Algumas semanas haviam se passado desde que Rodrigo reencarnou naquele novo mundo.
Uma das maiores dúvidas que ainda o assombrava — além do motivo por trás de ter recebido uma segunda chance — era o porquê conseguia entender tudo o que as pessoas ao seu redor falavam. Tendo nascido e crescido no Brasil, mais especificamente na cidade de São Paulo, ele tinha plena certeza de que aquela língua que todos falavam não era português.
— Também não é inglês... — murmurava em pensamento, franzindo o cenho. — Mesmo sem nunca ter estudado outros idiomas, eu saberia reconhecer.
Ele entendia as palavras, os significados, os contextos. Mas as letras... As letras eram como símbolos de um alfabeto esquecido por séculos. Um código que se recusava a se revelar. Ele notou isso ao observar um dos livros que Elise carregava consigo durante as visitas semanais à família.
Tradicionalmente, Maria deveria ir até o “consultório” de Elise. Contudo, após o parto traumático e a perda extrema de sangue, ela ainda mal conseguia se levantar sozinha. Foi então que a parteira passou a visitar a casa duas vezes por semana, para garantir que mãe e filho estavam se recuperando.
— Sua recuperação está indo bem, Maria — disse Elise com um sorriso leve, sentada em uma cadeira simples de madeira, balançando levemente Elian nos braços. — E esse garotão aqui também está saudável. Firme como uma raiz de carvalho.
— Obrigada por vir, Elise. — Maria sorriu, pálida, mas com um brilho nos olhos. — Fico mais tranquila em saber que Elian está crescendo bem...
Ao pronunciar o nome do filho, seus lábios desenharam um sorriso largo, quase instintivo. Um amor silencioso, mas absoluto, transbordava em seu olhar.
Elise retribuiu o sorriso e então arqueou as sobrancelhas, sentindo algo estranho nos braços.
— Tão bem... que acho que está na hora de trocar as fraldas — brincou, encarando Elian com um olhar cúmplice e bem-humorado.
Por dentro, Elian queria desaparecer. Sumir dali. Seu constrangimento era tamanho que, se pudesse, teria cavado um buraco e se enterrado de vergonha. Mas ele sabia que não havia fuga. Não havia escapatória possível para a realidade do corpo que agora habitava.
Durante aquele tempo, seu corpo passava por todas as fases biológicas de um bebê em crescimento. Dormia a maior parte do dia, mesmo sem fazer esforço algum. Chorava sem controle, se sujava com frequência, dependia dos outros para tudo. Era humilhante. Era cruel. E ele odiava isso.
Mas nada era tão humilhante quanto... a amamentação.
Mesmo que agora tivesse apenas alguns meses de vida — aos olhos dos outros — internamente, sua alma era a de um homem de vinte e sete anos. Um adulto carregado de memórias, de pecados, de experiências. Ele era mais velho do que sua nova mãe. E, ainda assim, era alimentado por seu seio.
— Eu não vejo a hora de crescer e nunca mais precisar disso... — pensava, sufocado pela vergonha.
Não era excitação. Nunca foi. Só o pensamento disso já o fazia se enojar. O que o deixava desconfortável era a quebra de sua identidade. O gosto do leite, doce e ao mesmo tempo levemente salgado, lhe causava repulsa. Não pelo sabor em si — mas pelo que aquilo representava. Um renascimento forçado. Uma regressão total. Uma dependência dolorosa.
— É estranho... — era tudo o que conseguia pensar sobre aquilo.
Talvez fosse a alimentação da época. Talvez algum fator biológico que não compreendia. Talvez fosse apenas o gosto da vergonha.
— Deixa que eu te ajudo, Maria — disse Elise, começando a remover o pano que servia como fralda improvisada. Estava preso com um alfinete simples, ligeiramente enferrujado. Não havia luxo naquele lar. Apenas sobrevivência.
"Deuses... me matem logo", resmungou Elian em pensamento, seus olhos semicerrados de vergonha. Ainda que não pudesse falar, sua mente era afiada. Quase parecia um velho ranzinza.
Apesar de estar fisicamente crescendo, Elian não conseguia se sentir confortável naquela vida. Mesmo tendo escapado da morte — ou do inferno, quem sabe — ele não conseguia aceitar a dádiva que lhe foi dada. A cada olhar, a cada momento partilhado com aquela família simples e generosa, a culpa se aprofundava mais e mais.
Eles dividiam tudo. Até o nada.
Ele observava Maria, Arthur, Anthony e Emanuelle dividindo, com gratidão no rosto, pedaços de pão duro e sopa rala. A sopa era tão rala que parecia mais água de lavagem. Ainda assim, eles comiam sorrindo. Alimentavam-se com dignidade, mesmo na escassez.
— Além de assassino... agora sou mais uma boca faminta para alimentar. — O pensamento o corroía por dentro.
Não saía som de sua boca, mas dentro dele, a voz da culpa rugia.
Na sua primeira vida, ele foi pobre. Morava num barraco de madeira, em uma das comunidades esquecidas de São Paulo. Passou fome. Passou medo. Passou raiva. Mas mesmo naquela miséria, às vezes comia arroz, feijão, e, se tivesse sorte, um ovo frito.
Aqui, não havia arroz. Não havia feijão. Só uma constante luta contra o frio, a fome e o tempo.
E isso doía.
Doía mais do que as feridas da vida passada. Porque, naquela casa pobre de barro e palha, onde a chuva escorria pelas frestas e a madeira apodrecia sob os pés descalços das crianças... existia amor.
E ele sentia que não merecia estar ali.
Mas, mesmo passando por tudo aquilo — o desconforto, a vergonha, a culpa, a miséria — Elian queria chorar.
Não era um choro de tristeza.
Era um choro de alívio.
De felicidade silenciosa.
Aquele sentimento quente, tênue, quase esquecido... de amor e carinho. Algo que ele havia buscado por anos, desde a morte brutal de sua mãe, do seu pai... e de Luciana.
Só de pensar no nome da irmã mais nova, um rasgo invisível atravessava sua alma.
— Luciana… — pensou, e uma dor surda apertou seu peito.
“Por que eu recebi outra chance… e ela não?”
A pergunta o corroía em silêncio. Repetia-se, cruel, em sua mente todas as noites desde que acordara naquela nova vida. Ele se lembrou do último encontro com ela, naquele templo estranho entre a vida e a morte, onde a coruja o obrigou a encarar todos os seus momentos: os felizes, os tristes... e os sangrentos.
Ali, ele foi forçado a ver — com olhos nus e alma aberta — a dor que causou. O rastro que deixou.
E ainda assim... ali estava ele.
Vivo. Renascido. Nos braços de uma família que não sabia quem ele era, que não conhecia seu passado — mas que, mesmo assim, o amava.
O toque quente que sentia naquele limbo, quando Luciana lhe estendeu a mão uma última vez, hoje era substituído pelo toque suave e protetor de Maria.
O olhar caloroso que ela lhe deu antes de desaparecer, hoje se refletia nos olhos doces e vivos de Emanuelle, que sorria toda vez que se aproximava do berço, chamando-o de "maninho".
O sorriso tímido e cheio de saudade que Luciana lhe oferecerá, hoje era estampado no rosto de Arthur, toda vez que ele voltava para casa com os olhos cansados, mas ainda disposto a segurar o filho nos braços, mesmo que por um instante.
Anthony, o filho mais velho, era mais contido. Quase sempre observava em silêncio, distante, como se tentasse compreender aquele novo irmão que surgiu de repente. Mas nunca o olhou com frieza. Não havia rejeição. Às vezes, quando ninguém percebia, ele se aproximava do berço — uma cesta —, pegava Elian com cuidado nos braços e, meio sem jeito, fazia caretas e brincadeiras para tentar arrancar um riso.
Elian, no entanto, não era um bebê comum. Seu sorriso era sempre forçado — não por maldade, mas por esforço. Ele queria corresponder. Queria ser aceito. Queria dar algo de volta, mesmo que fosse apenas um sorriso torto.
E ali, entre aqueles gestos pequenos — mas carregados de significado — Rodrigo, agora Elian, sentia algo que não sentia havia muitos anos: pertencimento.
Seu corpo estava cansado. O dia terminava em sombras, e o cheiro de fumaça da lenha usada para cozinhar ainda impregnava o ar. Emanuelle havia adormecido em um canto do chão, com a cabeça apoiada sobre um travesseiro de palha. Arthur e Maria cochilavam lado a lado, exaustos. Apenas Elian, ainda desperto, encarava o teto de madeira tosca acima de si.
Ele fechou os olhos devagar. E, no silêncio quebrado apenas pelo som distante dos grilos e do vento filtrando pelas frestas, murmurou baixinho, só para si:
— Eu sinto sua falta, Luciana... Nunca me esquecerei de você.
E adormeceu.
Com lágrimas invisíveis escorrendo por dentro. Mas, pela primeira vez em muito tempo… em paz.
Um mês havia se passado desde o nascimento de Elian.
Maria já conseguia caminhar com mais firmeza, e a palidez de seu rosto começava a dar lugar à antiga vivacidade, ainda que de forma lenta e frágil. Naquela manhã, Elise finalmente lhe dera a permissão que tanto aguardava:
— Maria, você pode voltar a fazer alguns afazeres domésticos... — disse a parteira com um suspiro contido — mas nada de lavoura. — Completou, franzindo o cenho ao perceber que Maria já ensaiava uma resposta.
— Mas eu posso usar magia? — perguntou Maria, erguendo as sobrancelhas — Acredito que já estou bem o suficiente para isso, e não quero deixar tudo para o Anthony ou para a Emanuelle...
“Magia? Como eu pude me esquecer disso?!” — pensou Elian, surpreso, quase se engasgando com o próprio ar. — “Eu sabia que estava me esquecendo de algo... Lembro de ter ouvido Elise falar sobre usar feitiços para estancar o sangramento…”
Uma dor tênue se espalhou por seu peito ao se lembrar daquele dia. Mas o pensamento seguinte trouxe consigo uma fagulha de empolgação: Será que eu também posso usar magia?
Mesmo ainda carregando a culpa por quase ter causado a morte de Maria — pois assim ele via os acontecimentos — Elian não conseguiu conter a excitação. A ideia de possuir poderes era algo que o encantava desde criança. Ainda se lembrava de quando assistia a desenhos e filmes de super-heróis — mesmo seu favorito sendo o Batman, que não tinha poderes mágicos. Mas agora… magia parecia algo ao seu alcance.
— Pode… mas tente não exagerar — respondeu Elise, lançando um olhar que misturava carinho e resignação, como se já soubesse que Maria provavelmente ignoraria seus conselhos. — A propósito… Anthony e Emanuelle já estão praticando alguma magia?
Nesse instante, Elian prendeu a respiração. Seus ouvidos aguçaram-se. Cada palavra que viria a seguir parecia carregar o peso de um novo mundo.
— Bem... — começou Maria, hesitante.
“Não me diga que eles não podem usar?” — pensou Elian, com o coração acelerado.
— Eles estão, sim. Mas… — Maria suspirou. — Não tivemos muito tempo para ensinar além do básico. Como eu estava grávida de Elian, e também ocupados com o trabalho na fazenda, ficou difícil ensinar qualquer coisa mais avançada.
Um brilho melancólico passou pelo olhar de Maria — e Elian notou. Era o tipo de tristeza silenciosa que uma mãe carrega quando sente que falhou com os filhos, mesmo quando tudo o que fez foi lutar para manter a família de pé.
— Eles só sabem feitiços simples — continuou ela, tentando sorrir. — Como acender a lareira, puxar um pouco de água para limpeza, fazer o vento soprar para tirar o pó... Agora, terra... bom, ainda não conseguiram aprender nada.
— Tudo bem. — respondeu Elise, balançando a cabeça. — O importante é que eles têm aptidão mágica. Você tem sorte, Maria. Não é comum uma mãe com três filhos, e todos com potencial arcano, mesmo que rudimentar.
Elise então se aproximou do berço e pegou Elian no colo com cuidado. Seus olhos verdes se fixaram nos dele com uma intensidade silenciosa.
— Sabe, Maria... — começou ela, com voz baixa — eu acredito que o Elian também será um usuário de magia.
— Sério? — perguntou Maria, encarando o bebê agora em seus braços.
— Sim. Já ajudei em muitos partos durante os meus cinquenta anos... e em alguns poucos, senti uma energia diferente nas crianças que nasciam. Elian foi um deles. — Ela sorriu, mas sua voz não tinha nenhuma fantasia. Era uma afirmação calma, quase reverente. — Isso não quer dizer que ele será um Arquimago, um Portador da Coroa, ou... um Avatar de Samael. Mas com certeza, ele poderá usar magia.
Ao ouvir aquilo, o coração de Elian disparou.
“Arquimago eu entendo… mas o que raios é um Portador da Coroa? E um Avatar de Samael…?” — Pensamentos frenéticos corriam em sua mente. Aquilo parecia uma mitologia nova se abrindo diante dele.
— Bom, vou indo agora. E lembre-se: sem trabalhos pesados, e nada de abusar da magia, entendido?
— Sim… entendi. — disse Maria, num tom que soava obediente demais para ser honesto.
Elise entregou Elian de volta à mãe, lançou um último olhar para os dois e saiu pela porta, com a mesma tranquilidade de quem carrega décadas de sabedoria.
O silêncio se instalou por alguns instantes na pequena casa de barro. Maria balançava Elian suavemente, e ele a observava, imerso em pensamentos.
“Então magia é real neste mundo… Isso é mais do que eu esperava.”
Um pequeno sorriso involuntário surgiu em seu rosto. Seu corpo ainda era frágil, sua mente carregava as cicatrizes de uma vida inteira... mas uma parte dele — uma parte que ainda acreditava em esperança — se permitiu sonhar.
Quem eu serei neste mundo?
Elian adormeceu sem saber a resposta, mas com o coração um pouco mais leve.