Quando o Vento Começa a Sussurrar.

Cinco anos passaram-se como folhas levadas pelo vento.

Elian cresceu — ao menos no corpo. A mente, essa já nasceu velha.

Ainda se lembrava do gosto agridoce do leite materno, da vergonha das fraldas, da sopa rala dividida em quatro tigelas de madeira rachada.

Lembrava-se da primeira vez em que viu Maria acender uma vela apenas com um gesto. Da voz de Elise, firme e doce, dizendo: ‘Esse menino... talvez tenha potencial’.

Agora, aos cinco anos, ele se via em silêncio, deitado sobre uma esteira de palha, encarando o teto de madeira da casa. E, mesmo após tudo, uma pergunta ainda o queimava por dentro:

— Por que eu... e não ela? — murmurava, enquanto se lembrava de Luciana.

★★★

Mesmo tendo vivido anos “felizes” ao lado de sua nova família, Elian ainda não conseguia aceitar plenamente a nova vida que lhe foi dada.

Era cruel carregar as memórias de uma existência passada, repleta de sangue, raiva e destruição — e agora, estar ali, recebendo amor. Uma segunda chance. Como se o destino quisesse redimi-lo por algo que ele mesmo não conseguia perdoar.

Mesmo que sua família estivesse mergulhada no que qualquer um chamaria de miséria absoluta, Maria e Arthur faziam o impossível para manter os filhos alimentados e aquecidos. A casa de barro e madeira rangia no inverno, e o frio entrava pelas frestas como agulhas invisíveis.

Eles compravam “agasalhos” de segunda ou terceira mão — tecidos gastos, furados, mal remendados. E quando nem isso podiam pagar, Maria costurava. Sempre costurava.

Elian, sendo o mais novo, passava a maior parte do tempo ao lado da mãe. Sentava-se quieto no canto do pequeno cômodo, observando com olhos atentos e silenciosos enquanto ela lutava contra o tempo e o frio, alinhavando roupas que já haviam vivido mais de uma vida.

Com o passar dos anos, ele começou a compreender melhor a profundidade da pobreza em que viviam. Mas o que mais lhe partiu o coração foi quando descobriu que, para garantir seu nascimento, Maria e Arthur haviam gastado praticamente todas as economias da família.

— Por quê? — perguntava-se em silêncio, os olhos marejando. — Por que eles sacrificariam tudo por alguém como eu?

A pergunta o corroía por dentro. E mais do que a culpa, havia algo ainda mais sombrio apertando seu peito:

— Será que eu matei o verdadeiro Elian?

— Será que, ao reencarnar, roubei a vida de alguém que teria o direito de existir aqui?

A dúvida era sufocante.

Se fosse verdade, então ele era mais que um monstro — era um ladrão de destinos. Um assassino até mesmo no renascimento.

— Se eles soubessem… se descobrissem quem eu fui de verdade… eles me odiariam — pensava, encolhido sob o cobertor de palha. — Eles me expulsariam. Com razão.

Esses pensamentos vinham como marés, imprevisíveis e arrasadores. Às vezes, de noite, ele chorava em silêncio, sem fazer um som sequer. As lágrimas escorriam como se não pertencessem a um corpo infantil, mas a uma alma velha, gasta… quebrada.

Emmanuelle, sua irmã mais próxima, notava. Ela sempre notava.

— Maninho… o que foi? Você está triste de novo?

Elian sempre respondia com um sorrisinho fraco e um aceno de cabeça.

— Não é nada…

Mas era. Era tudo.

E, mesmo tentando não preocupar os pais e irmãos, sua melancolia deixava marcas. Havia algo nos olhos de Elian que o tornava diferente. Algo mais fundo. Algo que, mesmo sem entenderem, todos pareciam sentir.

Ele queria ser forte. Queria merecer a vida que ganhou. Mas, por enquanto, tudo o que conseguia fazer era… continuar respirando. E tentando não afundar no mar escuro que sua alma carregava.

Nem tudo era tristeza dentro de casa.

Com o passar dos anos, Elian começou a aprender magia com sua mãe, Maria. Seu pai, Arthur, não havia nascido com o “dom” de sentir mana — não podia usar feitiços ou manipular os elementos —, mas jamais reclamou disso. Trabalhava duro todos os dias, sustentando a família com o suor e a força dos braços.

Com o tempo, Elian pôde observar sua mãe com mais clareza, e a impressão que tivera ao nascer só se confirmou.

— Como eu imaginava... a mamãe é linda. Arthur teve sorte de se casar com ela.

Pensamentos como esse vinham de vez em quando. Não havia malícia neles, apenas carinho e admiração sincera. Com seus cabelos ruivos lisos, bem cuidados mesmo com a escassez, os olhos azul-marinho que brilhavam mesmo nas noites mais escuras, e um corpo resistente, moldado pelo esforço diário, Maria era, aos olhos de Elian, alguém tão bela quanto forte. Uma mulher que ele respeitava — não só como mãe, mas como ser humano.

— Elian, Anthony, Emanuelle... prestem atenção.

Com um movimento simples das mãos, Maria fez uma lufada de vento sair em linha reta, empurrando uma cadeira de madeira com suavidade. Foi um gesto modesto, mas para Elian, aos três anos de idade, aquilo foi como assistir a um milagre.

Seus olhos brilharam.

Era real. A magia era real.

Mesmo que sua alma ainda estivesse sufocada pela culpa, a esperança reacendia sempre que testemunhava o impossível se tornar possível.

— Eu não sou professora — disse Maria, olhando para os três filhos —, mas consigo ensinar o básico. Coisas simples que ajudem no dia a dia. Acender a lareira, mover objetos, limpar a casa. Isso já é o suficiente para começar.

Anthony, agora com nove anos, estava ali naquele dia. Mas ele raramente aparecia. Passava quase todo o tempo ao lado de Arthur na lavoura, ajudando no que podia. Seu interesse por magia era... inexistente.

— Mãe, eu não quero aprender isso — disse ele, com uma expressão honesta. — Prefiro ajudar o papai com o trabalho da terra.

Ao falar, olhou para Elian e Emanuelle como se pedisse desculpas por estar se afastando daquela parte da vida deles.

Maria o encarou com leve tristeza nos olhos.

— Tem certeza, meu filho?

Ela não o forçaria. Sabia que ter afinidade com magia não significava ter talento, e que talento não era tudo. Anthony havia percebido isso cedo — e optado por um caminho diferente.

— Tenho sim, mãe. É melhor deixar isso para o Elian e a Emanuelle.

— Está bem. Se é o que você quer... pode voltar para a lavoura com seu pai. — Ela sorriu, doce. — Fico feliz por ser honesto comigo. Eu te amo, filho.

— Também te amo. — Anthony respondeu, antes de se afastar.

Maria então se voltou para os dois filhos mais novos.

— Vamos treinar lá fora. Mesmo sendo básico, vocês podem acabar quebrando alguma coisa aqui dentro.

Do lado de fora, o sol já começava a cair. O céu era pintado em tons dourados e laranjas. Ao fundo, Elian viu Anthony com uma pequena enxada nas costas, se juntando a Arthur, que estava agachado, com as mãos sujas de terra, cuidando da plantação.

Uma pontada de culpa atravessou o peito de Elian.

— Eu deveria estar ajudando eles... e não sendo um parasita, como estou agora — murmurou para si.

Mas não foi baixo o suficiente.

Maria, atenta como sempre, o ouviu.

— Não diga isso, Elian. — A tristeza em seu rosto era nítida. — Você tem só três anos. É muito cedo para trabalhar.

Ela olhou para o campo, depois para o filho, como se quisesse protegê-lo do mundo.

— Anthony só começou agora, aos nove. Ninguém espera que você faça isso tão cedo.

— É verdade, Eli! — completou Emanuelle, sorrindo e apertando a mão dele. — Quem sabe você não vira um Arquimago, um Portador da Coroa ou até mesmo... um Avatar de Samael?

Elian piscou. Ele se lembrava dessas palavras — ditas por Elise, quando ele ainda era só um recém-nascido. Por algum motivo, havia esquecido... até agora.

Talvez eu devesse perguntar sobre isso para a Elise...

— Vamos começar — disse Maria, sentando-se sobre os joelhos, em cima da terra batida. Suas mãos repousavam suavemente no colo.

O vento era quase inexistente, e o mundo parecia conter a respiração.

— Fechem os olhos — disse ela.

Emanuelle obedeceu na mesma hora. Elian demorou um pouco mais.

— A magia não está nas palavras. Nem nos gestos — disse Maria, a voz serena. — Ela está naquilo que vocês imaginam. E na forma como acreditam no que imaginam.

Ela fez uma pausa.

— Todo feitiço nasce de uma imagem simples. E toda imagem pode se tornar algo grandioso se for imaginada com o coração inteiro.

Elian escutava, absorvendo cada palavra.

— Antes de qualquer feitiço, vocês precisam sentir. Não o vento do mundo… mas o vento de dentro.

Ela tocou o próprio peito.

— Tudo começa aqui. E tudo começa pequeno.

O silêncio tomou conta do campo. As cigarras pararam. O tempo parou.

E foi naquele momento que Elian sentiu.

Ali, bem no meio do peito. Uma pressão suave. Um calor diferente. Não ardia. Não doía. Mas pulsava... como se algo quisesse despertar.

Elian abriu os olhos, ofegante.

— Você sentiu — disse Maria, sem surpresa. — Agora… imagine.

Ele fechou os olhos de novo, mais concentrado.

Maria se ergueu um pouco e prosseguiu:

— Visualizem o vento girando. Ele está aí, à sua volta. Vocês o chamam com o que são, com o que sentem. Vejam-no dançar em círculos… como se vocês fossem o centro de um pequeno mundo.

Elian ergueu a mão instintivamente. Imaginou o ar se movendo a partir de si — como se um fio invisível escapasse de seus dedos.

— Agora — disse Maria — digam: Flatus Venti.

— Flatus Venti! — disseram os dois ao mesmo tempo.

E então… aconteceu.

Uma brisa girou em torno das mãos deles. Não era o vento da natureza. Era algo... chamado. A poeira se levantou em redemoinhos pequenos, mas perfeitos.

— Eu fiz! Eu fiz vento, mãe! Eu senti de verdade! — gritou Emanuelle, com uma alegria quase contagiante.

Maria sorriu. Os olhos marejaram.

Elian não disse nada. Apenas estendeu a mão e sentiu o vento entre os dedos. Um calor suave descia do peito para o braço, guiado por fé e lembrança.

Aquilo era real.

Não era o passado.

Era o começo.

★★★

Durante os últimos dois anos, Elian e Emanuelle treinaram magia todos os dias com Maria. A prática se tornou um pequeno ritual familiar — não importava se chovia, se ventava ou se o frio cortava a pele. Entre os campos pobres e a casa de barro, algo mágico acontecia, não só no sentido literal… mas dentro do coração de Elian.

Agora, com cinco anos, seus cabelos ruivos — herdados da mãe — já desciam até os ombros. Seus olhos dourados observavam fixamente seu pai, que se aproximava segurando algo nas mãos.

— Elian… — disse Arthur, com um pequeno sorriso no rosto calejado — este é seu presente de aniversário.

Era um livro.

Elian reconheceu imediatamente. Já o tinha visto algumas vezes nas mãos de Elise durante suas visitas. Era um livro de magia. Um grimório de verdade.

Por um instante, ele ficou sem palavras. Depois, abaixou a cabeça.

— Pai… eu não mereço isso.

A frase não foi dita por educação ou por insegurança infantil. Era genuína. Pesava em sua consciência. Ele sentia que aquilo era luxo demais para alguém como ele.

— Você deveria ter gasto esse dinheiro com a mamãe… com a Emanuelle… ou com o Anthony, que ajuda o senhor todos os dias na lavoura — disse, desviando os olhos para o irmão mais velho, que evitou o olhar em silêncio.

Arthur soltou um leve suspiro, como se já soubesse que Elian diria aquilo. Depois, respondeu com firmeza:

— Você merece, sim. Emanuelle também ganhou um presente no aniversário dela — uma boneca nova. Anthony ganhou uma pequena espada para treinar. E esse livro... é o seu.

Elian segurou o livro como se fosse vidro.

— Mas pai… isso é caro demais. É muito mais do que eles ganharam. Eu sei como as coisas estão difíceis... ainda mais depois do que aconteceu no meu nascimento. Eu…

Antes que pudesse terminar, Arthur o encarou. Depois olhou para Maria, que apenas balançou a cabeça negativamente, deixando claro que não havia dito nada.

— Elian — disse o pai, em tom baixo, carregado de lembrança. — Se eu não tivesse me endividado naquela época, sua mãe teria morrido. Eu faria tudo de novo.

Houve um silêncio pesado por alguns segundos. A voz de Arthur vacilou, quase imperceptível.

— A culpa não foi sua. E nunca será. Não pense nisso.

Arthur então forçou um pequeno sorriso e completou:

— E, para ser honesto… quem me convenceu a comprar esse livro foram Anthony e Emanuelle.

Elian piscou várias vezes, sem saber o que dizer. Virou-se, surpreso, para os irmãos. Anthony o encarou por fim, com um meio sorriso cansado, e disse:

— Elian… eu sei que não tenho talento pra magia. Talvez só sirva mesmo pra trabalhar na roça. — Ele levantou a mão, impedindo qualquer resposta. — Mas você e a Emanuelle têm algo diferente. E, se for pra um de nós mudar o destino dessa família, por que não você?

A última frase foi dita com simplicidade, mas continha uma fé profunda.

Arthur e Maria sentiram um aperto no peito — uma mistura de vergonha pela pobreza em que viviam, e orgulho pelos filhos incríveis que criavam.

Emanuelle, com seus oito anos, talvez não entendesse totalmente o peso daquelas palavras… mas sorria com os olhos brilhando.

— Quem sabe você não me torne uma bela dama da corte? — disse, rindo, com a leveza de quem ainda sonha sem medo.

Maria então se aproximou, finalmente dizendo algo.

— Viu só, filho? Ninguém aqui está triste por você ter recebido esse presente. Na verdade… todos acreditam em você.

Ela o puxou para perto, acariciando os cabelos ruivos do menino.

— Elise já tinha me dito que você poderia ter talento. E nesses dois anos… você me provou isso. — Maria sorriu com ternura. — Você já está até melhor que eu.

Elian apertou o livro contra o peito. Ainda achava que não merecia nada daquilo. Mas era amado. Era visto. Era acreditado.

E talvez… isso fosse suficiente.

Ele respirou fundo e falou com a voz embargada:

— Tudo bem, mãe… pai… Anthony… Emanuelle… Obrigado. De verdade.

Todos o abraçaram ao mesmo tempo — um nó quente de amor em meio ao frio da pobreza. E, enquanto as lágrimas brotavam dos olhos dourados de Elian, ele fez uma promessa em silêncio:

“Eu vou me tornar alguém digno disso. Vou me tornar forte. Por vocês. Pela nossa família.”

E naquela noite, sob um céu limpo e silencioso, nasceu não apenas um mago.

Nasceu um propósito.