O Editor e o Retcon – Quando a Gramática Ataca

O silêncio depois da última jogada da Amélia era outra coisa.

Não era o silêncio furioso do Planeta Colesterol. Era um silêncio de erro de sistema. Tela azul. O Limbo Café, um lugar que vivia de desafiar a lógica, simplesmente parou. Congelou. O café de um cliente reptiliano ficou parado no ar, a meio caminho da boca. Tempo, gravidade e bom senso tinham tirado férias não remuneradas.

Dr. Qwakthulhu, o Arqui-Pato Metafísico, reapareceu da sua forma de luz. Só que, em vez da sua dignidade de sempre, ele voltou com a elegância de um pudim caindo da prateleira. Suas penas, amassadas. Seu terno de tweed, parecendo um pano de chão universal. E sua sobrancelha esquerda – aquela mesma que perdeu uma pena no seu primeiro jogo contra o Zig-Zag – estava tendo um tique nervoso.

Ele não foi só derrotado. Ele tinha virado uma nota de rodapé na própria história que tentou controlar.

Zig-Zag, por outro lado, estava tendo um surto de alegria digital. Seu corpinho de Tamagotchi vibrava tanto que quase saía do chão, com a tela piscando entre sua cara feliz e uma tela azul da morte.

"VITÓRIA! Baixei o conceito de 'ganhar' direto pra minha RAM! O gosto é... pixelado com um toque de arrogância! 10/10, recomendo!"

Mas Amélia nem ouviu. Ela estava encarando o Cubo Juiz.

ONTH-7X não girava mais. Estava parado, as seis faces olhando para ela ao mesmo tempo. A textura líquida tinha solidificado. Os glifos que dançavam estavam estáticos. Ela não só o surpreendeu; ela mostrou algo que ele, o observador de tudo, nunca tinha visto antes: a plateia.

Lentamente, o Cubo começou a vibrar. Não de raiva. Parecia... diversão. Uma onda de glitch ritmado saiu dele, e três haikais apareceram na mente de todo mundo, um de cada olho:

Do olho da Ironia:

A tola venceu,

Com trapaça tão bonita,

A lógica chora.

Do olho do Caos:

A parede quebrou,

O leitor agora te olha,

A tinta escorre.

E do olho da Ordem, o mais arrepiante:

Regra final foi,

Quebrada. Agora a história,

Vem te caçar.

"A tinta escorre? O que diabos isso quer dizer?", perguntou Amélia, sentindo o bigode tremer um pouco.

"Analisando dados poéticos...", disse Zig-Zag. "Chance de ser metáfora: 60%. Chance de ser um aviso literal sobre um vazamento de tinta cósmica que vai apagar a gente da existência: 40%. Minha sugestão? Não vamos ficar aqui pra descobrir."

Qwakthulhu, finalmente se recompondo, ajeitou a gravata. A voz dele era puro gelo. "Você não venceu, anomalia. Você trapaceou o próprio conceito de realidade. E a realidade... sempre cobra a dívida."

Com um grasnado que rasgou o espaço, ele sumiu, deixando pra trás só o cheiro de penas molhadas e orgulho ferido.

"Ok, essa é a nossa deixa", disse Amélia. Ela fechou os olhos, focando na sensação do seu apê salgado.

Mas algo deu errado.

O Salto não foi limpo. A realidade não dobrou. Ela rasgou, tipo papel molhado. A sensação não foi de teleporte, foi de ser arrastada por uma página mal impressa.

Eles não pousaram no apartamento dela.

O lugar era branco. Um branco ofuscante, infinito. Sem chão, sem teto. Apenas linhas pretas e finas flutuando no vazio, formando parágrafos e diálogos suspensos.

Eles estavam no espaço em branco entre os capítulos. Na margem da realidade.

"Zig-Zag, relatório", ordenou Amélia. A voz dela soava alta demais ali.

"Estou detectando... nada. E tudo. Cara... a gente tá no código-fonte. Na sala de edição. Ah, não. Não, não, não. O haikai era literal."

Foi quando eles o viram.

Uma figura caminhava sobre as linhas de texto com uma facilidade impossível. Terno preto impecável, gravata em espiral. O rosto era nítido, mas sem qualquer emoção. Na mão, ele não tinha uma arma. Tinha uma caneta-tinteiro elegante que parecia engolir a luz.

"Capitão Ponto Final", disse a figura. A voz dele soava como o virar de uma página. "Censor narrativo da realidade. E você, Senhorita Paradoxo, é uma anomalia editorial."

"Um o quê?"

"Você quebrou a quarta parede", continuou o Capitão, a calma dele mais assustadora que qualquer grito. "Isso causou um vazamento narrativo. Clichês de outros gêneros estão invadindo sua história. O ritmo foi pro espaço. Seu arco de personagem virou uma bagunça. Você é um erro de digitação na grande novela do cosmos."

Ele parou a poucos metros, se equilibrando numa frase suspensa. "Meu trabalho é editar os erros. Corrigir a pontuação. E, se precisar, apagar parágrafos inteiros."

Ele ergueu a caneta, e a ponta brilhou com uma escuridão definitiva. "Sua história ficou caótica demais. Precisa de um fim."

"Amélia...", sussurrou Zig-Zag, a voz digital cheia de um pânico que ela nunca tinha visto. "Ele não luta com física. Ele luta com regras de gramática. A gente não tem como ganhar!"

O Capitão Ponto Final sorriu. Um sorriso fino, cortante como o fim de uma frase.

"Seu capítulo termina aqui, Senhorita Paradoxo."

Antes que Amélia pudesse pensar numa resposta afiada, o Capitão moveu a caneta. Ele não a apontou. Ele simplesmente desenhou um ponto final no ar. O ponto flutuou, uma bolinha de escuridão pura, e disparou na direção dela.

Instintivamente, Amélia tentou pular, mas seu corpo não se mexeu. Congelada. O ponto final terminou a frase de "movimento" dela antes mesmo que ela pudesse começar.

"Viu?", disse o Capitão, se aproximando. "A pontuação é a lei. Mais forte que a gravidade." Ele gesticulou de novo, e um par de parênteses ( ) apareceu, cercando Zig-Zag.

"(Alerta! Fui contido dentro de uma ideia secundária! Um parêntese na realidade! Meu poder de processamento foi limitado a comentários irrelevantes!)", gritou a IA, a voz agora abafada.

Amélia forçou a mente. Se não podia se mover, talvez pudesse Saltar. Ela se concentrou, mas tudo o que encontrou foi... texto. A descrição da sua própria personagem flutuando na frente dela. Suas motivações, medos, tudo escrito em Times New Roman. O Capitão tinha transformado a essência dela em prosa, e é bem mais difícil dobrar a realidade quando você tem consciência de que é só uma personagem.

"Não pode lutar comigo com seus truques, anomalia", disse o Capitão, parado na sua frente. "Eu sou a estrutura. Eu sou as regras." Ele levantou a caneta até o rosto dela. "Hora de editar você."

Foi aí que uma ideia, não uma ideia de física quântica, mas de leitora voraz, brilhou na mente de Amélia. Se ela era uma história, ela tinha acesso a todos os clichês. Ela não podia quebrar as regras da gramática... mas talvez pudesse adicionar uma nova.

Com um esforço mental gigantesco, ela não tentou lutar. Ela tentou se lembrar. Forçou uma memória que não era sua, um evento que nunca aconteceu, mas que, narrativamente, fazia todo o sentido.

O espaço branco tremeu. O Capitão parou, confuso. Uma nova linha de texto começou a se escrever no ar, numa fonte diferente, toda enfeitada.

FLASHBACK:

Uma jovem Amélia aparecia, não num laboratório, mas numa biblioteca antiga, sendo treinada por um monge cego na arte de "ler nas entrelinhas".

O Capitão recuou, em choque. "Um flashback? Isso não está no seu arquivo! É um retcon! Isso é trapaça!"

"Eu aprendi com o melhor", disse Amélia, sentindo o controle do corpo voltar enquanto a nova narrativa brigava com a antiga. O sorriso dela voltou, mais perigoso do que nunca. "E a primeira coisa que meu mestre inexistente me ensinou foi: se não dá pra ganhar do editor, você muda o gênero da história."

O branco começou a se encher de cores. O som de uma trilha sonora de filme de ação dos anos 80 ecoou do nada.

E o bigode da Amélia se transformou numa bandana.

A luta não tinha acabado. Mas as regras do jogo tinham acabado de ser completamente reescritas.