Ascensão Silenciosa

O fedor ainda estava ali.

Pesado. Entranhado nos ossos do mundo. Cada molécula do ar saturada pela podridão antiga dos que foram esquecidos. Mas, agora, não me incomodava mais. Meus pulmões — se ainda podiam ser chamados assim — haviam se adaptado. Filtravam. Classificavam. Interpretavam.

Cada partícula trazia informação.

Cada corrente de ar era um sussurro.

Me movi.

Lentamente.

Minhas novas pernas — oito, articuladas, finas como lâminas, cobertas por uma carapaça escura que reluzia em tons arroxeados sob o brilho difuso da bile que escorria dos corpos — fincaram-se com precisão nas bordas da vala.

Nenhum ruído.

Os fios sob mim vibraram em silêncio.

O mundo não me viu subir.

O céu acima era cinzento, encoberto por um manto opaco de nuvens doentias. A superfície ao redor da vala era um campo abandonado, marcado por trincheiras rasgadas e restos de ossos negros. Nenhum canto de pássaro. Nenhum farfalhar de folhas. Apenas o silêncio pesado de uma terra amaldiçoada pelo tempo.

Um campo de batalha antigo.

Onde a morte não apenas venceu — reinou.

Mas agora, eu era a exceção.

A lembrança da dor ainda arranhava as bordas da minha mente — a gravação da classe, os gritos da alma, a essência sendo costurada em mim como vermes espirituais.

Mas tudo isso agora era parte de mim.

Minha mente era clara. Focada. Cada pensamento surgia como um fio esticado entre duas decisões — e eu caminhava sobre ele com precisão absoluta.

Paciência.

Frieza.

Cálculo.

Essas eram minhas novas virtudes.

📜 Estado do Portador — Após a Gravação da Classe

🩸 Biomassa: 0g / 1000g

🕷️ Forma Física: Aranha Reclusa Profunda

🕸️ Classe: Tecelão Sombrio

📈 Nível de Mutação: 2 (Recém-mutado)

⚙️ Habilidades passivas ativadas:

• Vibropercepção refinada — detecção por ondas e contato em até 40m subterrâneo

• Teia de confusão — filamentos que liberam toxinas alucinógenas ao contato

• Sentidos táticos — leitura de correntes de ar, vibração e movimentação territorial

🔻 Estado emocional: Estável | Dominância instintiva: 22%

⛓️ Fragmento de Alma Residual: Silente

A superfície era aberta, mas eu não precisava correr. Não mais.

Agora, eu caçava diferente.

Desci com cuidado por entre os escombros das ruínas ao redor da vala. Uma muralha quebrada marcava o limite entre o campo de batalha e uma antiga estrada de pedra, engolida por raízes e musgo. Rachaduras nela mostravam marcas de garras antigas. E manchas secas — mais escuras do que sangue comum — cobriam partes dos escombros.

Sinais de vida.

Ou de algo que vive da morte.

Vibrações mínimas no solo chamaram minha atenção.

Aproximavam-se devagar.

Três pontos de contato. Padrão errático. Um passo arrastado, um salto, depois pausa longa.

Ferido. Solitário. Respirando.

E, mais importante — vivo.

Me escondi sob um pilar partido, tecendo rapidamente uma teia fina, invisível, entre duas pedras. Meus apêndices sabiam o que fazer — não por instinto, mas por memória incorporada. A precisão não era orgânica. Era tática.

Preparei o campo.

E esperei.

Um som gorgolejante surgiu atrás dos arbustos. Algo surgia do mato ralo e úmido.

Não era grande — talvez pouco maior que um homem — mas sua pele era cinzenta, ressecada como couro podre, com a musculatura exposta em alguns pontos, revelando veios escuros e pulsantes. Ossos irrompiam pela carne como espinhos naturais. Pedaços da mandíbula pendiam frouxos, e o peito arfava de maneira irregular. Os olhos, completamente opacos, pareciam mergulhados em catarata e fúria.

Um carniçal de Nível 1 — semelhante a um zumbi, mas mais adaptado e violento. Diferente dos mortos-vivos lentos das histórias humanas, essas criaturas se moviam com impulsos caóticos e famintos. Cadáveres animados por uma fome ancestral, guiados por instintos viscerais. Suas unhas, afiadas como garras de osso, serviam para rasgar carne com facilidade. Exalavam um odor agridoce de carne recém-consumida misturada à ferrugem.

Fresco.

Ele havia se alimentado recentemente. Carne nova.

Um segundo depois, pisou no fio.

E o mundo virou armadilha.

Minha seda se contraiu com precisão mortal, prendendo as pernas do carniçal e derrubando-o de lado com um estalo seco. Antes que ele emitisse qualquer ruído, eu já estava sobre ele — presas enterrando-se entre as vértebras, injetando toxinas que fariam até um predador cegar de agonia.

O corpo tremeu. Reagiu.

Depois... colapsou.

Silêncio.

Respirei — por hábito, não por necessidade.

Mais biomassa. Mais informação. Mais um passo na espiral da evolução.

Apesar do tamanho, o carniçal rendia pouco: apenas 67g de biomassa. Seu corpo, embora volumoso, era composto majoritariamente de tecidos mortos e reciclados. A energia vital era mínima, concentrada apenas nos músculos mais recentes e no núcleo animador que o mantinha ativo. Um predador eficiente, mas biologicamente ineficiente.

Fiquei imóvel por um instante.

Observando.

Porque agora, a guerra era outra.

E eu era o fio invisível que tece o fim.

📜 Atualização do Codex Devorador

Biomassa adquirida: 67g

📊 Total acumulado: 67g / 1000g

🕸️ Armadilha experimental: Sucesso

🧠 Adaptação tática: Iniciada