Mais alguns dias se passaram após aquela fagulha de retorno. Aos poucos, comecei a interagir mais com Lyara. Ainda que nossas conversas fossem curtas e espaçadas, a presença dela, que antes parecia distante, agora era algo que eu conseguia encarar — mesmo que com dificuldades. Ela sempre se mostrava paciente, cuidadosa, mas havia uma tensão constante em seu olhar, como se temesse que qualquer palavra pudesse me despedaçar.
Quando nosso estoque de lenha chegou ao fim, ela mencionou, sem tirar os olhos da lista que fazia, que precisaria comprar mais de um lenhador local.
Foi a primeira vez que senti aquele pequeno impulso de agir.
Antes de abrir a boca, hesitei. Meus dedos tremeram levemente sobre a mesa, a garganta seca. As palavras rodaram na minha cabeça por minutos, enquanto ela separava algumas moedas com a naturalidade de quem já estava acostumada a resolver tudo sozinha.
Eu estava cansado de me sentir um peso. Cansado de assistir o mundo pela janela. Quantas pessoas tinham caído por minha causa? Ficar ali dentro era como encarar cada uma delas, todos os dias, em cada canto. Não era só lenha que eu precisava carregar… era o fardo de mim mesmo.
Minha voz saiu antes que eu pudesse me conter, baixa, quase um sussurro cortado pelo frio da manhã.
— Eu preciso sair, Lyara.
Ela congelou, surpresa, como se aquelas palavras tivessem sido um golpe inesperado.
— Kael... talvez não seja uma boa ideia. Você ainda está se recuperando. E... — A frase morreu antes de terminar, e ela desviou o olhar, os dedos apertando a manga da blusa como se quisessem desaparecer ali.
Mas eu já sabia o que ela não queria dizer. Ela queria que eu ficasse escondido. Seguro. Intocado.
— Eu preciso sair, Lyara. Eu não quero... ficar preso aqui para sempre. Me deixe ajudar, por favor.
Por um momento, ela hesitou. Os olhos, que sempre carregavam aquele tom rubro intenso, suavizaram, como se algo dentro dela estivesse prestes a ceder.
— Só se prometer que vai manter a cabeça baixa. Nada de chamar atenção.
Assenti, sem hesitar.
E assim, saí pela primeira vez.
O ar frio me arranhava como galhos secos. Hesitei na soleira da porta, o coração martelando no peito, o estômago apertado em um nó sufocante. As sombras da vila pareciam mais densas do que deveriam, longas demais, como se me observassem em silêncio.
Mas eu respirei fundo… e dei o primeiro passo.
A vila era menor do que eu imaginava, com casas de madeira simples, quase todas cercadas por pequenas hortas ou galinheiros improvisados. As ruas eram de terra batida, e cada passo nosso parecia ecoar no silêncio opressor.
Os olhares. Eu os senti antes mesmo de vê-los.
Pessoas paravam o que estavam fazendo, algumas congelavam no lugar, outras mudavam de direção ou fingiam estar ocupadas demais para notar nossa presença. Nenhum olhar era direto, mas todos eram evitados com pressa suspeita. Como se minha existência fosse uma mancha que ninguém queria admitir que via.
Mãos apertavam cestas com mais força, passos se aceleravam sutilmente ao nos cruzar. O ar tinha um gosto amargo, como se cada olhar escondido deixasse um rastro metálico em minha pele.
Lyara caminhava ao meu lado com firmeza, sem olhar para ninguém. Tentei imitá-la, mas cada passo parecia me afundar mais.
Quando chegamos à clareira, o cheiro de madeira recém-cortada misturava-se à fumaça morna da pequena fornalha da cabana. Pilhas irregulares de toras e gravetos se empilhavam ao redor da construção rústica, cada pedaço marcado por cortes brutos. O lenhador, um homem largo e musculoso, entalhava machadadas precisas enquanto amarrava feixes de lenha. Sua barba grisalha, entrecortada por fiapos de serragem, balançava a cada movimento, e o couro endurecido da jaqueta rangia sob a tensão dos ombros.
Lyara avançou, gesticulando com rapidez e diplomacia, mas o mundo ao meu redor parecia desacelerar — o rangido da madeira, o crepitar distante do fogo, cada sílaba da negociação reverberava em meus ouvidos como se eu estivesse submerso. Os sons chegavam distorcidos, embalados por uma névoa espessa que se acumulava dentro de mim.
Quando me inclinei para pegar o primeiro feixe, senti um peso na garganta. O lenhador ergueu o olhar — olhos pequenos, fundo de xisto — e me empurrou um monte de gravetos rachados e lascados.
— Pega ali. É o que tem — resmungou, a voz tão áspera quanto a serra que usara minutos antes.
No instante em que o olhei, percebi. Não era apenas frieza. Era desprezo. Puro, sem disfarces.
Lyara não hesitou. Ela estreitou os olhos, e sua voz cortou o ar, afiada como uma lâmina mal embainhada.
— Isso não foi o que combinamos. Nem de perto.
O lenhador soltou o feixe no chão com um baque seco, arqueando uma sobrancelha enquanto deixava escapar uma risada rouca e sem humor.
— Bela dama, dinheiro é dinheiro. Se querem luxo, vão à cidade grande — murmurou, a voz carregada de desdém.
Meu peito se apertou, mas mantive o tom baixo, quase um sussurro, tentando selar aquele momento com o mínimo de atrito.
— Já chega. Vamos levar isso.
Ele bateu o martelo de madeira contra o feixe, como se carimbasse um acordo silencioso, e deu um passo à frente — não com palavras, mas com o peso do próprio corpo, impondo-se como um muro intransponível.
— É o que tem — repetiu, desta vez em um tom tão baixo que soava como um aviso sussurrado.
Por um instante, tudo dentro de mim tremeu. A tensão no ar era quase palpável, densa como névoa antes da tempestade. Aos poucos, o mundo ao redor retomou o ritmo — o cheiro da fumaça, o estalo das lenhas, o vento cortante.
Peguei o feixe que ele havia separado, e o peso dele me ancorou de volta.
Eu carregava mais do que gravetos quebrados — também trazia comigo o eco daquela hostilidade, uma lembrança cravada sob a pele.
— Obrigado — murmurei, desviando o olhar.
Lyara se posicionou ao meu lado, o corpo rígido, como se ainda ponderasse entre intervir ou recuar. Mas havia entre nós aquele entendimento silencioso de que, às vezes, era mais seguro simplesmente ir embora.
O lenhador riu baixo, voltando a mexer nas pilhas de madeira como se nada tivesse acontecido.
Seguimos de volta à cabana em silêncio. Cada passo meu fazia ranger a terra seca, e eu sabia — no fundo — que o que eu carregava nas mãos era leve… comparado ao que me pesava no peito.
De volta à cabana, depositei a lenha no canto e pedi desculpas.
— Eu prometo que vou compensar o que gastei. Vou arrumar outro jeito de conseguir o restante.
Ela suspirou, cansada.
— Não precisa, Kael. Você já fez mais do que suficiente.
Mas eu insisti, e talvez ela tenha entendido que eu precisava dizer algo, qualquer coisa que mostrasse que eu ainda estava tentando.
Eu percebia, com um misto de gratidão e culpa, que Lyara era a única coisa que me ancorava ali. Mas até ela parecia prestes a se quebrar sob tanto fardo.
Os dias seguintes passaram como um sussurro constante de paranoia.
O estalar das brasas na lareira preenchia o silêncio, um som irregular que parecia contar o tempo entre as tragédias.
Algumas horas depois, quando a brisa da noite já começava a soprar, o som de batidas secas na porta ecoou pela cabana.
Lyara ergueu-se lentamente, seu olhar buscando o meu por um breve instante antes de se dirigir à porta. Cada passo dela pelo assoalho rangente era tenso, como se o ar ao redor tivesse ficado mais pesado.
Ela abriu a porta com cautela.
Era o homem velho que nos havia recebido na chegada. Barba grisalha, olhos azuis gélidos, postura ereta como a de um militar.
— Seu amigo... o tempo que ele pagou está acabando. Vocês têm pouco menos de um mês.
Ele pediu para entrar, e Lyara cedeu passagem com um gesto contido, sem dizer nada.
Ele se acomodou perto da lareira, mas evitava olhar para mim, como se eu fosse uma sombra incômoda no canto do cômodo.
— Precisamos conversar — disse ele, a voz firme, sem rodeios.
O silêncio que se seguiu pareceu denso, pesado, como uma névoa que se arrastava entre nós.
— Os moradores... estão chamando ele de amaldiçoado.
As palavras caíram como pedras, quebrando o ar entre nós.
— Eles acham que você traz azar. Morte. Não importa se acreditam mesmo nisso ou não. Esse tipo de medo é o pior. É irracional.
Ele ajeitou o casaco, como se as palavras tivessem deixado um peso real sobre seus ombros. Sua voz soou carregada quando falou de novo, o olhar ainda desviado.
— Melhor se ele não sair mais.
Lyara resmungou baixo, o tom carregado de desprezo, sem esconder a irritação.
— Eles nem sabem o que essa palavra realmente significa...
Ele hesitou, os olhos fixos nas chamas da lareira, como se esperasse que o fogo lhe desse alguma resposta.
— Não é só isso...
A voz dele saiu mais baixa, mais pesada, como um segredo arrastando correntes pelo chão.
— Tem algo a mais... Um caçador.
Ele ergueu o olhar lentamente, encarando Lyara com uma seriedade que tornava o ar ainda mais denso.
— As pessoas têm falado sobre um vilarejo distante que foi... varrido. Não sobrou nada. Ninguém entende direito, mas sentem o mau presságio. E agora, com vocês aqui...
Ele parou, como se a frase queimasse em sua língua antes de finalmente concluir, com o tom sombrio de quem pronuncia uma sentença que já parece selada.
— Disseram que se a lua de sangue aparecer enquanto ele estiver aqui, vão expulsá-lo. Nem que seja pela força.
Ele saiu logo depois, sem olhar para mim nem por um segundo sequer.
Mas eu não precisava que eles me expulsassem. Parte de mim já havia partido há muito tempo.
Depois daquele dia, Lyara passou a evitar sair comigo. Félix nunca mais voltou. Quando perguntei, ela apenas abanou a cabeça, em silêncio.
Comecei a vagar mais pela cabana. Era estranho, mas eu percebia, com cada passo arrastado, que o tempo não curava nada. Ele apenas me tornava mais resistente à dor.
Lyara finalmente falou sobre o que sabia, sua voz soando como um eco antigo no meio da escuridão.
— Existem ordens secretas que estudam coisas assim, Kael. Maldições, rituais... Pouca gente acredita nelas. E quem se aprofunda demais acaba morto, ou pior. Não é como nos contos. As pessoas não sabem o peso dessas palavras.
Ela disse que o que eu carrego não era comum. Nem ela sabia o que era.
Naquela noite, o frio parecia mais cortante do que nunca. A lareira quase apagada era a única luz fraca no cômodo. A lenha tinha acabado rápido demais.
Por minha culpa.
Fui eu quem insisti em sair com ela. Lyara relutou, disse que não era uma boa ideia, mas eu insisti. E ela cedeu.
No fundo, eu sabia que ela só aceitou porque estava cansada de tentar me proteger de mim mesmo.
Ela tentou negociar, chegou a levantar a voz, mas eu a impedi antes que a discussão crescesse.
Não queria ver um problema começar por minha causa.
Já tinha estragado tudo demais só por estar ali.
Preferi aceitar. Fingir que estava tudo bem.
O resultado foi esse — pouca lenha, um estoque que não duraria.
Agora, ela estava ali, tentando esconder o cansaço, remexendo o pouco que restava na lareira, como se fosse possível tirar calor de cinzas.
Se eu tivesse ficado em casa…
Ela não precisaria estar passando por isso.
Fiquei encarando as brasas quase apagadas, o peso da culpa se acumulando no peito.
Esperei até que o sono finalmente a vencesse. Cada estalo da madeira soava como um lembrete cruel.
Não posso deixar assim.
Não havia casaco, nem proteção alguma contra o frio.
Peguei o pano mais grosso que encontrei e me enrolei do jeito que deu, apertando-o contra o corpo.
Mas não adiantou.
O frio atravessava o tecido com facilidade, como agulhas finas perfurando a pele.
Cada passo até o lado de fora era uma luta para não começar a tremer ali mesmo.
Ainda era estranho pensar nisso. Eu nem sabia exatamente onde estava.
A única coisa que eu sabia… é que o inverno tinha chegado rápido demais aqui.
Na cidade onde cresci, ele demorava a vir.
Nunca vi o chão tão cedo coberto pela geada.
Ali, antes mesmo do amanhecer, a grama e as folhas já brilhavam sob a luz pálida, congeladas, estalando a cada passo.
Preciso consertar isso. Nem que seja trazendo um pouco mais…
Caminhei até o bosque. Cada passo era acompanhado pelo rangido do chão congelado sob meus pés.
Era só lenha. Só isso.
O bosque se fechava ao meu redor, os galhos retorcidos estalando com o vento, como se estivesse vivo.
Abaixei-me para recolher alguns gravetos secos, quando o ar mudou.
O som veio primeiro. Passos calmos, quase leves demais, como se o chão evitasse fazer barulho.
O corpo congelou antes mesmo que eu pudesse pensar.
E então, eu o vi.
Um homem. Solitário. Caminhava com uma calma impossível entre as árvores. Cabelos negros e longos caíam sobre os ombros. Suas roupas grossas o envolviam como se ele fosse parte da própria escuridão.
O instinto gritava para fugir.
Mas ele parou.
E me olhou.
Os olhos eram tão escuros que pareciam poços infinitos. Um abismo escondido sob a pele.
Minha respiração travou. As pernas queriam correr.
Mas o corpo não respondia.
Ele sorriu — um sorriso vazio, como se já me conhecesse.
Como se dissesse que eu estava no lugar certo. Exatamente onde ele queria.
O tempo pareceu se alongar, sufocante.
Tudo ao redor desapareceu.
Só existia ele.
E aquele sorriso.
Depois de um instante que pareceu uma eternidade, ele fez um gesto quase imperceptível com a cabeça. Um aceno breve.
Como quem marca uma presa.
Virou-se.
Desapareceu entre as árvores, com passos leves como sombras.
Eu continuei ali, paralisado. Muito depois dele ter sumido.
O frio me cortava a pele, mas era outro tipo de gelo que me impedia de respirar.
No fundo, eu sabia.
Eu nunca esqueceria aquele sorriso.