar formando o contorno de um velho brasão partido ao meio.
— De certa forma, sim. — respondeu ele com um ar cansado, mas orgulhoso. — Rômulo Fell foi o primeiro da linhagem. Um homem de princípios... e um gosto duvidoso por vinho tinto.
— E o "von"? — perguntei, arqueando uma sobrancelha. — O que significa esse título no seu nome?
O velho professor sorriu, como quem esperava a pergunta desde a fundação do mundo.
— Ah, caro Hades, agora tocamos em algo especial. Poucos nobres na história de Chaia tiveram o direito de carregar o “von” para homens e “van” para mulheres em seus nomes. Não é apenas uma marca de linhagem ou riqueza. É uma benção. Um sinal de que, em algum momento, sua família foi tocada por uma das Sete Deusas.
Pers, que até então observava em silêncio, ergueu uma sobrancelha e cruzou as pernas com um leve balançar de cabeça, como quem antecipa o gosto amargo de uma ironia antiga.
— E você sabe quem abençoou os Emberfell, Hades? — disse Oliver, apontando com o cachimbo para mim como se me desafiasse a adivinhar.
Antes que eu pudesse responder, Pers cortou, a voz baixa como o roçar de pétalas num túmulo recém-fechado:
— Fui eu.
Virei o rosto para ela, surpreso. Os olhos dela estavam calmos, mas havia uma dor profunda escondida atrás daquele tom sereno.
— Irônico, não é? — continuou ela, olhando para o vazio como se visse as ruínas do passado sobre o presente. — Eu só abençoei a linhagem Emberfell por causa de Regis. Porque os Nosferatus ajudaram a erguer Emberfell... e, por amor a ele, dei minha benção a seus aliados.
— E mesmo assim… — murmurei, a raiva crescendo em meu peito antes que pudesse contê-la — eles apagaram Regis da história. Fingiram que a contribuição dos Nosferatus nunca existiu. Que o império nasceu apenas das mãos humanas.
Pers assentiu levemente, o sorriso curvando-se amargo nos lábios.
— A história escrita por homens raramente se lembra dos mortos, Hades. Especialmente dos mortos que os tornaram poderosos. Regis foi o preço pago para manter a chama de Emberfell acesa... e, em troca, foi enterrado em silêncio. Eles apagaram meu nome junto com o dele. Como se o império tivesse surgido apenas da glória dos vivos.
Oliver olhou para ela por cima do cachimbo, o semblante mais sério do que o normal.
— Mas alguns de nós lembram, Perséfone. E nem toda memória pode ser apagada com sangue ou mentiras. O von em Emberfell continua vivo porque, no fim, o passado insiste em retornar.
— E agora ele está aqui — disse Pers, me olhando nos olhos com intensidade. — O apóstolo da morte. Carregando um nome antigo, renascido num continente que já esqueceu quase tudo. Mas não você, Hades. Você vai lembrar. Vai lembrar de Regis. De mim. E de tudo o que eles tentaram esconder.
A fumaça do cachimbo de Oliver desenhou, pela primeira vez, não palavras, mas uma única lágrima — e ela flutuou, intacta, até se dissipar.
E eu entendi. Aquilo era mais do que uma aula. Era uma herança. E uma promessa.
Rodopiando seu cachimbo, Oliver o colocou na boca e soprou a fumaça mágica.
A fumaça púrpura nos envolveu como um véu, e quando ela se dissipou, estávamos em outro lugar. O ar era rarefeito, frio e cortante. Rochas negras se erguiam como espinhos contra o céu nublado, e montanhas colossais se amontoavam ao nosso redor, estávamos na fronteira entre Thaldrakos e Kharzak-Tor. Não havia som além do vento — até que Oliver estalou os dedos. Então o tempo se partiu como vidro.
Um cenário de guerra surgiu diante de nós, translúcido como memória antiga e tão vívido quanto um pesadelo. No centro da montanha devastada, um homem de armadura flamejante marchava sozinho. O metal de suas placas brilhava com runas vermelhas vivas, e seu corpo era um braseiro ambulante. Maximus — o terceiro César de Emberfell — andava com a confiança de um imperador e o fervor de uma estrela.
Do outro lado do campo, o céu se abriu em chamas e rugidos. Um dragão desceu, imenso e soberano, cada batida de suas asas fazia o chão tremer e as nuvens se dissiparem. Era o próprio Imperador de Thaldrakos, transformado por completo, sua pele coberta de escamas escuras como obsidiana, e os olhos incandescentes como sóis de fúria.
O embate foi brutal. Maximus, apenas com seu corpo fortalecido por mana de fogo, enfrentava o dragão em pé de igualdade. Cada golpe era um trovão. Cada desvio, um vendaval. Vi o momento em que ele agarrou uma das asas do dragão e, com um grito que incendiou o ar, a arrancou numa explosão de sangue e gritos.
Mas o destino, como sempre, tinha outros planos.
Do céu desceu uma presença muito mais antiga. Um véu de escuridão cobriu o campo, e com ela veio Astarot. Seu corpo era uma estrela morta envolta em sombras, e seus olhos… não havia olhos, apenas a certeza de morte inevitável. Ela desceu sobre Maximus como a lâmina de um destino cruel, pronto para matar o imperador de Emberfell no momento da vitória.
Foi então que Regis apareceu.
Vi sua figura surgir por entre as rochas, os olhos vermelhos e os cabelos brancos como os de Perséfone, a capa negra ondulando como fumaça ao vento. Ele correu — não para atacar, mas para se interpor. Um muro entre a Deusa e o homem. Um sacrifício.
Oliver, com um suspiro quase respeitoso, narrou em voz baixa:
— Regis ganhou tempo. Tempo o suficiente para que os exércitos de Emberfell fugissem. Tempo o suficiente para que Maximus fosse salvo. Mas não tempo o suficiente para si mesmo.
Vi Astarot se voltar contra ele. O golpe foi tão violento que o mundo pareceu se curvar. A imagem tremeu, e o sangue escuro de Regis banhou a terra onde estávamos. Um túmulo não marcado, escondido sob pedras e silêncio. O verdadeiro fim do primeiro vampiro.
Pers permaneceu em silêncio. Os olhos fixos naquela memória, a expressão tão serena quanto trágica. Havia uma dor em seu rosto que só milênios poderiam esculpir.
Então compreendi — aquele campo não era apenas uma lembrança. Era um altar. Um santuário silencioso de uma lealdade que resistiu até o fim.
— Aqui repousa Regis von Nosferatus — disse Pers, enfim, com voz firme. — O filho que o mundo esqueceu. Mas que eu… jamais deixei de amar.
A fumaça púrpura girou como um redemoinho encantado, envolveu nossos corpos e, em um piscar de olhos, o mundo mudou mais uma vez.
Dessa vez, não havia montanhas, nem vento cortante, nem o cheiro metálico da guerra. Estávamos em um espaço plano e amplo, onde o chão reluzia como pedra polida e as paredes — se é que existiam — desapareciam num vazio que lembrava o céu noturno. Acima, constelações flutuavam em espirais, como se estivéssemos no interior de uma torre mágica erguida dentro do próprio cosmos.
No alto de uma plataforma de degraus esculpidos com símbolos antigos, sentada como se ali fosse seu trono por direito, estava Perséfone. Mas não era a mesma garota que usava uniforme escolar e caminhava ao meu lado pelos corredores do colégio. Agora ela era… outra coisa.
Seu vestido era negro como a própria noite entre mundos, justo no corpo e fluido como sombra viva. O tecido parecia respirar com ela, dançando com movimentos imperceptíveis. Seus cabelos brancos estavam soltos, caindo como uma cascata de prata pura até a cintura. Os olhos, vermelhos, brilhavam como estrelas de sangue. Ela não falava — não precisava. Sua presença preenchia o lugar como uma nota grave sustentada no ar. Aquela era a Deusa da Morte. A criadora dos mortos-vivos. A mãe dos vampiros. A Inevitável. Pers.
Oliver apareceu ao meu lado com seu habitual ar de quem sabia mais do que todos e, ao mesmo tempo, parecia não levar nada a sério.
— Chega de conversa fiada — disse, batendo a ponta do cajado no chão com um som metálico que reverberou no ar ao nosso redor. — É hora de deixar de ser apenas um curioso, Hades. Bem-vindo à sua primeira aula de verdade.
Ele soltou uma baforada lenta do cachimbo. A fumaça púrpura se ergueu e desenhou no ar fórmulas arcanas, círculos de conjuração e linhas de força. Os símbolos se reorganizavam sozinhos como se tivessem consciência, girando e vibrando em tons sutis.
— Magia — começou ele — é o fio invisível que costura o mundo. Nem todo mundo pode tocá-lo. Mas você, Hades… você foi feito com ele.
Virei o rosto na direção de Pers. Ela me observava em silêncio, mas havia algo em seu olhar que dizia: “Sim. Ele está certo.”
— Existem muitas formas de magia em Chaia — continuou Oliver, caminhando lentamente em círculo ao meu redor — a dos druidas de Everbloom, que canta com as raízes; a dos monges de Kharzak-Tor, que pulsa com o som das pedras; a dos feiticeiros de Umbrenor, que sangram livros e símbolos. Mas você… você aprenderá o caminho mais antigo. A magia que nasce da essência. Daquilo que te faz ser você.
A fumaça do cachimbo desenhou uma runa no ar. Eu a reconheci de algum lugar, talvez dos velhos sonhos que tive desde que morri.
— Você não aprenderá a fazer truques — disse Oliver. — Aprenderá a impor sua vontade sobre a realidade. É isso que a magia realmente é: Vontade.
Ele parou diante de mim, os olhos quase sérios.
— Então me diga, Hades… o que você deseja mudar?
Antes que eu pudesse responder, a voz de Pers se fez ouvir, clara e poderosa, como se ecoasse de todas as direções:
— Mas cuidado. A vontade sem domínio destrói mais do que cria. Magia é a extensão da alma. E a sua alma ainda está ferida.
Ela desceu os degraus com a leveza de uma sombra. Ao pisar no chão reluzente, ele se apagou sob seus pés como se reconhecesse sua verdadeira dona.
— Você vai aprender magia, Hades. Mas também vai aprender a conhecer-se. Só assim poderá usar o poder que carrega.
Ela estendeu a mão. Uma pequena chama negra dançava sobre sua palma.
— Isso é Morte. Mas também é renascimento. Aprenda a usá-la… e ela jamais te consumirá.
Quando a chama tocou minha pele, não doeu. Mas tudo ao meu redor pareceu se afastar por um momento. O mundo segurou o fôlego. Senti um poder adormecido se mover dentro de mim — algo antigo, pesado, faminto.
— Agora — disse Oliver, estalando os dedos e fazendo surgir uma esfera de energia pulsante à nossa frente — vamos ver se você tem talento ou só cara de protagonista.
Perséfone sorriu levemente.
— Boa sorte, Hades. Que sua alma esteja pronta para despertar.
A esfera de energia flutuava diante de mim, pulsando lentamente como o coração de alguma criatura viva feita de mana pura. Ela girava devagar, irradiando uma luz violeta suave, e cada volta que completava fazia meu peito vibrar em ressonância, como se algo dentro de mim estivesse tentando acompanhar o ritmo.
— Estenda a mão, mas não toque. — disse Oliver, com a voz menos zombeteira do que o normal. — A magia não é manipulada com músculos. Ela sente intenção. Ela responde à clareza da sua vontade.
Fiz como ele pediu. Estendi a mão lentamente, sentindo o ar ao redor da esfera ficar mais denso, como se o mundo se curvasse levemente ao redor daquele ponto suspenso. Minhas veias pareciam brilhar sob a pele, como se houvesse luz passando por dentro delas, e a sensação era uma mistura de formigamento e vertigem.
— Agora pense em romper a esfera — disse Oliver, andando em círculo ao meu redor com sua bengala tilintando no chão. — Não com força, mas com certeza. Ela deve sentir que você decidiu que ela deixará de existir.
Fechei os olhos por um momento. Respirei fundo. Tentei reunir essa tal “vontade” que ele mencionava. Mas quando abri os olhos, a esfera ainda estava ali. Intacta. Vibrando em provocação silenciosa.
— Você hesitou. — disse Oliver, com uma nuvem de fumaça roxa escapando do cachimbo. — Está tentando como se tivesse medo de quebrar alguma coisa. E se eu te disser que o mundo precisa ser quebrado às vezes?
— Não é fácil… — murmurei, sentindo o suor brotar nas têmporas.
— É porque você ainda pensa como um humano. — Oliver parou de andar e apontou a bengala para meu peito. — Mas você já não é mais só isso, Hades. Você foi escolhido. Moldado. Renascido. O que te separa de um mortal comum é a consciência do abismo… e o poder de não ser engolido por ele.
Atrás de nós, Pers permanecia em silêncio. Sentada nos degraus superiores, os cotovelos apoiados nos joelhos, o queixo delicadamente entre os dedos. Seus olhos rubros estavam cravados em mim, sérios, atentos. Ela não sorria. Nem se mexia. Mas havia algo em sua expressão — um brilho nos olhos — que me dizia: Ela acredita que eu consigo.
Tentei de novo. Estendi a mão. Mas dessa vez, não forcei. Apenas… aceitei.
Aceitei o que eu era. Aceitei o frio da morte que vivia sob minha pele, o fogo das lembranças que ardiam no meu peito, e a verdade da dor que me fez acordar num mundo onde os vivos e os mortos dançavam sob o mesmo céu. Tudo isso era meu. Era eu.
A esfera estremeceu.
— Agora, diga a ela o que fazer. — sussurrou Oliver, em tom mais baixo. — Com o coração. Com o que pulsa sob a carne.
Minha boca se entreabriu, mas não falei em voz alta. Eu pensei com todo o peso do meu ser: Desfaça-se.
E, num instante silencioso, a esfera se contraiu sobre si mesma como um pulmão exalando pela última vez e… desapareceu. Sem explosão, sem espetáculo. Apenas… nada.
Oliver sorriu.
— Hah. Não é mágica de manual, mas funciona.
Dei um passo para trás, arfando como se tivesse corrido quilômetros. Meus dedos tremiam. Mas junto do cansaço, havia uma sensação estranha: satisfação. Eu tinha feito isso. Não por força. Mas por saber quem eu era, mesmo que por um breve momento.
Pers desceu um único degrau.
— Você começou a trilhar o caminho, Hades. Um passo pequeno, mas… importante. Não há mais volta.
— Nem quero que haja. — disse, com a voz rouca.
Oliver soltou mais uma baforada do cachimbo. A fumaça formou o desenho de uma coroa rachada cercada de fogo e espinhos.
— Agora que quebrou a esfera… veremos se consegue conjurar uma.
Ele estalou os dedos, e novos símbolos começaram a girar no ar. A segunda etapa havia começado — e a torre da magia, com seus degraus infinitos, me aguardava.
E lá estava Pers, me observando com aqueles olhos que não julgavam, não exigiam — apenas esperavam. Como se ela soubesse que, no fim de tudo, eu chegaria até ela. Não como o garoto perdido que morreu. Mas como o apóstolo da morte que renasceu.
A esfera surgiu com facilidade inesperada. Era como se meus dedos já soubessem o gesto, como se a mana que pulsava ao redor da torre se curvasse à minha presença. Ela flutuava acima da minha palma, maior que a anterior, seu núcleo brilhando com um calor pálido, quase azul. O ar ao redor dela vibrava. Tudo parecia em silêncio — mas não era um silêncio vazio. Era o tipo de pausa que o mundo dá antes de um trovão.
Eu olhei para Oliver. Ele me encarava, olhos semicerrados, esperando que eu a desfizesse com a mesma calma de antes. Mas havia algo diferente agora, um impulso que me puxava de dentro. Talvez tenha sido o orgulho. Ou a adrenalina. Talvez a presença constante de Pers observando dos degraus, com seu vestido negro e olhos fixos em mim. Talvez tudo ao mesmo tempo.
Eu arremessei a esfera.
Ela cruzou a sala como um cometa preso a um fio invisível, e por um segundo, tudo congelou. Então, com um estrondo surdo, ela explodiu contra a parede encantada da torre. O impacto foi imenso — não apenas luz e som, mas força. A torre inteira estremeceu. Pedaços de runas esfarelaram-se no ar. Uma onda de energia empurrou Oliver para trás, o cachimbo caiu de sua boca, e a fumaça púrpura se dispersou em redemoinhos nervosos.
Pers não se mexeu. Apenas ergueu uma sobrancelha, os lábios se curvando em um meio sorriso quase maternal.
Oliver, por sua vez, recuperou o equilíbrio, os olhos arregalados. Ele encarava a parede onde a esfera atingira. Não havia rachaduras — a torre se regenerava sozinha —, mas o impacto fora real. Ele andou até mim devagar, olhos fixos, como se estudasse um artefato recém-descoberto.
— Onde... — disse ele, ajeitando o paletó amarrotado. — Onde você encontrou esse talento bruto, Perséfone?
Pers ergueu uma perna sobre a outra, recostada com elegância no alto da escadaria circular. Seus olhos ainda estavam sobre mim.
— Ele sempre teve. — respondeu ela suavemente. — Só estava trancado. O mundo antigo o esmagou antes que ele aprendesse a respirar. Aqui, eu o deixei viver.
Oliver passou a mão nos cabelos desalinhados, caminhando em círculos ao meu redor como se eu fosse uma nova estrela no céu. Um sorrisinho fascinado nasceu nos cantos da sua boca.
— Hades… meu caro… se você continuar assim, talvez, talvez… — ele estalou os dedos e uma runa flutuante dourada girou ao redor de mim — talvez eu considere te ensinar minha técnica secreta.
— Técnica secreta? — perguntei, arfando, ainda sentindo as vibrações do feitiço nos ossos.
Oliver inflou o peito com orgulho teatral, as mãos atrás das costas, o olhar mirando o teto abobadado da torre.
— A Purificação das Veias de Mana. Um ritual perigoso, extremamente doloroso e quase sempre fatal. Mas… se bem-sucedido, transforma o corpo em um condutor perfeito de mana. Nada de perdas. Nada de dispersão. Cada partícula de energia que entra em você permanece. Eternamente. — Ele me olhou de cima a baixo. — Apenas dois sobreviveram ao processo. Eu… e uma certa princesa de Thaldrakos que agora vive como se tivesse nascido com fogo no sangue.
Pers o interrompeu com suavidade, sua voz cortando como uma navalha feita de cetim:
— Se fizer isso cedo demais, você o destruirá. Mesmo com todo esse poder, ele ainda é recém-desperto. Precisa de estrutura… de raízes. Ou vai florescer apenas para queimar rápido demais.
Oliver suspirou, como um artista que fora impedido de concluir seu grande ato.
— Sempre comedida, minha cara. Mas você tem razão. — Ele voltou-se para mim. — Não se preocupe, Hades. Ainda teremos tempo. E se você continuar explodindo paredes dessa forma, talvez tenha mais talento do que eu imaginava. Mais até do que Regis.
O nome ficou pairando no ar como poeira luminosa.
Olhei para minhas mãos. A pele ainda vibrava. O eco da magia dançava sob meus dedos. E por um instante, senti — não imaginei, senti — que havia algo adormecido sob minha pele. Como lava sob pedra. Como um nome antigo esperando para ser lembrado.
Pers desceu dois degraus. Estava mais perto agora. Sua presença era uma calmaria após a tempestade.
— Não tenha pressa, Hades. — disse ela, com doçura. — Você já começou a lembrar… Agora só precisa continuar.
Oliver assobiou, recolocando o cachimbo nos lábios.
— Aula encerrada. Acho que todos nós precisamos de um momento para… reorganizar o cérebro.
A fumaça púrpura voltou a subir. E, com ela, a torre mágica começou a desaparecer…
A torre mágica de fumaça desvaneceu como se nunca tivesse existido. O céu voltou a se abrir sobre nós, e com ele, o cheiro familiar dos campos de girassóis. As pétalas se voltavam gentilmente para onde o sol deveria estar, ainda que não houvesse um sol ali — apenas aquela luz suave, dourada, quase viva, que parecia brotar da própria terra. O mundo de Pers nunca era totalmente noite, nem inteiramente dia.
Caminhamos em silêncio por um tempo, meus passos ao lado dos dela. O chão era macio, as folhas das flores altas roçavam meus ombros, e o som distante da vila dos esqueletos começava a se erguer como um sussurro de uma vida que nunca partiu.
Lá embaixo, entre os campos, os esqueletos se ocupavam de seus afazeres. Um deles carregava uma cesta de frutas translúcidas, outro pintava com dedos ossudos um mural colorido na parede de uma casa curva. Uma senhora de vestido esvoaçante — bem, uma caveira com vestido esvoaçante — estendia roupas em um varal encantado. As roupas dançavam com o vento, mesmo que ninguém ali respirasse.
Sorri, apesar de mim mesmo. Havia algo de profundamente irônico e bonito naquela imagem: mortos vivendo. Mortos sorrindo. Mortos em paz.
— Eles parecem… vivos. — comentei, sentindo a contradição vibrar em minha voz.
Pers também sorriu, sem olhar diretamente para mim.
— Eles são. — respondeu. — A morte só é fim pra quem se recusa a recomeçar. Eles escolheram continuar.
Assenti lentamente. A visão da vila parecia um espelho distorcido do que um dia fora minha própria vida — mas talvez mais honesto.
Depois de um tempo caminhando, sem saber bem o porquê, a pergunta escapou dos meus lábios:
— Por que o Oliver mudou… durante o treinamento? Ele não falou com os “caros leitores”. Ele parecia… diferente. Mais direto. Quase sóbrio.
Pers soltou um suspiro leve, e desviou o olhar para o alto, como se esperasse encontrar a resposta flutuando nas nuvens inexistentes.
— Porque, naquele momento, ele não estava escrevendo.
— Escrevendo?
Ela parou, inclinando-se sobre uma pedra branca como osso e sentou-se com leveza, convidando-me com um gesto suave. Sentei ao lado dela.
— Oliver não é apenas um professor. Ele é um autor — disse ela. — E a sala de aula… é o palco de sua Obra Magna.
— Obra Magna?
— O título completo é um pouco mais longo — disse Pers com um olhar teatral. Então, assumindo um tom grave e exageradamente cerimonioso, recitou com um gesto de mãos como se abrisse um livro invisível:
“Os Anais Dramáticos da História Trágico-Épica do Grandioso Continente de Chaia, como Registrado Pela Caneta Arcana do Último dos von Fell.”
Eu pisquei, surpreso.
— Esse é… o nome do livro?
Ela assentiu com um ar de resignação quase cômica.
— E ele leva a sério cada palavra. Quando está ensinando com aquele estilo… florido… é porque está escrevendo cada momento em tempo real. Literalmente. Através do cachimbo dele, a fumaça forma as palavras que são entalhadas no livro. É uma magia antiga, vinculada à memória e à narrativa. Um feitiço que transforma vida em crônica.
— Então quando ele fala com os “caros leitores”…
— Ele está falando com o futuro. Com quem um dia vai ler esse livro.
— E quando ele parou de dizer isso durante o treino?
— Ele pausou a escrita. Estava só vivendo o momento. Talvez tenha percebido que ali, você não era um personagem. Era um risco real. Um ser moldando mana com o toque da alma.
Fiquei em silêncio, encarando os girassóis que se curvavam levemente com o vento. A ideia de que minha vida estava sendo escrita em tempo real… me causava um calafrio.
— Você não se incomoda com isso? — perguntei, olhando para ela. — Ter suas palavras registradas para sempre?
Pers sorriu, mas havia um quê de melancolia no sorriso.
— Eu sou a Deusa da Morte, Hades. Tudo o que faço é preservado em silêncios, sussurros e epitáfios. Um livro é até uma forma gentil de ser lembrada.
Ficamos ali por um tempo, sentados lado a lado. A vila viva-dos-mortos se movimentava devagar lá embaixo. A brisa soprava o perfume doce das flores até nós.
E em meio àquele silêncio sagrado, pensei que, talvez, morrer não fosse o fim. Talvez… fosse apenas uma nova forma de ser contado.