Ezkiel estava prestes a cair para dentro do novo acesso, quando manteve sua postura ereta. Isso não era uma tarefa fácil com as dezenas de feridas em seu corpo e mente. À sua frente estavam os seres conhecidos como Outros, paralisados de medo, e às suas costas um aposento escuro, que nem mesmo seus olhos conseguiam se acostumar. A sensação que agarrava seus órgãos persistia, unida ao calafrio ininterrupto. Porém, que escolha ele possuía? O portão já havia sido completamente devorado pelo solo quando deu seus primeiros passos à frente.
Encarando pela lateral dos ombros, notou os Outros se remexendo em fúria e medo, não conseguindo dar um passo à frente — como um animal cujos instintos não lhe deixavam ter controle sobre suas ações.Ezkiel continuou a vagar em frente. As correntes dos braços se remexiam contra seu corpo, enquanto a de seu pescoço encostava levemente contra o solo. A cada passo na escuridão, o silêncio se tornava maior, como se nem mesmo o som tivesse direito de sair desse lugar.
Adentrando a escuridão, o garoto perdido tropeçou em algo. Caindo contra o solo, notou que o chão à sua frente estava repleto de correntes, porém diferentes das suas: eram brancas como lírios. O chão se assemelhava a um ninho de cobras, completamente inundado pelas correntes que se entrelaçavam entre si. Ezkiel tomou cuidado a cada passo, tentando não encostar nas correntes sobre o solo, mesmo que fosse impossível. Algo de errado havia com aquele local — tudo parecia etéreo e misterioso, causando uma reação complexa em todo o seu corpo. A palavra que vinha à sua mente era desconforto.
Esse sentimento só aumentava a cada passo, mas o garoto apenas seguia em frente. Não que possuísse outra escolha. As criaturas ainda o encaravam no portão distante. Nesse momento, ele já havia perdido a localização das paredes — apenas adentrava a escuridão à sua frente, observando os olhos carmesins atrás dele se distanciarem até virarem pequenos pontos vermelhos... depois nada, apenas escuridão.
Ezkiel vagou pela escuridão por um tempo indeterminado. Nem ele mesmo sabia quanto tempo havia se passado, com a única companhia sendo as correntes brancas por todo o solo. Porém, esse momento de calmaria após toda a sua fuga fora benéfico para sua mente, mas ruim ao seu corpo. Aos poucos notava os efeitos dos ferimentos em sua movimentação. Seu ombro direito já não podia mais se mover, pois o esvair da adrenalina. O marcar se tornara mais pesado, e a dor, mais intensa. O gosto de sangue pulsava em sua boca, forçando-o a cuspir a saliva avermelhada contra o solo.
Em que lugar estou? Isso parece infinitamente grande! Ah... Foda-se! Já cansei de entender esse sonho... Estou muito cansado pra isso! Apenas quero acordar logo!
Despertar disponível em 1h 15min
Ezkiel olhou incrédulo para o cronômetro. Uma vontade de gargalhar prendeu-se em sua garganta banhada em sangue. Seus olhos estavam começando a se tornar pesados, pela quantidade de ferimentos e energia gasta. Logo, seu corpo iria colapsar.
Não pode ser... HAHAHAHA! Só estou 45 minutos nesse inferno! Nem passou da metade ainda...
O garoto colocou a mão esquerda contra o rosto, sentindo o metal das correntes tocando seu peitoral machucado, gosmento com o próprio sangue da ferida de seu ombro.
Não sei se vou aguentar muito tempo... Não aguento mais esse pesadelo... Eu não mereço isso... Eu não nasci pra isso! Eu quero ir pra casa...
O medo tomou conta da mente do garoto, o paralisando por pequenos instantes. Sua visão se concentrou na adaga em sua mão direita, quase caindo contra o solo pela pegada fraca que conseguia efetuar com o braço naquele momento.
Ele sabia que não poderia desistir. Sabia que não podia aceitar a morte. Ele havia feito essa escolha: tentar sobreviver. Mas não sabia o custo que isso teria.
Seu corpo ainda pulsava com o desconforto, sua mente raciocinava e era engolida pelo medo que transbordava dos aposentos, mas ele continuava caminhando em frente. Não havia motivo aparente — apenas a vontade de viver, algo que nem ele mesmo sabia que tinha.
Por todos esses anos em sua vida, nunca havia sofrido nenhum grande trauma. Ezkiel sempre tivera uma vida comum. Sempre fora um garoto medíocre. Notas médias, bom nos esportes, mas não o suficiente para estar em nenhum time, com poucos hobbies. Ele era alguém comum, sem sonhos ou ambições, sem desejos grandes ou pequenos. Apenas deixava a vida lhe levar para o melhor caminho. Seu pai e sua mãe sempre cuidaram bem dele, sua namorada era amorosa e estranha de um jeito fofo. Sua vida caminhava por um padrão comum e ele nunca sequer pensou em fazer uma curva. Gostava de morar naquela cidade pequena e não tinha sonhos de se mudar.
Na verdade, Ezkiel não tinha sonhos.
Agora, se via preso nesse inferno. Sendo guiado por um instinto de sobrevivência que não sabia que existia. Algo que borbulhou de dentro dele no estado de crise. E o garoto se agarrou nesse instinto com todas as suas forças — afinal, era a única coisa que lhe restava. Para alguém que nunca teve vontades, notar uma nascendo dentro de seu corpo, mesmo que não percebesse, sustentava sua existência mesmo no inferno.
— Finalmente tenho visitas! — ecoou uma voz da escuridão.
Ezkiel tomou um susto, quase caindo contra o solo pela moleza de seu corpo.Após a voz parar de ecoar, todas as correntes do solo começaram a se mover na mesma direção, como se algo estivesse as puxando.
— Q-quem está aí? — a voz fraca do prisioneiro ecoou pela escuridão. Um desconforto maior bateu na mente de Ezkiel. A voz não era nada parecida com a dele e, mesmo saindo de sua garganta, parecia confusa. Era mais fina e com um timbre diferente, como o de um garoto pequeno que não conseguiu crescer.
— Ah... Essa não era a resposta que eu esperava... Muito menos a visita! — o homem tinha um tom sarcástico em sua voz áspera, devido à falta de uso.
Ezkiel se manteve parado em silêncio. A voz do homem borbulhava seus órgãos e emergia uma pressão dentro de seu corpo que nem sabia que existia. Esse sentimento apenas piorava a cada instante, como se uma força sucumbisse dentro de seu coração, tentando arranjar espaço entre seus órgãos.
— A quem devo tal companhia? — a voz satirizava, divertindo-se em poder conversar.
— E-Ezkiel... Ezkiel Arcs! — disse o garoto, ainda tentando se adaptar com sua nova fala.
As correntes se mexeram novamente em resposta — cobras subindo entre seus pés, se entrelaçando umas às outras, seguindo a voz de seu líder.
— HAHAHA! — gargalhada preencheu a escuridão. As correntes reverberaram, tremendo em seu tom branco por todo o aposento, unindo-se à sinfonia metálica. — Um forasteiro! Oh, rapaz! Não se deve dizer seu nome a ninguém, muito menos o completo. Se tivesse meus braços livres, poderia identificar seus sigilos. Afinal, nesse mundo, quem sabe seu nome tem controle sobre ele!
O homem então deu uma breve pausa em sua fala. O silêncio ecoou pelo ambiente, enquanto o medo de Ezkiel se fundia com a pressão em seus órgãos.
— Claro... Não é culpa sua... Na minha época, apenas alguns sabiam os sigilos. Imagino que agora quase ninguém mais saiba o verdadeiro poder deles — ele fez uma pausa, enquanto todas as correntes se moveram em uníssono para a direita de Ezkiel. — Isso me leva a outra pergunta: como alguém que não conhece os sigilos adentrou minha cela?
As correntes continuavam a ser puxadas, indicando um caminho ao prisioneiro. Uma informação a qual Ezkiel não sabia como usar. Se a dor já estava ruim apenas com ele falando, imagine se aproximar desse homem.
— Eu apenas arranhei o portão... — a explicação foi simples, tão simples quanto fora o feito para ele em seu excesso de raiva.
— HAHAHAHAHA! Apenas arranhou o portão! Parece que você possui senso de humor, meu caro visitante. Não é uma companhia tão ruim quanto parecia — as correntes se bateram em felicidade.
Ezkiel, ainda confuso, tomou coragem em seguir o rumo das correntes. O homem fora o primeiro nesse mundo a ser minimamente gentil com ele. E era a primeira vez que tivera uma conversa decente após sua chegada.
— Oh... Sua pulsação não mente! — as correntes pararam de se mover com o pronunciamento do homem. A dor em Ezkiel se intensificou. — Você quebrou mesmo os sigilos com um arranhão? Como um desalmado suportou a pressão dos sigilos?
Havia uma dúvida real no ambiente. As correntes se mexeram mais um pouco, seguindo a direção destinada. Entretanto, a pressão no peito de Ezkiel começou a diminuir aos poucos, porém ainda estava presente, empurrando seus órgãos, tentando tomar espaço dentro de seu corpo pequeno.
— Utilizei minha faca para arranhar o portão... Os símbolos estavam fazendo minha cabeça doer muito... — mentiu Ezkiel. Na verdade, a dor estava diminuindo quando efetuou o corte — ele apenas arranhou o portão com raiva.
— HAHAHAHAHA! Sua cabeça doer? Ah, caro forasteiro! Sua mente deveria ter se corroído apenas ao olhar os sigilos! — disse a voz em um tom engraçado, porém triste ao mesmo tempo. — Quebrar os símbolos de um Arque apenas com uma faca... Os tempos mudaram mesmo.
Ezkiel deu mais alguns passos à frente, ainda com cautela do homem preso àquelas milhares de correntes.
— Não tenha medo, Ezkiel Arcs. — Assim que a voz falou seu nome, um arrepio perfurou sua mente, fluindo por todo o seu corpo como uma cascata. — Você deve ser um daqueles especiais, meu caro visitante. Daqueles que possuem talentos únicos nesse mundo.
O garoto continuou seguindo em frente até chegar ao fim das correntes. À sua frente estava um homem completamente nu, preso a milhares de correntes que quase não deixavam sua pele à mostra. Ele estava suspenso no ar, com as pernas unidas e os braços estendidos. Centenas de correntes brancas corriam sobre seu corpo, puxando-o para cima, enquanto apenas as correntes dos pés caíam contra o solo. Seu rosto era a única parte visível, mas seus cabelos pretos, com diversas mechas brancas prateadas, caíam contra o rosto e o corpo, descendo até o chão.
Ao notar a aproximação de Ezkiel, ele jogou a cabeça para trás, fazendo todas as correntes de seu corpo se moverem, uivando o metal por todos os lados da escuridão sem fim.
Com o rosto visível, ele sorriu. O homem era magro, sem barba nenhuma sobre o rosto. Os olhos brilhavam em um âmbar único, fazendo parecer joias preciosas. As maçãs do rosto estavam salientes e as sobrancelhas bem preenchidas. A boca era craquelada pela falta de água, mas ainda havia um tom avermelhado nela. Era um homem belo, na faixa dos 30 anos.
— Pelos céus fragmentados! Você é mais feio do que eu esperava!