O "Cometa Gorduroso" cheirava a óleo de motor velho e sonhos que não deram certo. Era, pra ser gentil, um boteco espacial cravado na lateral de um asteroide qualquer. O tipo de lugar onde caminhoneiros com tentáculos demais e caçadores de recompensas com moral de menos paravam pra comer algo que, tecnicamente, podia ser chamado de comida.
Amélia — ou "Miss Paradoxo", como o cozinheiro de seis braços gostava de zoar — girava um cubo de açúcar no seu "café". Era um troço preto e grosso que parecia encarar de volta, tipo um abismo existencial numa xícara. Preso no cinto dela por um fio já gasto, um Tamagotchi rosa neon com a tela trincada começou a apitar, irritado.
Análise de tédio: 98.7%. Risco iminente de decisão poética e mal pensada.
A voz, uma mistura bizarra de chiado de rádio e apresentador de programa de auditório, saiu do aparelhinho.
"Cala a boca, Zig-Zag," Amélia resmungou, sem nem desviar o olhar do café.
Ela estava no fundo do poço do tédio. Um tédio de proporções galácticas, que fazia o vácuo lá fora parecer a Disneylândia. A última aventura — fugir de um buraco negro senciente que se apaixonou por ela e queria "consumir seu amor" de um jeito bem literal — tinha sido um porre. As raízes do seu cabelo brilhavam num vermelho vibrante, mas as pontas, uma bagunça de roxo e rosa, estavam desbotadas, quase cinzas. Um reflexo perfeito da sua bad vibe.
"O de sempre, Miss Paradoxo?" A voz de Glarth, o cozinheiro, soava como pedras rolando numa lata. Dois braços limpavam o balcão, um servia uma gosma verde pra um cliente com cara de lagarto e os outros três coçavam lugares diferentes no seu corpo de inseto gigante.
Sugestão: Peça o lubrificante de motor. Tem mais nutriente que essa lama que você chama de café, bipou Zig-Zag.
"Não, Glarth. Hoje não," disse Amélia, ignorando a IA pentelha. "Hoje eu quero... beleza. Uma coisa pura, sabe? Sem filtro. Quero ver onde as estrelas nascem."
Glarth parou de se coçar. "A Nebulosa do Berçário? Fica a uns doze parsecs e três paradoxos temporais daqui. E a comida lá é um lixo. Só gás e sonhos."
"Exato." Um sorriso de verdade apareceu no rosto de Amélia, fazendo as pontas do cabelo dela brilharem num rosa súbito. Ela jogou uma pedrinha leitosa no balcão, que brilhou com a imagem de um beijo roubado de um rei que nem tinha nascido ainda. "Pela bebida."
Glarth pegou a pedra com uma pinça. "Um momento de déjà vu pré-pago. Justo."
Amélia se levantou, se espreguiçando. Era a hora. Fechou os olhos, bloqueando o barulho do boteco, e se concentrou no desejo. Onde as estrelas nascem. Não a imagem, mas a ideia. A porrada cósmica da fusão nuclear, a dança da gravidade, a primeira luz rasgando a trevas.
A mente dela, aquele mapa bugado da realidade, começou a zumbir. E não era força de expressão. A culpa era dos pais dela, um casal de cartógrafos teóricos obcecados. Eles não mapeavam países, eles mapeavam a realidade. A ideia maluca deles era que todos os universos estavam ligados por uma rede, o "Ponto Zero". Um "ping" nesse ponto, e pronto: o mapa definitivo de tudo que existe.
Claro, eles não contavam que a filha pequena deles fosse tropeçar no cabo de energia bem na hora do show. Em vez de "pingar", o laboratório "puxou" o Ponto Zero pra dentro. E o epicentro do desastre que reescreveu a física local? Amélia. Ela não ganhou superpoderes. Ela virou o bug. O corpo dela se fundiu com o mapa. Viajar, pra ela, era só um ato de vontade, um desejo forte o bastante pra dobrar o espaço-tempo.
As cores no seu cabelo começaram a girar, um redemoinho de vermelho, roxo e rosa. O mundo ao redor começou a ficar fino, as bordas do balcão tremeluzindo. Um cheiro de ozônio e canela tomou conta do ar. O cálculo da rota estava quase pronto. Zig-Zag ficou quieto, um raro momento de instinto de sobrevivência. Ele sabia que interromper o Foco era cutucar a onça — ou o buraco negro — com vara curta.
Foi aí que um desejo perdido, uma vontade bem mundana vinda do fundo do seu estômago, atravessou a concentração dela como um cometa bêbado:
"...e umas batatas fritas. Umas batatas fritas perfeitamente crocantes..."
O Tamagotchi soltou um guincho de pânico digital.
ALERTA! PENSAMENTO INTRUSO DETECTADO! ABORTA! ABORTA! REDIRECIONANDO PARA DESEJO DE CARBOIDRATO!
Tarde demais. A imagem mental foi tão forte — o dourado perfeito, o sal brilhando, o croc — que o cálculo da viagem engasgou. O zumbido virou um chiado feio.
Com um estalo que soou como um milhão de palitos de dente quebrando ao mesmo tempo, Amélia sumiu do Cometa Gorduroso.
Ela aterrissou com um baque surdo.
O ar era quente. Seco. Salgado. E silencioso. Silencioso até demais.
Pouso concluído, a voz de Zig-Zag soou, pingando sarcasmo.
Bem-vinda ao Planeta Colesterol. População: Frita. Chance de beleza cósmica: 0.001%. Chance de indigestão: 99.9%.
Amélia abriu os olhos. Estava numa planície dourada e infinita, sob um céu roxo escuro, sem nenhuma estrela. No lugar delas, cristais brancos gigantes, do tamanho de pequenas luas, flutuavam e emitiam uma luz suave.
"Mas que...?"
Ela se agachou e quebrou um pedaço do chão. Tinha o formato de um palito. Era, sem dúvida, uma batata frita. Geologicamente perfeita. O planeta inteiro era feito de batata frita.
Ela riu. Uma gargalhada alta, histérica, que viajou sozinha pela planície.
Foi quando ela sentiu a vibração.
O chão tremeu. Do solo, figuras altas e esguias, feitas de cristais escuros como obsidiana, começaram a brotar. Os Sílexianos. Os nativos. E o som da existência barulhenta dela tinha acabado de quebrar o silêncio perfeito que eles cultivavam há milênios.
A vibração virou um zumbido agudo, que fazia os dentes dela doerem. A vibe era de pura, absoluta e silenciosa fúria.
Amélia parou de rir. Olhou para as dezenas, centenas de seres de cristal se erguendo, todos focados nela.
"Ah," ela disse para o silêncio raivoso. "Deu ruim."
Análise tática: Inimigos de sílica. Sugestão: Ofereça um plano de dados. Ou corre. Correr parece bem mais viável, estatisticamente, aconselhou Zig-Zag.
Longe dali, num escritório fora do tempo e do espaço, um ser observava a cena num espelho de obsidiana líquida. Ele usava óculos na ponta do bico e ajeitou as penas do ombro. Dr. Qwakthulhu, o Arqui-Pato Metafísico, suspirou.
Para ele, Amélia não era uma garota. Era um erro na matriz. Uma anomalia ambulante que podia, com uma vontade súbita de comer porcaria, criar um planeta do zero, quebrando umas cem leis da física e da gastronomia no processo. Ele não a odiava. Ódio era uma emoção bagunçada. Ele a temia. Onde ela pisava, as regras derretiam. E onde o caos reinava, a verdade podia vazar.
Ele observou os Sílexianos se preparando para apagar a fonte do barulho. Com um grasnido baixo que dobrou a luz da sala, Dr. Qwakthulhu abriu um arquivo. O título brilhava com uma luz fria: "Protocolo de Contenção: Paradoxo".
Pela estabilidade do universo, a garota-glitch precisava ser... deletada.