Ao entrarem na vila de Brumaria, as primeiras impressões de Elian apenas se confirmaram.
As casas eram todas construídas com barro e madeira velha, com estruturas tortas, telhados desalinhados e janelas empenadas. O cheiro de estrume dominava as ruas, que estavam cobertas por marcas deixadas por cavalos, carroças e lixo acumulado. Não havia nenhum traço de higiene — mas, ali, ninguém parecia se importar com isso.
As ruas não tinham qualquer organização. Serpenteavam de forma desordenada, como se tivessem nascido do cansaço das pegadas humanas, e não de um planejamento. No centro, uma igreja velha de pedra rachada se erguia, mais por teimosia do que por firmeza. Tudo parecia ter sido construído ao redor dela — como se, um dia, aquele lugar tivesse abrigado esperança… e agora não passasse de uma sombra do que já fora.
Elian não sabia exatamente quantas pessoas viviam ali, mas pelo fluxo constante de pessoas, arriscava algo em torno de mil habitantes. Talvez mais. Talvez menos. Mas bastava olhar para entender uma coisa: todos ali eram pobres. Pobres de um jeito que nem ele, mesmo vindo da favela em sua vida passada, ousava comparar.
O que mais se via nas ruas eram pessoas pedindo esmolas, principalmente crianças. Algumas mal vestidas com trapos que mal cobriam os joelhos, outras deitadas no chão, imóveis, como se tivessem desistido de pedir. Suas roupas estavam em estado deplorável — rasgadas, encardidas, cobertas de lama e poeira — e, ainda assim, pareciam vestimentas de todos os dias.
Elian olhava de um lado para o outro, atento aos rostos, aos olhos, ao vai e vem silencioso dos que passavam. Adultos apáticos, vendedores gritando preços e mentiras, e crianças... muitas crianças. Algumas brincando com pedras, outras disputando restos de comida no chão.
“Como essas pessoas são pobres...”, pensou Elian. “Nós vivemos como reis comparados a elas...”
E era verdade. Mesmo com toda a escassez da sua família, mesmo com a sopa rala e os pães endurecidos, ainda havia dignidade na casa onde vivia. Ainda havia calor, risos, amor.
— Papai… o que aquelas crianças estão fazendo? — perguntou Emanuelle, apontando o dedo para duas meninas que, de cócoras, moldavam bolinhos de terra com as mãos pequenas e sujas.
Arthur olhou na direção indicada e suspirou, sem parar de guiar a carroça.
— Estão fazendo bolinhos… para fingir que estão comendo. — respondeu, seco, mas não com frieza. Apenas resignado.
— Elas… não têm comida? — continuou a menina, com os olhos arregalados. — É assim que são feitos os pães da mamãe?
A curiosidade de Emanuelle era inocente, genuína. Mesmo pobres, Arthur e Maria sempre se esforçaram para que os filhos tivessem algo para comer. Nem que fosse apenas um pão duro, ou uma tigela de batatas cozidas em água e sal. Emanuelle nunca havia sentido a verdadeira fome — aquela que corrói por dentro, que adormece os sentidos e transforma até a lama em esperança.
— Não, filha… em casa eu explico melhor. — respondeu Arthur, desviando do assunto. — E lembrem-se: não saiam da carroça. Vamos chegar ao comerciante em breve.
Seguiram adiante por mais alguns minutos, com o ranger da carroça abafando o som dos sussurros de Elian e os estalidos dos cascos do burro contra o chão de barro seco. A vila começou a se abrir um pouco mais — as construções se aglomeravam, criando becos e sombras, enquanto os cheiros se misturavam em uma névoa de suor, fumaça e restos de comida azeda.
Foi então que chegaram ao que se assemelhava a uma feira.
Barracas improvisadas, feitas com lençóis rasgados e pedaços de madeira torta, se espalhavam pela praça principal. Alguns vendiam frutas murchas, outros peixes com cheiro forte demais, que já deveriam ter sido jogados fora. Haviam comerciantes gritando ofertas, mães tentando pechinchar por um punhado de farinha e velhos sentados no chão vendendo pregos, potes rachados e roupas velhas, como se tudo aquilo ainda tivesse algum valor.
Elian observava tudo com olhos sérios, o grimório ainda bem escondido entre os panos da carroça. Ele se manteve calado. Tudo ao seu redor gritava pobreza, abandono, dor — e havia algo dentro dele que gritava junto.
Mas ele precisava ser forte. Por Emanuelle. Por sua nova família. Por si mesmo.
E, em meio ao caos, à miséria e aos gritos da feira, Elian desceu da carroça com passos silenciosos.
Mal sabia ele… que o verdadeiro teste daquele dia ainda estava por vir.
Enquanto caminhavam pela feira, os passos de Arthur os levaram até uma das barracas mais organizadas do local — uma estrutura de madeira firme, coberta por um pano grosso e limpo em comparação às outras ao redor. Era ali que o comerciante Roque fazia seus negócios. Um homem de estatura baixa, corpo roliço e semblante astuto, aparentando pouco mais de quarenta anos. Seus olhos e cabelos castanhos combinavam com o tom terroso da barraca que dirigia com mãos práticas.
Arthur fez um cumprimento cordial.
— Trouxe seus filhos hoje, Arthur? — sibilou Roque com um sorriso enviesado, lançando um olhar curioso a Elian e Emanuelle.
— Bom dia, senhor Roque. Como andam as coisas? — Arthur estendeu a mão com naturalidade, e o comerciante a apertou com firmeza. — Trouxe os dois para conhecerem a vila. Eles nunca saíram da fazenda… mas começo a pensar que foi uma péssima ideia.
— É… as coisas não estão fáceis — respondeu Roque, lançando um olhar distante para duas crianças e uma mulher deitada a poucos metros dali. Os três pareciam exaustos, os olhos fundos e os corpos largados no chão de terra, como se já não esperassem mais nada do mundo.
— A crise parece se espalhar mais a cada semana — comentou Arthur, a voz embargada por um misto de preocupação e impotência. Depois, desviando os olhos para sua carroça, voltou ao assunto principal. — Trouxe algumas sacas da última colheita. São boas. De grãos fortes. Serve para farinha, cerveja, o que quiser.
Roque caminhou até a carroça, examinando com experiência as seis sacas. Desamarrou uma delas e afundou a mão no trigo, esfregando os grãos entre os dedos com uma expressão de aprovação.
— Estão bonitos. Foi você e o Anthony?
— Sim. O garoto tem talento pra terra. Vai ser um fazendeiro melhor do que eu algum dia. — Arthur sorriu com orgulho, os olhos brilhando. Ali estava um pai que acreditava no filho.
Roque sorriu também — mas foi um sorriso vazio, puramente comercial.
— E quanto está pedindo?
— Duas Coronas por saca. Doze no total. — Arthur respondeu direto, firme.
Roque arqueou as sobrancelhas.
— Dois? Isso tá puxado… Faço 1.6 e levo agora.
— Não. 1.8. É o mínimo justo por essa colheita. Está limpa, sem fungos, e bem seca. — A voz de Arthur agora carregava o tom firme de um homem que conhecia seu próprio valor.
Roque hesitou. Avaliou as sacas mais uma vez, coçou o queixo.
— Tá certo. Fechado. 1.8 por saca.
Arthur assentiu.
— O senhor fez um bom negócio.
Começou então a descarregar a carroça. Elian observava em silêncio, desejando poder ajudar, mas seu corpo infantil ainda não lhe permitia carregar peso. Permaneceu ali, imóvel, observando a movimentação das pessoas ao redor, o som das vozes, o cheiro agridoce das frutas maduras demais. Estava tão imerso em seus pensamentos — calculando, tentando entender quanto aquele valor representava em dinheiro real — que nem percebeu o silêncio repentino ao seu lado.
Foi só quando Arthur voltou, limpando as mãos e ajeitando a camisa, que notou.
— Onde está Emanuelle? — perguntou o pai, os olhos varrendo o entorno com urgência.
Elian olhou ao redor. A pequena não estava ali.
— Aqui… — murmurou, mas a palavra morreu nos seus lábios ao perceber que ela havia desaparecido.
O desespero o tomou imediatamente.
“Como eu pude deixar isso acontecer? Eu sabia! Sabia que ela era só uma criança, que poderia se perder num lugar assim…!”
A culpa veio como um soco no estômago. Sua mente voltou ao tempo, para a dor de perder Luciana. A imagem da irmã morta o atravessou com uma violência brutal.
Arthur não pensou duas vezes.
— Fique aqui. Eu vou procurá-la.
— Tudo bem. — respondeu Elian com uma mentira apressada, sufocada pela culpa.
Assim que Arthur sumiu entre as barracas, Elian saltou da carroça e partiu em direção oposta. Ele não iria esperar. Não poderia. Não depois do que aconteceu em sua vida passada. Não depois da promessa que havia feito.
Emanuelle estava em algum lugar daquela feira miserável, e ele a encontraria.
Nem que precisasse matar de novo para isso.
Enquanto procurava desesperadamente por sua irmã, Elian sentia o coração martelar no peito como um tambor de guerra. Cada passo pela vila fétida, cada rosto estranho que passava por ele, tudo era um borrão. A angústia apertava-lhe o estômago como uma garra invisível.
E então ele ouviu.
Vozes, vindo de um beco estreito e mergulhado em sombras. Três — duas masculinas, uma feminina. Os garotos deviam ter dez, talvez onze anos. A menina… oito, talvez nove.
A cada passo que dava na direção do beco, as vozes ficavam mais nítidas. Até que reconheceu.
— Pare, me deixe ir embora. Por favor, me solte!
A voz era de Emanuelle.
Assustada. Desesperada.
— Não! — respondeu um dos garotos, com tom cruel. — Vamos brincar com você um pouco. Depois… talvez você volte pra sua família.
— Isso mesmo! — disse o outro, entre risos que mais pareciam grunhidos de hienas.
Elian parou por um segundo. O mundo pareceu girar. O ar desapareceu.
— Não, não, não! — Emanuelle gritou. A voz dela quebrou. Chorava. Suplicava. — Elian! Socorro! Me ajuda!
Foi como se o próprio inferno tivesse se aberto dentro dele.
Sem pensar, sem hesitar, Elian correu. Cada músculo do seu corpo se incendiou com adrenalina. O chão irregular da vila sacudia sob seus pés, mas ele nem notava.
Dez segundos.
Foi o tempo entre o grito e a chegada.
Quando dobrou a esquina do beco, o que viu acendeu um fogo antigo — um ódio que ele havia enterrado, mas nunca esquecido.
Os dois garotos arrastavam Emanuelle pelos braços. Um deles tapava sua boca, o outro a puxava com força. Ela se debatia, lágrimas escorrendo pelo rosto, os olhos arregalados em puro terror. No lado direito de sua face, uma mancha vermelha começava a inchar — um tapa? Um soco?
O beco era úmido e fedido, o cheiro de esgoto e fezes impregnando o ar. O mofo recobria as paredes como uma pele podre. A luz não alcançava ali. Era um lugar onde a maldade se escondia com facilidade.
Emanuelle o viu.
E seus olhos mudaram. O desespero cedeu lugar ao alívio. Ao ver Elian, ela chorou ainda mais — mas agora, havia esperança no choro.
Elian parou por um segundo. Sentiu uma dor antiga explodir no peito.
Luciana.
Outra menina pequena. Outro beco escuro. Outro grito que ele não conseguiu alcançar a tempo.
Mas desta vez… ele estava ali.
— Soltem minha irmã! — rugiu com uma fúria que não cabia em seu pequeno corpo.
Os dois garotos se viraram.
E viram apenas um menino franzino de cinco anos, descalço, sujo de poeira e suor.
E riram.
Riram como quem vê um rato tentando enfrentar lobos.
Mas eles não sabiam.
Não sabiam que aquele corpo pequeno abrigava uma alma ferida, forjada em ódio e lapidada em sangue. Que aquele garoto passara cinco anos absorvendo tudo o que podia — magia, disciplina, dor.
Não sabiam que, ao tocarem em Emanuelle, haviam assinado sua própria sentença.
Elian apertou os punhos. Sentiu o calor subir do esterno — aquela sensação que sua mãe havia ensinado. A energia começava a se mover, instintiva. Quente. Feroz.
Os garotos largaram Emanuelle e partiram em sua direção, achando que podiam assustá-lo.
Eles não sabiam…
Mas estavam prestes a descobrir.
Como eles poderiam assustar alguém que, em outra vida, teria sido conhecido como um serial killer?
Claro, eles não sabiam disso.
Ninguém sabia.
Nem mesmo a irmã que ele amava.