Rafaela chegou no evento como quem nunca tivesse sumido.
Blazer azul claro, sorriso que causava calor em ambientes com ar- condicionado e olhos que atravessavam multidões até encontrar os de Laura.
- Oi, sumida - disse Laura, sem conseguir esconder a ironia apaixonada.
- Oi, esquecida - respondeu Rafaela. - Nunca fui embora de verdade
E nesse reencontro de poucas palavras e olhares longos, o mundo pareceu apertar o pause.
Os flashes começaram.
O evento beneficiente LGBTQIA+ estava lotado de gente importante, colunistas e curiosos.
Laura segurava o braço de Rafaela como quem queria que ela não escapasse.
Mas o destino é irônico.
A EMERGÊNCIA
Rafaela recebeu a ligação no meio de uma entrevista:
- Aras Morro do Gavião. Emergência. A égua Princesa entrou em trabalho de parto e está com complicações.
Ela olhou para Laura.
- Eu tenho que ir. Agora.
- Então vai. Mas eu vou junto.
- Tem certeza? Vai sujar esse vestido aí.
- Melhor sujar o vestido do que ficar limpa de você.
Entraram no carro ás pressas.
O motorista se atrapalhou com o GPS, e Laura usou o próprio celular para guiar o caminho.
O salto foi trocado por botinas emprestadas.
O vestido por uma camisa de flanela do funcionário do aras.
E Laura, sem perceber, já estava dentro do mundo de Rafaela - e não queria mais sair.
ARAS MORRO DO GAVIÃO.
A noite estava úmida
O cheiro de feno e adrenalina misturado no ar.
Laura ficou observando á distancia, atrás de uma cerca, enquanto Rafaela deitava no chão de terra ao lado da égua, dava comandos firmes e fazia o impossível: ajudava o potro a nascer.
Uma cena linda, visceral.
E de algum modo, mais erótico do que qualquer evento black-tie.
Quando o potro finalmente nasceu, Rafaela se encostou num canto, suada, suja, e com os olhos brilhando.
- Você veio mesmo - disse ela, olhando para Laura.
- Eu vim porque, se é com você, então vale a pena sujar tudo.
Um funcionário passou por elas e comentou baixinho:
- Ela nunca deixa ninguem vir até aqui com ela. Você deve ser especial.
Laura ficou em silêncio.
Mas por dentro, o coração já assinava todos os contratos invisíveis que a vida estava escrevendo.
- Eu ainda não sei o que a gente esta fazendo - confessou Laura.
- Eu também não. Mas sei que quando você chegou hoje, tudo ficou mais leve.
- E quando você some, tudo pesa.
- Então talvez a gente tenha que parar de fugir.
Elas se encaram.
Sem beijo.
Mas com tudo que um beijo teria dito.
- Esta tarde. Fica aqui hoje - Sugeriu Rafaela , já com a voz mais suave que o habitual.
Laura hesitou.
- No quarto da égua ou você tem alojamento para humanos?
Rafaela riu.
- Tem um quarto de hóspedes. Com lençol limpo e travesseiro que não julga.
- Eu aceito. Mas só se vier com histórias antes de dormir.
No alojamneto, com cheiro de madeira, chá quente na caneca e o silêncio do campo, as duas se sentaram lado a lado na cama.
- Sempre quis ter irmãos - confessou Rafaela. - Ser filha única de um pai gigante te faz crescer com a sensação de que precisa dar conta de tudo.
- Seu pai é ...?
- Empresário. Daqueles que abrem impérios com um telefonema. Mas o que ele nunca entendeu é que alguns impérios também precisam de colo.
Laura segurou a xícara mais forte.
- A minha família é barulhenta. Meus pais são artistas. Eu cresci entre palcos e dívidas, mas com amor sobrando.
- Você foi amada?
- Fui. Mas nunca soube muito bem como amar sem me perder no outro.
Silêncio. Olhares.
- E agora? - Sussurrou Rafaela.
- Agora estou aqui. Na terra, no meio do nada, dormindo ao lado de uma mulher que me desconstrói com calma.
E dormiram assim.
Não com o corpo. Mas com as histórias.
E isso, de alguma forma, era mais íntimo que qualquer toque.