Clichê é Matar ou Morrer

O branco infinito da realidade não ficou colorido. Ele simplesmente explodiu em cor.

POW!

Uma guitarra distorcida rasgou o silêncio. O chão, antes limpinho, virou um asfalto encharcado, com poças d'água refletindo luzes de neon que nem existiam ali. Paredes de tijolo, grafitadas com equações quânticas, brotaram do nada. E pra fechar o pacote, começou a cair aquela chuvinha dramática, mesmo sem céu nenhum pra chover.

A parada mudou de gênero. A ficção científica cabeça foi totalmente sequestrada por um filme de ação dos anos 80.

A bandana da Amélia, que tinha surgido no lugar do bigode, balançava no ar, super-heroica, numa brisa que não fazia o menor sentido. Os olhos dela, que antes estavam confusos, agora travavam num foco absurdo, tipo mira a laser.

"Beleza", chiou a voz do Zig-Zag, agora saindo de um fone de ouvido que simplesmente apareceu na orelha da Amélia. O walkie-talkie tosco em que ele estava preso evoluiu pra um comunicador profissa. "Tô pegando um pico de 300% de testosterona na narrativa. A chance de rolar uma montagem de treino tá perigosamente alta. Curti demais!"

O Capitão Ponto Final olhou pro seu terno impecável, agora todo salpicado pela chuva fake, com uma cara de nojo que dava pra sentir de longe. Sua caneta-tinteiro ainda brilhava, mas parecia totalmente fora de contexto, tipo levar um garfo pra uma guerra de colher.

"Que palhaçada", disse ele, tentando manter a pose por cima da trilha sonora de rock sintetizado. "Uma piada! Um amontoado de clichês batidos e diálogo que a gente já sabe o final! Você acha que pode me vencer com... isso?"

"Achar?", respondeu Amélia, estalando os nós dos dedos num som que ecoou como um trovão. "Eu não acho. Tenho certeza. Porque nesse tipo de história, o herói sempre zera o game no final."

"Veremos", retrucou o Capitão. "Clichês também são regras, sua anomalia. E eu sou o mestre de todas."

Ele não desenhou um ponto final com a caneta. Em vez disso, escreveu uma palavra no ar: "CAPANGAS".

Das sombras dos becos recém-criados, surgiram uns caras. Eram todos clones: bombados, carecas, de colete de couro e peitoral brilhando de óleo. Não eram gente de verdade, saca? Eram a própria definição de "inimigo genérico" de videogame. Praticamente NPCs. E eles vieram pra cima da Amélia com uma falta de criatividade que dava até dó.

"Inimigos na área, chefe!", berrou Zig-Zag no fone. "A única fraqueza deles parece ser um papo cabeça bem desenvolvido, mas duvido que a gente tenha tempo pra isso! Minha sugestão? Porrada!"

Amélia sorriu. Ela nem precisava mais saltar entre realidades. Nesse novo cenário, suas pernas se moviam com uma velocidade e força que quebravam qualquer lei da física. Cada soco e chute que ela dava vinha com um efeito sonoro super exagerado. Os capangas voavam contra paredes que explodiam em isopor, ou caíam em câmera lenta nas poças d'água. Era uma dança de violência coreografada, sem pé nem cabeça.

O Capitão Ponto Final só olhava, cada vez mais frustrado. Ele tentou editar a cena. Escreveu "A HEROÍNA TROPEÇA" no ar, mas Amélia só transformou o tropeço numa pirueta estilosa que derrubou mais três caras. Ele escreveu "A ARMA ENGASGA", mas a Amélia nem tava usando arma.

"Tá vendo?", gritou ela, mais alto que a música. "Sua lógica não funciona aqui! O que manda agora é o espetáculo!"

Desesperado, o Capitão jogou sua última carta. Ele sabia que não podia vencer a lógica de um filme de ação com as regras dele. Então, decidiu apelar pro clichê mais poderoso e roubado de todos.

Ele ergueu a caneta e escreveu no ar, com letras douradas gigantes que ofuscaram os neons: "DEUS EX MACHINA".

Amélia parou. A música parou. Até a chuva congelou no ar.

"Ih, deu ruim", sussurrou Zig-Zag. "Isso aí é o equivalente a usar um código de trapaça pra zerar a fase. Pode ser literalmente qualquer coisa!"

O asfalto tremeu. Uma fenda se abriu, não com fogo, mas com uma luz suave, até que meio aconchegante. E de lá, uma figura emergiu devagar. Não era um monstro, nem um anjo.

Era uma avó.

Uma senhora de cabelos brancos que flutuavam como galáxias, usando um avental com runas e segurando uma travessa de biscoitos que cheiravam a saudade e verdades universais. Era a Abuela Vortex, a guardiã das Receitas Sagradas do Espaço-Tempo.

Ela olhou pra cena de destruição, pros capangas desmaiados, pra chuva parada no tempo. Aí, olhou pra Amélia com um olhar que continha a sabedoria de todas as timelines possíveis.

"Minha netinha", disse a Abuela Vortex, com a voz mais calma e carinhosa do mundo. "Você não precisa lutar. O que você precisa é de um bom biscoito e de uma conversa sobre os seus sentimentos."

Amélia encarou a avó cósmica e, pela primeira vez, sua marra de heroína de ação vacilou. A trilha sonora na cabeça dela foi trocada por um pianinho melancólico. Sua bandana, de repente, pareceu ridícula. O Capitão Ponto Final sorria. Ele não invocou um inimigo pra destruir Amélia. Ele invocou algo muito mais poderoso: a lógica de um gênero completamente diferente. Um drama de família. E contra o poder de uma avó decepcionada com as suas escolhas de vida, não existe soco ou chute que vença.

"Sentimentos?", repetiu Amélia, a palavra soando estranha na boca dela. Seus punhos, antes prontos pra briga, relaxaram. A adrenalina da narrativa tava sendo drenada e trocada por uma sensação esquisita, muito parecida com culpa.

"Alerta! Arma psicológica nível hard detectada!", guinchou Zig-Zag no ouvido dela. "Os biscoitos tão emitindo uma frequência de 'por que você não me liga mais?'. É uma cilada, Amélia! Não olha diretamente pra decepção nos olhos dela!"

Mas já era tarde. A Abuela Vortex deu um passo à frente, seus chinelos teleportadores sem fazer barulho no asfalto molhado. "Claro, querida. Toda essa correria pelo multiverso... você tá fugindo de alguma coisa, não tá? Do acidente? Dos seus pais?"

Cada palavra era um golpe mais forte que qualquer soco dos capangas. O Capitão Ponto Final assistia de longe, se deliciando. Ele não podia apagar Amélia na marra, mas podia encurralá-la num gênero onde a força dela — o caos — era inútil. Num drama familiar, as regras são claras: rola diálogo expositivo, treta emocional e, no final, a personagem tem uma epifania que resolve tudo. Forçando Amélia a passar por isso, ele poderia "consertá-la", torná-la estável, previsível e, finalmente, editável.

A Abuela Vortex estendeu a travessa. "Pega um biscoito. Esse aqui revela por que você ainda não é feliz."

Amélia olhou pro biscoito. Parecia delicioso. E perigoso. Comer aquilo seria aceitar as regras do jogo, se render à terapia forçada. Sua mente de heroína de ação gritava pra ela chutar a bandeja e fazer uma piadinha. Mas a música de piano na sua cabeça dizia pra ela chorar um pouco.

Então, ela fez a única coisa que uma anomalia faria quando só te dão duas opções: ela criou a terceira.

Ela pegou um biscoito. O Capitão sorriu. A vitória estava perto.

Mas em vez de comer, Amélia se virou, caminhou até o capanga genérico mais próximo, que tava apagado no chão, e se ajoelhou. Com um cuidado que ninguém esperava, ela partiu um pedacinho do biscoito e colocou nos lábios do homem inconsciente.

"Acho que ele tá precisando mais do que eu", disse Amélia, com a voz suave, mas com um brilho desafiador no olhar. "A vida dele é tão vazia. Ele aparece, apanha e some. Ninguém nunca pergunta como ele se sente."

A realidade inteira bugou.

O capanga, cujo único propósito na história era ser derrotado, abriu os olhos. Mas não eram olhos vazios. Estavam cheios de lágrimas. "Eu... eu só queria ser bailarino", ele soluçou.

A Abuela Vortex piscou, confusa. A travessa de biscoitos tremeu na mão dela. O sorriso do Capitão Ponto Final sumiu. O Deus Ex Machina dele tinha sido hackeado. Amélia não rejeitou o drama, ela o redirecionou. Ela quebrou a cena ao dar profundidade pra um personagem que não deveria ter nenhuma.

A melodia de piano parou com um arranhão de agulha no vinil. O gênero tava dando pau de novo. E no meio daquele caos narrativo, Amélia se levantou, com o resto do biscoito na mão.

"Vamos conversar sobre sentimentos, vovó", disse ela, com um sorriso que era 100% dela. "Mas vamos começar pelos seus."