A floresta era densa e fria, mesmo sob a luz fraca da manhã. Os galhos altos bloqueavam o céu, e a brisa carregava o aroma úmido da terra virgem. Johan encontrou abrigo entre raízes de uma árvore caída, longe do caminho principal. Havia musgo por todo lado, e o silêncio só era interrompido por sons leves de folhas sendo pisadas por pequenos animais.
Ali, com o corpo exausto e a mente em frangalhos, ele deitou Mithria com cuidado. Ela ainda dormia — ou fingia. O rosto machucado, os olhos inchados de tanto chorar. Mesmo assim, agarrava o grimório com os dedos sujos como se fosse a única coisa no mundo que ainda lhe restava.
Johan se sentou ao lado, os joelhos dobrados contra o peito. O corpo doía. A mente latejava. As visões do que vira no centro de pesquisa ainda queimavam em sua memória. O cheiro de sangue, os olhos costurados, os ossos modificados. O asco. Tudo ali era errado.
E agora, ele era um fugitivo.
Horas depois, Mithria acordou com um solavanco, olhos arregalados, ofegante. Seus olhos procuraram os limites da floresta com medo, mas a presença de Johan a fez parar.
— Calma. Tá tudo bem agora — disse ele, quase num sussurro. — Pelo menos... por enquanto.
Ela não respondeu. Apenas afastou os cabelos desgrenhados do rosto e abraçou os joelhos.
— Você... me viu. Aquelas pessoas. O que fizeram comigo. — A voz dela era fraca, como se rasgasse a garganta só de existir. — Por que não me deixou lá?
Johan hesitou, depois respondeu:
— Porque ninguém devia viver o que você viveu. E porque... eu não conseguiria esquecer se tivesse deixado.
Ela respirou fundo. Ainda tremia.
— Você também fugiu?
— Fugi de algo maior. A verdade. A podridão. A Igreja.
Mithria o encarou. Por um momento, parecia querer responder algo, mas desistiu. Em vez disso, puxou da bolsa improvisada um pedaço de carvão e, com uma folha grande, começou a desenhar. Johan observou em silêncio.
As linhas surgiam com uma precisão absurda. Cada traço era exato. Em minutos, ela desenhou a árvore onde estavam escondidos. Depois, ela mesma, deitada ali. Depois Johan. O nível de realismo era inquietante. Quase como uma fotografia viva.
— Você desenha desde quando? — ele perguntou.
— Desde pequena. Foi a única coisa que nunca conseguiram tirar de mim.
Enquanto ela desenhava, Johan abriu o grimório.
As páginas iniciais estavam em branco. Outras, cobertas de símbolos. Algumas respondiam ao seu toque, revelando fragmentos de textos, fórmulas, runas. Mas muitas outras... permaneciam seladas.
Mithria se aproximou.
— O que é isso?
— Um livro proibido. Um grimório que guarda segredos dos 13 caminhos, da Divergência... e daquilo que veio antes. — Ele virou uma página. — Parte dele me reconhece. Parte... não.
Ela olhou para o livro com uma expressão estranha. Como se algo dentro dela reagisse àquilo.
Mas não disse nada.
Em Henvyra, o Grupo Trivana se reunia em silêncio. A guilda ainda fervilhava com os rumores sobre Johan. O orfanato destruído. O crime. A fuga. Mas Damian permanecia calado.
Na manhã anterior, ele encontrara uma runa oculta na parede da antiga sala de armamentos. Um recado simples:
“Damian corre perigo. A Igreja é pior do que imaginamos.”
— Isso foi ele. — sussurrou, escondendo a runa com a mão. — Johan...
Greg caminhava em círculos.
— Isso não pode estar certo. Johan jamais faria aquilo. Não com crianças. Ele nem era desse tipo.
— Talvez ele nos enganou esse tempo todo. — disse Jorn, amargo. — Ou talvez... ele ficou louco.
Damian não disse nada. Mas seus olhos estavam duros.
Eles foram interrompidos por Kaera.
— Vocês querem morrer também? Afastem-se disso. Esqueçam Johan. A Igreja já o marcou.
— E se ele tiver razão? — Damian perguntou.
Kaera hesitou por um momento, mas depois apenas respondeu:
— Então vocês precisam ficar mais fortes. Pra sobreviver. E talvez... um dia... ajudar quem precisa.
Em outro lugar da cidade, Bispo Thaedren observava a fumaça subir de um incensário.
— O garoto se foi. E levou a arma com ele — disse Seliah.
— A menina ainda vive?
— Infelizmente. Mas está instável. A magia dentro dela... é diferente.
Thaedren girou um anel de prata no dedo. Então, olhou para um dos homens encapuzados ao lado.
— Traga o Caçador. Agora é oficial.
O homem assentiu. Saiu.
Seliah olhou para o espelho rúnico no centro da sala.
— E o outro? Damian?
— Ele já sente. O Éter o toca. Logo... ele será nosso também.
Enquanto isso, em meio às árvores, Johan observava Mithria dormir de novo. O rosto mais calmo. As mãos sujas de carvão. O desenho dobrado ao lado.
Ele abriu o grimório mais uma vez, tocou uma página selada.
Desta vez, a página brilhou levemente.
E, por um instante, ele ouviu uma batida distante. Como um coração enterrado em pedra.
Algo... ou alguém... o chamava.