A noite havia chegado sem pressa, cobrindo o céu com um manto espesso e silencioso. Do lado de fora da casa, o vento sussurrava entre as frestas da madeira como se quisesse entrar e fazer parte da vida que acontecia ali dentro. A lareira crepitava baixo, lançando sombras dançantes sobre as paredes de barro e palha, como se também estivesse tentando aquecer alguma alma esquecida.
Elian permanecia acordado, olhando para os irmãos que dormiam ao seu lado.
Emanuelle repousava tranquilamente, como se nada no mundo pudesse perturbá-la. Seu peito subia e descia num ritmo leve — inocente. Dormia como quem nunca foi ferida por invernos implacáveis ou pela crueldade que o mundo reserva aos pobres.
Em contraste, Anthony dormia pesado, os músculos relaxados pelo cansaço. O dia na lavoura havia sugado suas forças, como fazia todos os dias. Ainda assim, não havia queixa em seu rosto — apenas o silêncio resignado de quem aprendeu cedo demais a carregar o mundo com os próprios ombros.
Elian, por sua vez, estava desperto. Abraçado ao grimório que ganhara horas antes, sentia o calor morno da gratidão e o peso cruel da dúvida.
Seus braços se fechavam em torno do livro como se quisesse protegê-lo — ou, talvez, fosse ele quem buscava proteção naquele objeto. Um símbolo. Um futuro. Uma promessa.
Deitado sobre a esteira de palha, encarava o teto de madeira com os olhos dourados abertos, ardendo como brasas contidas. Ainda sentia o eco dos abraços, o toque nos cabelos, os sorrisos de parabéns. Ainda ouvia dentro de si o “obrigado” que murmurava com a voz embargada.
Mas agora, no silêncio da noite, a alegria recuava… e as sombras voltavam.
Sempre voltavam.
“Eu vou ser forte. Eu prometo. Mas… e se eu não conseguir?”
Seu peito apertava.
Era amado. Era querido. Eles acreditavam nele.
Mas ele... ainda se via sujo. Como alguém que roubou um destino que não lhe pertencia.
Era como vestir uma roupa limpa sobre um corpo manchado de sangue que não saía, por mais que se lavasse.
Virou-se de lado, abraçando o livro com mais força.
“Por que eu… e não ela?”
A imagem de Luciana veio como um punhal. Ela sorrindo, pequena e viva. Ela caída, fria e silenciosa. Ela, que ele jurou proteger.
Ela, que ele deixou morrer.
Uma lágrima escorreu, quente, pelo canto do olho.
— Elian? — murmurou uma voz baixinha.
Ele se virou. Era Emanuelle.
Ela estava de pé ao lado da esteira, o rosto ainda sonolento, os cabelos desalinhados, os olhos semicerrados.
— Sim? — respondeu ele, tentando limpar o rosto discretamente.
Ela se aproximou e o olhou com atenção. Quando notou a lágrima que ainda brilhava sob a luz fraca da lareira, franziu o cenho.
— Você está chorando? Está triste? Se machucou?
Elian não respondeu. Apenas a encarou.
Emanuelle então se abaixou e, com um gesto simples e afetuoso, enxugou a lágrima com a ponta dos dedos.
— Não precisa chorar. — disse com um sorriso leve, quase inocente. — Hoje é seu aniversário. Dia de ficar feliz, não triste.
Sem aviso, começou a se enfiar debaixo da coberta dele.
— Manu… espera… o que você tá fazendo?
Ela se aconchegou ao lado dele com naturalidade e disse:
— Hoje vou dormir com você. Vai que você tá com medo dos monstros das histórias que o papai conta... então vou ficar aqui pra te proteger.
Elian suspirou. Não conseguia dizer não. Não para ela.
— Tudo bem…
— Boa noite, Elian. Até amanhã.
Ela o abraçou com ternura, como só irmãos são capazes. E, sem saber, afastou as sombras daquela noite.
Elian fechou os olhos.
E, pela primeira vez em muito tempo… adormeceu em paz.
O dia seguinte começou como qualquer outro.
A mesa do café da manhã estava posta — ou melhor, improvisada. Sobre a superfície gasta de madeira, havia um pão de centeio — duro e envelhecido — e uma tigela de mingau ralo, feito à base do trigo que eles mesmos plantavam. A água, servida em potes de barro, era a única bebida disponível.
Era pouco. Mas era o que havia. E, principalmente, era feito com esforço, voltado principalmente para Arthur e Anthony, cujos dias na lavoura começavam antes mesmo do sol erguer-se por completo.
Arthur mastigava em silêncio quando, após engolir um pedaço do pão, disse:
— Hoje vou ao vilarejo. Precisamos vender o trigo que colhemos na semana passada.
A fala foi direta, como tantas outras. A vida no campo não permitia floreios.
Logo em seguida, voltou-se para o filho mais velho.
— Anthony, quero que continue cuidando da fazenda hoje. O trabalho não pode parar.
Anthony apenas assentiu, sério. Os olhos, cansados, encontraram os do pai. Não houve hesitação. Era um fardo que ele carregava sem reclamar.
Maria, sempre prestativa, abriu a boca para oferecer ajuda, mas antes mesmo de terminar a frase, Arthur e Anthony responderam em uníssono:
— Não, Maria. Cuide da casa. Isso já é mais que o suficiente.
Ela recuou, calada, mas no fundo havia um pequeno pesar nos olhos. O peso de não poder fazer mais… mesmo querendo.
Arthur então limpou a boca com as costas da mão e olhou para os dois filhos mais novos, ainda mastigando devagar o mingau:
— Elian, Emanuelle... hoje vocês vão comigo.
Ambos o olharam, surpresos.
— Já está na hora de conhecerem o vilarejo. Manu nunca foi, e você, Elian, também não. Quero que me acompanhem.
Elian sentiu uma pontada de expectativa no peito. Em cinco anos vivendo naquele mundo, nunca havia saído além dos limites da pequena propriedade. O mais longe que se aventurara fora o campo de trás, onde treinava magia com Maria.
E a floresta, sempre à vista, mas distante… permanecia proibida. Um lugar envolto por histórias e advertências.
— “Quando for mais velho… e forte o bastante, poderá ir até lá. Mas até lá, é melhor não.” — Lembrava-se da voz de Arthur, firme, anos atrás.
— Tudo bem, pai. Quando vamos partir? — perguntou Elian, tentando parecer calmo, mesmo com o coração acelerado.
— Assim que terminarmos o café. Quero voltar antes do entardecer. As estradas não são seguras depois do pôr do sol. Podem haver bandidos.
A palavra ficou suspensa no ar por um segundo.
“Bandidos…”
A palavra pareceu gritar apenas para Elian. Ele sabia bem o que significava. Não pela boca dos outros… mas pelos próprios atos do passado.
Sua mente foi tomada de assalto por uma memória suja, cruel, manchada de sangue.
Uma família.
Gritos.
Pânico.
Uma faca deslizando sem hesitação.
E ele… sorrindo.
"Me desculpe."
A frase queimou por dentro. Não havia para quem dizê-la. Não havia como desfazer o que fora feito. Era um pedido lançado ao vazio.
Olhou ao redor, para a nova família. Emanuelle sorria, animada. Maria o observava com carinho. Anthony já se preparava para o trabalho. Arthur fazia planos com a naturalidade de um pai de família honesto.
Eles confiavam nele. Amavam-no. E tudo o que ele conseguia pensar era:
“Minha alma está suja. Será que um dia serei digno de tudo isso?”
Foi então que Maria, sempre sensível, percebeu algo diferente.
— Elian… aconteceu alguma coisa? Você não quer ir? — perguntou com ternura.
Elian estremeceu. Sentia-se vulnerável, nu diante do olhar da mãe.
“De novo… estou pesando no coração dela.”
Apavorado com a ideia de entristecê-la, reagiu rápido.
— Não, mãe. É que… eu queria treinar com a senhora hoje. Só isso. — mentiu, e não com perfeição.
Arthur o encarou com atenção.
— Se não quiser ir, pode ficar. Levo só a Manu. Ela vai adorar conhecer o vilarejo.
Elian virou-se lentamente para a irmã.
Emanuelle, até então animada, murchou como flor exposta ao vento seco. Seu sorriso sumiu. Os olhos perderam o brilho. Parecia que o mundo havia tirado dela uma festa prometida.
Elian sentiu uma pontada de culpa.
— Não, pai! — disse, antes que o silêncio se tornasse incômodo. — Eu quero ir, sim. A Manu estava animada. E… eu também quero conhecer o vilarejo.
Voltou-se para a irmã, forçando um sorriso leve.
— Perder um dia de treino não vai fazer mal. Na verdade… é bom descansar um pouco, né?
O sorriso de Emanuelle voltou aos poucos. Pequeno, mas sincero. Maria também relaxou os ombros.
E Arthur assentiu, satisfeito.
— Tudo bem. Terminem de comer. Partiremos logo em seguida. Quanto mais cedo formos, mais seguro será o retorno.
Elian olhou pela pequena janela da casa. O céu já começava a clarear, tingido por tons alaranjados e rosados. Um novo dia havia começado… mas, naquele dia, algo seria diferente.
Era a primeira vez que deixaria os arredores de casa. A primeira vez que veria o vilarejo com os próprios olhos — o mesmo lugar que ouvia falar desde que renascera ali.
Enquanto mastigava o último pedaço do pão duro, Elian não conseguia ignorar o frio na barriga. Talvez fosse só nervosismo... ou talvez fosse pressentimento.
Do lado de fora, Arthur já se levantava, preparando os arreios da carroça improvisada. Emanuelle, animada, ajeitava seus cabelos com as mãos e sorria para tudo.
Elian então se ergueu devagar, pegando o grimório que ainda estava encostado ao seu lado.
Com passos lentos, ele saiu de casa acompanhado da irmã. O ar da manhã era fresco e levemente úmido. A terra ainda carregava o cheiro da noite.
A estrada diante deles começava estreita, de terra batida, ladeada por vegetação rasteira e campos que se estendiam como um mar ondulante de espigas secas.
Elian respirou fundo. E seguiu em frente.
Afinal, era apenas o começo do dia — e algo lhe dizia que ele não voltaria o mesmo.
A estrada que levava ao vilarejo não era bonita. Longe disso.
O chão era esburacado, coberto por terra seca, pedras soltas e pequenas valas abertas pela chuva que já passara há dias. As rodas da carroça rangiam a cada metro, reclamando do terreno irregular.
As árvores ladeavam a estrada em densos agrupamentos. Algumas pequenas, retorcidas e magras. Outras, grandes e de troncos ocos, como se estivessem morrendo lentamente, apodrecendo de dentro para fora. Galhos caídos se acumulavam à margem da trilha, misturados a folhas velhas, mato alto e insetos invisíveis que sussurravam entre si.
Em certos pontos, a floresta parecia fechar-se completamente, formando túneis naturais por onde a luz mal passava. Era uma ambientação úmida, escura e silenciosa, com apenas o som das rodas, os passos de Arthur e as perguntas animadas de Emanuelle rompendo a monotonia opressora.
Em alguns trechos, viam-se restos de antigas casas ou cabanas — construções simples, feitas de barro e madeira, parcialmente desmoronadas ou queimadas. Uma das casas ainda soltava um leve fio de fumaça negra pela base, e não parecia ter sido atingida por um raio.
Elian sentiu o cheiro antes mesmo de vê-la: fumaça seca, misturada com cinzas e algo amargo. Havia mais de uma coluna de fumaça espalhada pelas colinas distantes.
— Papai… por que tem fumaça ali? — perguntou Emanuelle, apontando com o dedo sujo de mingau.
Arthur caminhava à frente da carroça, guiando-a com firmeza. Voltou o rosto apenas o suficiente para responder:
— Algumas casas foram queimadas… às vezes por bandidos, às vezes por feras. Às vezes… as pessoas queimam seus próprios lares antes de irem embora. — A voz era firme, sem dramatização.
Emanuelle não fez mais perguntas.
Arthur não permitirá que os dois filhos caminhassem. Preferiu que ambos seguissem sentados na velha charrete de madeira, enquanto ele mesmo caminhava ao lado, puxando as rédeas do velho burro. Seus pés chutavam o pó seco da estrada, e seu corpo suava com o esforço constante.
Elian, calado, o observava.
“Ele podia muito bem estar aqui sentado com a gente…” pensou. “Mas escolheu caminhar, sem reclamar… só pra que a gente descanse. Será que um dia eu vou ser como ele?”
O caminho seguiu em silêncio por alguns minutos, até que Emanuelle se virou para Elian, os olhos grandes brilhando com curiosidade.
— Eli, você acha que no vilarejo vai ter alguma loja que vende capas mágicas?
— Não sei, Manu… acho que não.
— E espadas? Será que tem espadas grandes, tipo aquelas que brilham no escuro?
— Talvez tenha, mas não acho que brilhem…
— E será que o pão de lá tem gosto melhor que o nosso?
Elian riu. Era impossível não sorrir diante da empolgação infantil da irmã.
Ele a observou, com os cabelos ruivos presos em duas tranças tortas, os olhos curiosos e a alma leve. E, mesmo com toda a melancolia que carregava dentro de si, mesmo com o peso das memórias e do passado que nunca o deixava… havia algo que aquecia seu peito naquele instante.
“Eu amo essa menina. Amo como se fosse minha irmã desde sempre.”
— Manu… o vilarejo provavelmente não tem nada disso. Mas prometo que a gente vai olhar tudo, tá bom?
Ela assentiu com um largo sorriso e se encostou mais no braço dele.
A carroça seguia rangendo, carregada com sacas amarradas de trigo. Eram pelo menos seis sacos grandes, costurados com cuidado por Maria nos últimos dias. Cada um deles representava semanas de trabalho sob sol, de calos nas mãos, de dores nas costas.
“É pouco… mas é tudo que temos para vender.” pensou Elian. “Se Arthur conseguir um bom preço, talvez consigamos comprar farinha extra… ou cobertores para o inverno.”
A estrada parecia não acabar nunca.
Por quase uma hora e meia, seguiram por aquele caminho desigual. O calor aumentava lentamente. O céu clareava, mas mesmo o dia parecendo nascer, a floresta ao redor ainda mantinha seu aspecto sombrio — como se o sol não tivesse coragem de tocá-la.
Quando finalmente avistaram o vilarejo, foi quase por acidente. As árvores cederam espaço pouco a pouco, revelando uma série de casas amontoadas, a maioria feita de pedra bruta e madeira maltratada. Não havia muralhas. Nem sentinelas.
O cheiro foi o primeiro aviso.
Cheiro de mofo, de estrume, de carne salgada e queimada. De sujeira acumulada em ruas de barro e suor velho grudado em roupas nunca lavadas direito.
A vila não era bonita. Era crua, pobre… e viva. Um amontoado de estruturas precárias, com telhados desalinhados, chaminés soltando fumaça, e vozes — muitas vozes — ecoando em meio aos becos estreitos.
Arthur desacelerou o passo e disse:
— Chegamos.
Emanuelle olhou com brilho nos olhos. Elian apenas encarava, sem saber ainda o que sentir.
A carroça rangeu mais uma vez, ultrapassando o arco de pedras rachadas que servia como “entrada” da vila.
E assim, pela primeira vez desde que renasceu, Elian deixou os limites do campo… e entrou no mundo.