Cap 5

s Correntes da Memória

O fogo do Templo das Cinzas ainda ardia quando Kaela e Riven se afastaram da pira. O vento carregava fagulhas em espirais douradas, como se a própria Chama estivesse viva, inquieta, desejando mais do que simplesmente arder. Kaela caminhava como quem havia sido rasgada ao meio, o corpo aqui, mas a alma arrastada para o eco da visão que presenciara.

Lyra estava viva.

Ela a vira com os próprios olhos, presa em um lugar de ferro, um cárcere forjado com runas. A dor era tamanha que nem a certeza da verdade conseguia aquecer seu coração.

— Precisamos encontrá-la — ela disse, por fim, rompendo o silêncio.

Riven, que observava a linha do horizonte, assentiu.

— O que você viu era real. O templo mostrou o que está oculto... e o que ainda pode ser salvo.

Kaela se virou para ele, os olhos em brasa.

— Onde ela está?

Riven hesitou.

— Não tenho certeza. Mas conheço alguém que pode saber. Alguém que serviu a Varun antes de desertar. Um nome perigoso: Thalir, o Senhor do Véu.

Kaela franziu o cenho.

— Achei que ele estivesse morto.

— Muitos acreditam nisso. É assim que ele sobrevive.

A viagem até os limites da Planície Esquecida levou dois dias. Montaram cavalos roubados de uma estalagem suspeita e seguiram por trilhas esquecidas, evitando aldeias, caçadores e as sentinelas da Rainha. O nome de Kaela estava marcado como traidora. Havia cartazes em cidades distantes, promessas de recompensas para quem trouxesse sua cabeça e o fragmento da Chama.

Durante as noites, Kaela revivia a visão de Lyra: os olhos aterrorizados, as mãos marcadas por runas. Queria crer que ainda havia tempo. Queria crer que sua irmã não a odiava por tudo o que fizera como Capitã da Guarda.

No terceiro dia, chegaram a um bosque seco, onde as árvores pareciam gritar em silêncio. Riven desmontou primeiro e guiou Kaela até uma formação rochosa.

— Está aqui, por trás da cascata morta.

A queda d’água não era mais do que um fio, mas ainda escondia uma caverna escura. Entraram em silêncio, os olhos se ajustando à penumbra. Dentro, tochas apagadas e símbolos riscados em sangue velho nas paredes.

No centro, um homem esperava.

Thalir.

Tinha o rosto coberto por uma máscara de ferro negro, e os braços tatuados com espirais em movimento, como se as marcas estivessem vivas. Sua voz era rouca, mas clara:

— A chama envia seus ecos... e hoje, ela me traz dois fantasmas.

Kaela sacou a espada.

— Onde está Lyra Viren?

Thalir não se moveu.

— O que me dará em troca da memória que carrego?

Kaela deu um passo à frente, mas Riven a segurou.

— Ele não responde à força. Mas à troca.

Kaela respirou fundo, então retirou o medalhão de Lyra de seu pescoço.

— Diga o que sabe. E é seu.

Thalir aproximou-se, com os pés descalços, como um espectro. Pegou o medalhão com cuidado e encostou-o na testa.

— A irmã da Capitã foi levada para o Ninho das Correntes. Uma prisão oculta nas profundezas da Torre de Drenor. Lá, Varun testa suas magias mais impuras. Aprisiona mentes, molda vontades. Lyra resistiu. Por isso ainda vive.

Kaela engoliu em seco.

— Como entramos?

Thalir sorriu. Foi um sorriso amargo.

— Ninguém entra. Ninguém sai. A não ser... que tenham a Marca de Celenya.

Kaela e Riven se entreolharam.

— A rainha, então — ele murmurou. — Precisamos de algo que ela tocou. Algo que contenha a marca de seu sangue.

— Ou precisamos dela — Kaela completou, a voz grave. — Precisamos da própria rainha.

Saíram da caverna com o peso de uma escolha impossível. Raptar a rainha era suicídio. Mas não havia outro caminho. A Torre de Drenor era impenetrável. A menos que carregassem a assinatura da linhagem real.

Na encosta do bosque, pararam para acampar. A noite caía como um manto de carvão sobre eles.

Kaela sentou-se com os olhos perdidos no fogo.

— Eu a perdi uma vez... não vou perder de novo.

Riven estendeu a mão, tocando a dela.

— Então lutaremos juntos. Até o fim.

Ela o olhou.

— E se o fim for nossa morte?

— Então morreremos queimando. Não em silêncio.

Naquela noite, os dois se deitaram lado a lado. Não havia promessas. Não havia palavras doces. Apenas o calor dos corpos e a certeza de que, no dia seguinte, o plano para invadir o coração do reino precisaria começar.

E queimar tudo o que um dia juraram proteger.