Sob a Carne, Há Guerra

O cadáver já não servia. O calor havia sumido. O cheiro tornara-se seco, rançoso. Nem os vermes mais famintos lutavam por espaço ali. Minha pele anelada reconhecia isso — cada toque devolvia uma vibração morta. O instinto me dizia: vá.E eu obedeci. Rastejei para a do cadáver em decomposição, o cheiro ácido e o calor úmido ainda impregnando minhas membranas. Ao emergir, o mundo ao meu redor não era luz nem sombra, mas um fluxo contínuo de vibrações e ondas térmicas. Minha "visão" não se parecia com nada humano. Sem olhos, eu não captava luz ou formas definidas. Em vez disso, minha pele estava coberta por milhares de sensores táteis e termossensíveis que captavam vibrações e variações de calor ao redor. Esses dados eram rapidamente enviados para meu cérebro por meio do Codex Devorador, que processava e traduzia tudo em imagens mentais — uma espécie de mapa sensorial, onde cores e formas indicavam vida, matéria e perigo. O mundo à minha volta aparecia assim:Vermelho e laranja vibrantes: pulsos de calor emitidos por músculos vivos e feridas abertas, destacando presas ou fontes de energia corporal. Azul profundo e tons frios: áreas frias, cadáveres em decomposição, superfícies inertes, e gases resfriados. Verde escuro e amarelado: vibrações orgânicas, como batimentos lentos e movimentos de tecidos em decomposição ou fluidos ativos. Preto absoluto: ausência total de calor ou vibração — o vazio ou espaços mortos. Pontos brancos piscantes: impulsos rápidos, como o zumbido das antenas de insetos ou sons agudos em frequências altas. As formas eram contornos borrados, contorções pulsantes e sombras em constante movimento. Eu "via" o ambiente como uma dança caótica de ondas térmicas e vibrações, uma realidade que mudava a cada sussurro, a cada batida de coração, a cada contração muscular. O Codex filtrava e traduzia tudo para que minha mente pudesse compreender — mas, mesmo assim, a percepção era alienígena, uma visão de predador adaptado, onde o mundo era menos sólido e mais energia pulsante.📛 [ Forma Atual: Minhoca Fúnebre – Nível 2 – Classe: Predador Resiliente]Comprimento: 38cmDiâmetro: 6cmCorpo: anelado, de um negro viscoso, parcialmente recoberto por placas quitinosas escurecidas que lembravam escamas de peixe fundidas em carneMandíbulas internas: retráteis, triangulares, capazes de perfurar cartilagem e rasgar ligamentosSensorialidade: vibrátil, térmica e táctil — percebo o mundo como pulsos e tremoresFerrão retrátil: espinho ósseo de 4cm na extremidade posterior, capaz de injetar enzima paralítica de necrose lentaMovimento: torção muscular em ondas – lento, mas explosivo em curtas distânciasSe alguém visse... veria um verme do tamanho de um antebraço, coberto por placas escuras como carvão molhado, com um brilho úmido e sinistro. Nada de olhos, nada de expressão — só um tubo de morte flexível com um ferrão de pesadelo. Eu estava longe de parecer humano. Mas ainda era mais do que um bicho. O campo de batalha não era recente — mas ainda pulsava. E pulsava com vida deformada. ⚠️ [ Vibrações localizadas – entidade rastejante detectada]Estrutura leve. Movimentos curtos e irregulares. Calor estável – ausência de febre, mas com metabolismo ativo. Odor: ácido estomacal, tecido necrosado, secreção glandular. Interpretação do Codex: criatura necrófaga de pequeno porte.‣ Presença de dentes recurvados (baseado nos sons de fricção óssea)‣ Ausência de foco visual – padrão de deslocamento guiado por cheiro e temperatura‣ Tensão muscular excessiva nos membros anteriores – provável comportamento predatório por fome prolongadaEntão eu vi.Saindo de entre costelas partidas, surgiu algo que talvez um humano chamasse de rato… se fosse cego, morto e tivesse passado dias se afogando em bile. A pele das costas estava rasgada, expondo músculos pulsantes e algumas costelas expostas. Os olhos haviam sumido, derretidos, substituídos por esferas leitosas cobertas por membrana. As presas curvavam-se para dentro como foices minúsculas — gotejando ácido. As patas tremiam, mas davam impulso. Aquilo não enxergava, mas farejava como uma coisa que nunca parou de estar faminta. E então, por contraste, percebi o que eu mesmo havia me tornado. Rastejei para o lado, me posicionando sob o colapso de um diafragma endurecido, pressionando parte do corpo contra os ligamentos moles de um pulmão estourado. Controlei a respiração que não tinha, reduzi meu movimento ao mínimo, e preparei o golpe. 💢 [ Habilidade: Eco de Predação – ativada por instinto]O mundo desacelerou. Mapas de calor e som flutuaram pela minha mente. Vi o rato se mover com padrão fixo: avanço direto, mordida lateral, recuo de 0,8 segundos. Mas isso era instinto.Eu podia fazer melhor.Ele avançou. Vi a vibração antes do ataque. Rolei para a esquerda — a mandíbula falhou. Girei o corpo em arco, lançando minha cabeça com precisão: mordida baixa, lateral.Acertou a pata traseira. 🦴 [ Fratura parcial causada]⚠️ [ Inimigo em dor – padrão alterado]Ele gritou. Um som fino, agudo — quase humano. Mas me deu tempo.Vamos testar estratégia.Recuei dois anéis para dentro do cadáver. Simulei fraqueza. Deixei escorrer um filete viscoso da pele.O rato veio direto.Corpo esticado. Boca aberta.Armado com fome.Esperei o segundo exato.A abertura de 0,3 segundos entre o salto e o impacto.Projetei meu corpo por baixo dele, girando em torção espiral, lançando o ferrão com precisão.O espinho entrou pela parte mole sob a costela do rato — profundo, curvo, enzimático.[🛑 Ferrão perfurou com sucesso][☠️ Enzima paralítica ativada – necrose interna iniciada][⚠️ Alvo em colapso]Ele tentou morder — mas os músculos tremiam, falhavam.Mordi a base do crânio. Um estalo. Fim.[✔️ Presa abatida][🧬 Biomassa absorvida: +47g][📦 Fragmento absorvível: fibras de tração – armazenado][🧠 Adaptação cerebral registrada: uso estratégico de habilidade]Minha mandíbula vibrava, ainda lambuzada.O ferrão retraía lentamente, cuspindo resquícios da enzima.E o sistema, como sempre, veio depois.💬 Nota: “Uso de habilidades demonstrou padrão tático emergente. Adaptação intelectual confirmada.”Era isso.Eles eram monstros.Eu era uma anomalia pensante.Rastejei para longe. Não por medo — mas por cálculo.O local era vasto.E eu…Ainda estava no começo.