UNOversal Desastre – O Dia em que a Realidade Pediu Arrego

O ar do Planeta Colesterol vibrava.

Não era um som, era uma sensação. Uma fúria silenciosa e crescente que fazia o ambiente, já pesado com cheiro de fritura e sal, ficar quase sólido. E marchando na direção de Amélia, não com passos, mas deslizando pelo chão de batata frita solidificada, vinham centenas de Sílexianos. Eram seres esguios, feitos de obsidiana polida, verdadeiros espectros de geometria pistola.

O crime dela? Fazer barulho. Ser de carne. Basicamente, existir.

"Sugestão tática: Pânico", bipou Zig-Zag, direto do cinto dela. "Minha análise rápida? A gente tem 99,8% de chance de virar enfeite de jardim minimalista e silencioso."

"Cala a boca, tô pensando", rosnou Amélia, os olhos varrendo a paisagem bizarra. Ela precisava de um Salto, mas fazer um Salto sob pressão era como tentar passar uma linha na agulha durante um terremoto. O zumbido psíquico dos nativos fritava sua concentração.

Foi nesse exato momento que o Dr. Qwakthulhu, que espiava tudo de seu espelho de obsidiana líquida a uma distância absurda, resolveu que só assistir já tinha perdido a graça. A anomalia precisava de um basta.

Com um grasnado que soou como o universo virando uma página, ele não mandou um exército. Ele mandou um conceito. Uma ideia irresistível que ele plantou na cabeça da Amélia, disfarçada de pensamento aleatório.

E, de repente, no meio do caos, Amélia teve uma epifania. Uma solução tão idiota que era impossível não dar certo.

Ela arrancou um pedaço gigante de batata frita do chão, mergulhou numa poça de gordura borbulhante e, com toda a força, arremessou o troço na direção de uma das luas de cristal de sal do planeta.

Acertou em cheio.

Uma chuva fininha e deliciosa de sal começou a cair sobre os Sílexianos. Por um segundo, eles pararam, confusos. A fúria silenciosa deles foi interrompida por uma sensação totalmente nova... tempero.

Era a brecha que ela precisava.

"Pra casa, Zig-Zag! AGORA!", ela gritou, fechando os olhos e focando não num lugar, mas na sensação familiar e bagunçada do seu apartamento. A realidade se dobrou com um gemido, e com um cheiro de batata frita e ozônio, ela sumiu.

Amélia aterrissou de cara no seu colchão de bolhas sem gravidade, que estourou em protesto. O apê estava como ela deixou, só que agora coberto por uma fina camada de sal. Foi aí que a mensagem chegou. E não foi um bipe do Zig-Zag.

Dessa vez, foi diferente. A realidade pareceu escurecer, e uma voz, antiga e profunda como um sino de catedral, ecoou na sua mente:

"Amélia. Senhorita Paradoxo. Anomalia 7.34. Suas ações desestabilizaram o Setor Gastronômico-Silencioso. Sua existência é um paradoxo que precisa ser resolvido. Por ordem do Sindicato dos Patos Sábios, você está formalmente convocada para um Duelo Conceitual. As regras serão estabelecidas. Sua presença é obrigatória. Recusar resultará na recalibração forçada da sua assinatura existencial para a de um pires esquecido."

A voz sumiu, deixando um silêncio pesado.

Zig-Zag piscou freneticamente. "Ok, essa é nova. O Pato passou pelo meu firewall. O cara tá falando sério."

Amélia se levantou, limpando o sal de um bigode que, por algum motivo, tinha acabado de aparecer no seu rosto. Um sorrisinho torto e perigoso brotou no rosto dela. Ela não estava sendo convidada pra um jogo. Era uma emboscada. E se tinha uma coisa que ela amava mais do que as maravilhas do universo, era virar a mesa bem na cara de quem já canta vitória.

"Beleza, Zig-Zag", disse ela, com a voz perigosamente calma. "Avisa que eu vou. Mas avisa também que eu só jogo se as minhas cartas personalizadas estiverem valendo."

A carinha feliz pixelada de Zig-Zag deu lugar a uma de pura desconfiança. "Da última vez que você usou 'cartas personalizadas', você criou a carta 'Reverter o Big Bang' só pra não ter que comprar quatro. O universo demorou uma semana pra reaprender a se expandir."

"Foi uma jogada tática", retrucou Amélia, já puxando um baralho de UNO de uma gaveta que também guardava um buraco de minhoca domesticado e várias meias perdidas de outras realidades. As cartas brilhavam com uma energia instável. "E dessa vez, o pato vai descobrir por que me chamam de Senhorita Paradoxo."

O Limbo Café não era bem um lugar. Era mais um erro de cálculo no tecido do espaço-tempo. Ele existia meio que em todo lugar e lugar nenhum ao mesmo tempo. O cheiro era uma mistura de estrelas morrendo e leite meio passado.

No centro do café, numa mesa feita de tempo solidificado, Dr. Qwakthulhu esperava. O Arqui-Pato Metafísico, impecável num terno de tweed, embaralhava um baralho com uma precisão que dava medo.

Flutuando sobre a mesa, girando devagar, estava ONTH-7X, o Cubo Juiz. Cada uma de suas seis faces fluidas continha um olho que via o universo de um jeito diferente. Para esse jogo, três olhos estavam mais ativos: o da Ironia, que brilhava divertido; o do Caos, que se dilatava a cada carta; e o da Ordem, cujo olhar frio seria o mais perigoso de todos.

"As regras são simples, Senhorita Paradoxo", grasnou Qwakthulhu. "O último com a sanidade intacta, vence. Você começa."

Amélia abriu um sorriso que era puro caos. "Excelente."

Ela bateu a primeira carta na mesa. Não era uma carta de cor ou número. Era uma obra de arte, desenhada com caneta gel e malícia pura. O título: "Trocar de Realidade com o Vizinho da Frente".

O olho da Ironia do Cubo piscou. Válido. Por enquanto.

Na mesma hora, a realidade rasgou. Dr. Qwakthulhu virou o tapete felpudo debaixo da mesa, subitamente ciente de sua mortalidade têxtil. Zig-Zag foi parar num Cubo Mágico, sua consciência presa numa prisão de plástico. E Amélia... continuava sendo ela mesma, mas agora ostentando um bigode grosso e surpreendentemente bem-cuidado.

"Justo", disse ela, coçando o bigode. "Me dá um ar de autoridade."

Ainda processando sua nova vida de tapete, Qwakthulhu usou um de seus fios para jogar sua carta: um "+73". Só que ao lado do número, estava escrito: "e uma crise existencial por cada carta".

Amélia foi soterrada por cartas que sussurravam dúvidas em sua mente. Quem é você quando ninguém está olhando? Qual é o som de uma cor desbotando?

Foi quando o Cubo Juiz interveio. Seu olho da Causalidade se abriu, forçando uma memória em todos. Eles viram sua origem: o colapso de um universo onde uma civilização tentou se salvar transformando todas as leis da física em poesias haikai. Ele era o último poema. Um árbitro nascido da poesia e da aniquilação, feito para observar. E julgar.

Recuperando o controle, Amélia puxou uma carta proibida, que pulsava com uma anti-luz. "UNO Reverso x Buraco Negro".

Ao jogar, o próprio Limbo Café se engoliu. Silêncio total. E então, o universo se cuspiu de volta, mas... diferente. Agora faltavam duas luas em Marte e a Via Láctea tinha um leve sabor de chocolate amargo.

"Meh. Ficou melhor assim", disse Amélia.

O Cubo Juiz girou, seu olho da Ordem a encarando com uma intensidade que poderia talhar leite a anos-luz de distância. A paciência da relíquia estava acabando.

O jogo se estendeu por mais nove dimensões. No final, com a realidade se desfazendo, Amélia olhou para sua última carta. Qwakthulhu tinha virado um pato de pura luz e estava confuso sobre o conceito de "ganhar".

Era a chance dela.

Ela jogou a carta final. Não tinha nome, só o desenho dela mesma piscando. O título: "Carta: Reboot da Realidade + Fuga pela Quarta Parede".

Ela se virou, não para o pato ou para o cubo. Mas para o vácuo além de sua existência.

Ela olhou direto para você.

"Espero que você esteja prestando atenção", disse ela, com uma piscadela. "Porque da próxima vez... pode ser você a jogar."

O Cubo Juiz travou. Pela primeira vez em eras, suas seis faces mostravam a mesmíssima expressão: choque puro. Dr. Qwakthulhu, de volta ao normal, deixou suas cartas caírem. A ordem não foi derrotada pela força, mas pela quebra absoluta das regras do próprio jogo.