Escuro.
Quente.
Úmido.
Essas foram as primeiras sensações.
Nenhuma luz. Nenhum som claro. Apenas um cheiro que se impunha: carne apodrecida, sangue coagulado, gás necrosado. Um cheiro tão denso que parecia grudar na alma — se eu ainda tivesse uma.
Tentei abrir os olhos. Não havia olhos. Só sensação, paladar e tato — tudo amplificado até o insuportável. Meu corpo era um tubo macio, anelado, molhado. Cada parte se movia em ondulações involuntárias.
Respirar? Não. Eu... absorvia. Pelo corpo.
Falar? Não havia boca. Só uma abertura sensível que se contraía como um funil de músculos. Cada estímulo, cada toque na carne ao redor, mandava impulsos elétricos na minha mente.
E então me lembrei.
Eu morri.
E ele — o Deus da Morte — me mandou de volta.
Não como um guerreiro. Não como um espírito. Mas como...
[Forma atual: Minhoca Fúnebre – Estágio 1][Regeneração absoluta: ativa]Enquanto um fragmento permanecer, você continuará a existir.
[⚠️ Condição de sobrevivência: consumir biomassa]
[⚠️ Aviso: suicídio agravará seu carma. Reencarnações piores virão.]
[⚖️ Dica do Sistema: boas ações reduzem carma negativo e aumentam a chance de evolução estável.]
A raiva me bateu primeiro. Logo depois, o nojo.
Por que manter minha mente intacta? Por que permitir que eu lembrasse de tudo?
Se tivesse nascido sem memória, talvez encarasse esse mundo como um animal. Aceitaria a fome, o cheiro, o ciclo. Mas não. Eu sabia o que era um corpo humano. Sabia o que era a morte. Sabia o que era carne viva — e mais ainda o que era carne podre.
E era exatamente onde eu estava agora. Enterrado entre as entranhas de um morto.
Meu primeiro movimento consciente foi uma contração involuntária — uma tentativa de sair daquele lugar.
A carne ao meu redor cedeu um pouco, macia como lama de sangue. Cada deslizamento provocava um arrepio mental. Sentia pelos por dentro, restos de ossos triturados, pus seco. E então, ao avançar entre as camadas de órgãos apodrecidos, algo me empurrou com força.
CRACK!
Uma dor aguda rasgou meu lado esquerdo. Um pedaço de mim se rompeu — arrancado.
Eu me contorci, tentando escapar. Vi — ou senti — a presença dele: um besouro comum, mas com patas serrilhadas e olhos sem alma. Ele me atacava, não para me comer, mas para me tirar da carniça que agora ele julgava sua.
Instinto. Território. Nada pessoal.
Mas eu sangrava.
[🩸 Parte do corpo danificada. Regeneração parcial iniciada.][💢 Dor registrada: +1][🔻 Sangramento: estabilizado]
Me enrosquei, forçando meus anéis musculares a se contraírem, escorregando entre as tripas moles até me esconder debaixo de um lóbulo hepático rasgado. O besouro avançou, tentou alcançar minha carne exposta com suas mandíbulas, mas a fenda orgânica era apertada demais.
Ele rosnou — ou o equivalente disso — e se afastou, arrastando-se para outro canto do abdômen putrefato, farejando novas rotas.
Eu quase morri. Por um besouro.
Eu era o fundo da cadeia alimentar.
[📌 Recomendação de sobrevivência: consumir tecido muscular – 40g][💬 Nota do sistema: "A carne está pútrida, mas funcional."]
Eu congelei. A notificação do sistema não doeu — mas o que ela dizia, sim.
Comer.Comer carne humana.Podre.
Fiquei imóvel, espremido entre tecidos encharcados de sangue e gordura dissolvida, enquanto minha mente colapsava em espirais. Uma parte gritava que isso era irracional, outro fragmento ria com escárnio. Mas o centro... o centro de mim ainda era eu.
Você já roubou de cadáveres, lembra?Você os saqueava como se fossem baús. E agora… agora você é o verme que devora o que sobrou deles.
Tentei pensar em outra coisa. Em não estar ali. Mas cada contração do meu corpo fazia a carne morta se mover, pulsar como se vivesse. Umidade me cobria. Fétida. Ácida. Quente.
Só morde e acaba logo com isso, cochichou a parte fria da minha mente.
Mas eu não queria. Não queria.
"O maldito Deus da Morte podia ao menos ter tirado minha consciência."
Se eu não soubesse o que era carne apodrecida, talvez achasse isso tudo natural. Talvez fosse até animador. Mas não. Eu sabia exatamente o que estava comendo. O que rastejava em mim. O que estava me alimentando.
Eu tremia.
E mesmo assim… avancei.
Não por fome. Mas por medo. Medo de morrer de novo. Medo do que viria depois.
Medo do que seria ainda pior que isso.
E mordi.
A carne se rompeu. Um líquido grosso se espalhou. E eu engoli. Contra toda a lógica. Contra toda a repulsa. Contra minha própria vontade.
[✔️ Biomassa absorvida: 40g][💢 Dor: +1 | 🧠 Nojo Mental: Ativo][🛑 Instabilidade emocional: contida]
Eu não chorei. Minhocas não choram.
Mas algo dentro de mim se partiu.
E outra parte — menor, mais silenciosa — se fortaleceu.