O silêncio dentro do cadáver era espesso.
Não que houvesse som lá fora — mas o que me envolvia era mais profundo: um abafamento absoluto, como se eu estivesse mergulhado em um útero apodrecido. O calor subia das entranhas lentamente, e o tecido se agarrava a mim como um casulo úmido.
A biomassa se acomodava.Mas ela não estava passiva.
Havia algo diferente na carne daquele guerreiro. Não era só nutrição. Era carga. Instinto.E agora... isso estava me invadindo.
Eu tremi.
Sem aviso, meus músculos se contraíram — mas não em fuga, não em reflexo. Era um movimento diferente: coordenado, firme, com um impulso que não era meu. Algo em mim se ergueu. Como se... lembrasse de perfurar.
Por um instante, meu corpo serpenteou em linha reta com precisão absurda, como uma lança sendo arremessada por uma vontade esquecida. Atravessou tecido mole, e parou só quando colidiu contra uma costela quebrada. Estanquei, confuso.
O que foi isso?
[⚠️ Alerta: Reação muscular espontânea detectada.][🧬 Origem provável: Reflexo motor residual (Biomassa – Guerreiro Humano)][📌 Status: Controle parcial assumido]
O Codex respondeu antes mesmo que eu pensasse.
Memórias do corpo que comi ainda estavam ativas. Não como pensamentos — mas como restos de comando, impulsos armazenados nas fibras musculares. Fragmentos de alguém que lutou até o fim... e agora lutava através de mim.
Eu não sabia se isso era poder… ou possessão.
Tentei recuar. Meu corpo respondeu, mas com atraso, como se disputasse o controle em silêncio.Quando me contorci de novo, minha pele estalou — não de dor, mas de pressão. As membranas que me envolviam estavam começando a endurecer, mesmo que levemente.
[📈 Estabilização Neural: 82%][💢 Dor Crônica: mantida em nível 2][⚙️ Sintomas de Pré-Mutação detectados][💡 Sugestão: Aumentar absorção de biomassa — 150g restantes]
Continuei cavando.
Era um movimento mecânico agora, como mastigar desespero. Me arrastei entre músculos enegrecidos, devorando pedaço por pedaço. E cada mordida trazia uma sensação nova: não só o sabor, mas a textura emocional. Eu sentia ecos. Um gosto de fúria. De disciplina. De honra enterrada.
A carne daquele homem estava cheia de propósito.E eu estava me enchendo disso.
[✔️ Biomassa absorvida: +50g][📊 Total acumulado: 150g / 250g][🧠 Nojo Mental: Suprimido — adaptação em curso]
Engoli mais um nódulo de tecido — parte de um antebraço firme e enrijecido — e algo vibrou dentro de mim.
Não era dor. Era... foco.
Por um momento, vi uma imagem. Rápida. Quase ilusória.
Pernas firmes, pés plantados no solo, braços alongados. Uma lança girando entre os dedos. Três golpes em linha reta, certeiros, como o compasso de um ritual. O som seco da ponta atravessando carne.
E então sumiu.
Como se eu tivesse sonhado com algo que nunca vivi.Como se, por um instante, eu tivesse sido... ele.
Não. Não pode ser.
Minha mente ainda era minha.Ainda.
[⚠️ Aviso: Ressonância instável entre identidade original e carga de memória muscular. Estabilização recomendada antes da mutação.]
O Codex me avisava, mas era como se risse por dentro. Como se me dissesse:"Você quer se alimentar? Vai carregar o que devora."
As paredes de carne rangiam ao meu redor. O corpo do guerreiro começava a colapsar, e com ele, minha câmara de gestação. Era isso o que aquele cadáver tinha se tornado — um útero invertido, me parindo com sangue e pedaços de outra vida.
E lá fora… eu sentia movimento.
Um farfalhar abafado. Garras.Algo escavava o mesmo cadáver. De fora para dentro.
Mas eu não me mexi.
Não ainda.
A vibração na carne me avisava que o tempo estava acabando. Mas a vibração dentro de mim... dizia que algo estava nascendo. Algo antigo. Algo meu — e não meu.
Mais 100g.
Era só isso.
E então, a dor recomeçaria.
Só que dessa vez, ela viria de dentro.
E quando acontecesse…que os vermes me perdoem.