Altar, Cobaia, Asco e Fuga.

A noite em Henvyra era densa. O céu sem estrelas parecia mais baixo, como se a própria cidade estivesse sendo engolida por algo invisível. Johan se movia entre becos e sombras, o capuz cobrindo o rosto e a magia envolvendo cada passo. Ele deixava para trás o conforto frágil da estalagem, do grupo, do nome. E mergulhava num silêncio antigo.

Na lateral da grande igreja, por trás da estrutura que abrigava as capelas menores, havia uma entrada esquecida. Seliah havia passado por ali dias antes. Johan seguiu o mesmo caminho, camuflado por sua afinidade com as trevas.

A velha capela cheirava a pedra úmida, madeira e poeira acumulada. Seliah ajoelhara-se diante do altar naquela noite — Johan a seguira até ali — e com um simples gesto revelou um alçapão selado por uma runa invisível. Um brilho breve. Um estalo. E a passagem foi aberta.

Ela desapareceu pelas escadas de pedra abaixo. Johan esperou. Depois a seguiu.

O túnel era estreito e longo, as paredes cobertas por inscrições que misturavam os caminhos conhecidos e símbolos estranhos, divergentes, proibidos. Quanto mais fundo descia, mais o ar pesava.

No fim do túnel, o espaço se abria: um complexo subterrâneo, com várias salas interligadas por corredores polidos. Uma dúzia de estudiosos caminhava com pranchetas, conjuradores controlavam runas flutuantes, e artefatos mágicos eram manipulados como peças de relojoaria.

Era ali que a Igreja guardava aquilo que não podia ser mostrado à luz do dia.

Johan se movia invisível, escorregando entre as sombras. Entrou na primeira sala… e o que viu o faria jamais esquecer.

Havia um homem preso a uma estrutura metálica. Vivo. Mas seu tórax fora substituído por um receptáculo de cristal. O núcleo pulsava lentamente, sugando o Éter do corpo, mantendo o coração batendo por controle mágico.

Em outra sala, uma criança — com os braços amputados e substituídos por próteses metálicas. As pálpebras costuradas. Apenas soluçava, exausta demais para chorar.

Corredores com corpos costurados em blocos rúnicos. Cabeças preservadas em frascos, murmurando encantamentos automáticos. Mulheres grávidas com artefatos implantados dentro do útero. Rituais em execução com sangue ainda quente.

O asco apertou a garganta de Johan. Mas ele seguiu. Sem tremer. Até ouvir algo mais.

— A runa respondeu — disse Seliah, em voz baixa. Ela estava diante de um espelho de Éter, comunicando-se com alguém do outro lado.

— Ele já começou a escutar? — perguntou uma voz grave, distorcida pela distância.

— Ainda não tem consciência. Mas a conexão está feita. E se ele se aproximar da Verdade…

— Elimine-o. Como combinado.

Johan soube na hora: falavam de Damian. Talvez dele também.

E foi ali, no silêncio dessa descoberta, que a runa sob seus pés pulsou.

Um brilho. Um som baixo.

— O que foi isso? — disse um pesquisador próximo, olhando para o chão.

Johan escapou por pouco.

 Nos dias seguintes…

Ele voltou. Sempre à noite. Sempre sozinho. 

Cada visita era mais difícil. O terror se tornava raiva. O nojo virava cálculo.

Ele memorizava os caminhos, símbolos, falas. Observava os nomes, as técnicas. O centro de pesquisa era maior do que parecia. E mais doente.

Dormia pouco. Comia menos. O grupo notou.

— Tá tudo bem? — perguntou Damian.

— Cansaço — respondeu Johan.

Mas seus olhos não sustentavam mais mentira alguma.

A Igreja começou a investigar. Runas de rastreio foram acionadas. Fluxos de sombra analisados. 

E então, Johan soube que era sua última chance.

 Na sexta noite…

Ele voltou. Mais fundo. E ouviu um som que cortou a escuridão como uma adaga fina: choro.

Não um lamento de dor. Um choro que implorava silêncio.

Ele a encontrou numa cela. Cabelos escuros, pontas roxas, corpo machucado. Olhos que já tinham desistido.

— Eles estão vindo. Agora. Levanta! — sussurrou Johan.

Ela não respondeu. Apenas o olhou, como se ele fosse mais um pesadelo.

Ele entrou. A pegou nos braços. Ela não resistiu.

E ao sair, viu algo que o fez parar: uma estante lateral, iluminada por velas azuis, guardava um grimório trancado por sete fivelas rúnicas.

Ao se aproximar, todas se abriram sozinhas.

O livro o reconheceu.

Johan o pegou. Pesado, grosso, com capa de couro escuro e uma espiral dourada gravada no centro.

Não precisava ler. Ele sabia o que tinha nas mãos.

 “Todos os caminhos do Éter... a Divergência... e as ruínas do que veio antes.”

Ele o entregou à garota, ainda em seus braços.

— Segure isso com toda sua força pra mim por favor. Eu vou tirar a gente daqui.

Ela o apertou contra o peito, mesmo sem entender. E Johan correu.

Os corredores pareciam mais longos do que nunca. Cada passo ecoava como um trovão aos ouvidos de Johan. A garota nos braços tremia em silêncio. Mas segurava o grimório com os dois braços como se fosse uma âncora. Ou escudo.

Johan ativou novamente sua magia de sombras, mas o feitiço estava instável. O horror, o cansaço, a adrenalina. A sombra tremia com ele.

Pelo menos três conjuradores estavam na ala principal, e ele ouviu ordens sendo dadas:

— Há uma perturbação no lacre da cela treze. 

— Alerta de ativação rúnica no setor interno! 

— Tracem o fluxo de retorno da sombra, agora!

Não dava mais tempo.

Johan acelerou, dobrando corredores que memorizara em visitas anteriores. Seu plano inicial era fugir pela cripta lateral, mas agora seria impossível. Tinha que subir pela entrada da capela — a mesma que usara na primeira noite.

Chegando à escada estreita, sentiu o chão tremer. Uma runa de detecção havia sido ativada atrás dele. Maldição.

Ele escalou os degraus com a garota nos braços, o grimório pressionado entre os dois. Ela, mesmo fraca, sussurrou:

— Eu vi o que fizeram com os outros. Achei que ia ser igual.

Johan não respondeu.

— Você... vai me deixar depois?

— Não — respondeu ele, frio e firme.

A capela abandonada estava mergulhada em penumbra. O selo que guardava o alçapão havia sido restaurado — Johan o quebrou à força com magia concentrada, explodindo a tampa com um impulso de Éter sombrio.

A madeira estalou. Pó subiu no ar. Mas a passagem estava aberta.

Ele saiu, atravessando o altar, e quase tropeçou em uma figura parada na penumbra.

Era o bispo Thaedren.

Baixo, sorridente, olhos gentis. E um sorriso acolhedor no rosto.

— Ora, ora… quem diria. O jovem Johan, explorando além do permitido.

Johan recuou um passo.

— Vai me parar?

— Eu? De forma alguma. Seria imprudente. Mas a verdade… tem um preço.

— A verdade fede. Como essa igreja.

O sorriso do bispo se ampliou. E então ele sumiu nas sombras, como se nunca estivesse ali.

Johan correu. Deixou a igreja. Sumiu nas vielas da cidade. A noite o abraçou.

Naquela madrugada, ninguém o viu partir.

Nem seus amigos. Nem Kaera. Nem Damian.

Ele fugiu sem olhar para trás.

Mas deixou uma mensagem para seus amigos na dungeon:

 ''Damian corre perigo, a igreja é pior do que imaginamos.''

 No dia seguinte

Um orfanato ardeu.

A Igreja apontou um culpado: Johan. 

Um assassino. Um traidor. Um ladrão de grimórios. Um herege.

Documentos, testemunhas, acusações. Tudo forjado. Tudo oficial.

As ruas sussurravam seu nome com medo e repulsa.

— Ele era estranho, mas nunca pensei que fosse capaz disso... 

— Aquele do cabelo branco, né? Silencioso demais. 

— Dizem que ele fugiu com uma bruxa… e um livro maldito.

O Grupo Trivana recebeu a notícia.

— Isso é mentira — disse Greg.

— A gente conhece ele — murmurou Jorn.

Damian apenas olhou para o céu, sem dizer nada.

Eles sabiam.

Mas Johan já estava longe.

E agora, procurado em todo o reino.