O Amor Que Me Arrasta de Volt II.

Elian avançou. O sangue pulsava alto em seus ouvidos. O beco úmido e escuro apertava ao redor deles como se o mundo inteiro tentasse sufocar sua fúria.

O primeiro golpe foi seu.

Um soco direto no rosto do garoto de cabelos castanhos e olhos negros. O estalo seco do punho acertando o maxilar ecoou entre as paredes sujas. O garoto cambaleou, surpreso, mas revidou com um soco brutal na lateral da cabeça de Elian, que deu alguns passos para trás, desnorteado.

Elian rangeu os dentes. Nunca havia treinado seu físico neste mundo — ao contrário da Terra, onde aprendera na marra como sobreviver a lutas de rua. Aprendeu a bater… e principalmente a não morrer.

O segundo garoto veio correndo com tudo, mirando em seu peito. Elian desviou com um giro seco do corpo, e o moleque passou direto, batendo com força contra a parede de pedra. O som do impacto foi como o de uma cabeça de melancia rachando.

Mas não havia tempo.

Elian se lançou novamente contra o de cabelos castanhos. Trocavam socos. Cada golpe era um baque abafado, ressoando com raiva. Elian era menor. Mais fraco. E, em segundos, estava em desvantagem.

O garoto que batera a cabeça se levantou, furioso, e o agarrou por trás.

— Lixo. — murmurou com ódio, antes de arremessar Elian ao chão como se fosse um saco de trigo podre.

O impacto tirou-lhe o ar. O mundo girou.

Não adiantava saber lutar, se seu corpo era frágil.

Ele amaldiçoou sua estatura, seus músculos inexistentes, sua escolha de focar apenas na magia.

E, enquanto tentava se levantar, veio o primeiro chute. Um direto no estômago.

O mingau e o pão duro que comeram naquela manhã voltaram com força, vomitados no chão sujo.

Depois veio o chute na cabeça. O mundo escureceu por um segundo. O som ficou abafado, como se estivesse debaixo d’água.

Mais chutes. Na costela. Nas pernas. No peito.

Elian sentia tudo. Cada osso que doía, cada respiração falha, cada impulso de sobreviver sendo esmagado.

E então… ouviu.

— Você achou que conseguiria proteger sua irmã? — zombou o garoto de cabelos castanhos, rindo.

— Você é fraco. É um inútil. Mas vou ser misericordioso… — ele se abaixou ao lado do corpo de Elian, sussurrando com veneno — Vou deixar você assistir enquanto a gente se diverte com sua irmãzinha. E depois… bom, depois vocês dois morrem.

Elian viu os olhos de Emanuelle. Ela chorava. Tremia. Paralizada de medo.

Foi quando duas imagens se fundiram.

Luciana, de olhos abertos e sem vida, cercada por sangue.

Emanuelle, viva… mas prestes a ser destruída.

Algo se partiu dentro dele.

O que jazia enterrado sob camadas de fingida redenção, agora emergia — faminto.

Mas, dessa vez, não era por prazer. Não por vingança.

Era por amor.

— Por que você está hesitando em matar? — a voz dentro dele sibilava como uma serpente conhecida. — Você já fez isso tantas vezes… e por bem menos. Por quê? Agora que é justo? Agora que é necessário? Agora que é por ela?

O sangue escorria pela testa, mas Elian nem sentia mais dor. Algo mais antigo e mais forte havia despertado. Uma presença fria, controlada — a mesma que lhe tomava quando a lâmina mergulhava fundo e ele sentia o calor da vida esvaindo-se das vítimas.

Mas agora, era diferente.

Não havia prazer.

Havia propósito.

Ele apertou os punhos ensanguentados. Seu corpo tremia, mas não de medo. Era energia. Era fúria.

— Manu… — murmurou com a voz fraca. — Feche os olhos. Vire-se. Por favor… não olhe para cá.

Emanuelle, em choque, apenas obedeceu. Tremendo, virou de costas, enquanto as lágrimas caíam silenciosas por seu rosto.

O beco, até então só escuro e imundo, agora se tornava o túmulo de uma escolha.

A partir daqui… Elian deixaria de hesitar.

Porque há coisas que valem mais que a própria alma.

E proteger Emanuelle era uma delas.

Uma energia fria escorreu do esterno de Elian como se algo estivesse despertando do fundo de sua alma — não algo novo, mas algo antigo, familiar… esquecido.

Ele se lembrou da voz de Maria, suave e firme, durante os primeiros treinos:

— A magia nasce do sentir. Do imaginar. Do tornar real aquilo que os olhos não veem, mas o coração reconhece.

E Elian... sentia.

Sentia cada dor em seu corpo. Cada parte quebrada. Sentia o gosto metálico do sangue na boca — o mesmo gosto que provou ao morrer esfaqueado na Terra.

Mas o que mais sentia... era o choro abafado de Emanuelle atrás dele.

Durante esses cinco anos, mesmo com as limitações físicas da infância, ele havia treinado. Aprendeu a gerar pequenas esferas de fogo, aprendeu a fundi-las ao vento para criar redemoinhos destrutivos. Podia lançar chamas do tamanho de uma bola de beisebol com força suficiente para rasgar madeira.

Mas onde mais se destacava era na terra.

Conseguia mesclar terra e vento para disparar lanças rotativas. Conduzir barro sob os pés de inimigos. Criar armadilhas ocultas a metros de distância. Anthony, uma vez, testemunhou seu poder — e mesmo sem dizer uma palavra, construiu um espantalho secreto para que Elian pudesse treinar sem ser visto.

Agora, ele estava ali. No beco escuro. Com o cheiro de esgoto misturado à carne suada de adolescentes violentos. Com o corpo coberto de hematomas. Com a alma à beira do abismo.

Elian se levantou.

Caiu uma vez, mas se ergueu de novo, mesmo cambaleando. A dor se espalhava como fogo em brasa por seus ossos, mas o que queimava mais era algo diferente… era a sede.

Seus olhos dourados se acenderam com uma luz antinatural. Um brilho silencioso, como uma vela dentro da escuridão.

— Vocês… — murmurou, cuspindo sangue. — Fizeram uma das poucas pessoas que eu amo neste mundo chorar.

A voz de Elian era gélida.

— Eu não terei misericórdia nenhuma.

Os dois garotos pararam. Estavam a menos de dois metros dele, mas algo naquela voz... não parecia vir de uma criança.

— Quem você pensa que é? — gritou o garoto de cabelos castanhos. — Você não é ninguém!

Mas antes que pudessem avançar, uma energia negra crepitou em torno do corpo de Elian. Era como uma fumaça densa que se arrastava por sua pele, como uma aura corrompida — ou uma lembrança viva de quem ele fora.

Seus olhos brilhavam.

E, nesse momento, eles souberam.

Elian usava magia.

O pânico tomou os garotos, mas não havia tempo para arrependimentos. Um deles correu — e caiu direto numa poça de lama criada a um metro de distância.

Seu rosto afundou no barro, cuspindo terra. Quando ergueu a cabeça, viu a lança de pedra se formar, girando em altíssima velocidade com o auxílio do vento.

— P-p-por favor… eu juro, nunca mais—

— Eu não me importo com seu perdão — interrompeu Elian, com a frieza de um carrasco. — Eu quero vocês mortos.

E atirou.

A lança atravessou o crânio do garoto como uma flecha quente em manteiga. Um baque seco. Sangue e miolos salpicaram a parede do beco como tinta num quadro grotesco.

O outro menino — o de cabelo castanho — arregalou os olhos, horrorizado.

— M-monstro! — gritou.

— Sim — respondeu Elian, sua aura pulsando. — Eu sou um monstro. E vocês me trouxeram de volta.

Seu rosto se contorcia em algo entre dor, fúria… e prazer contido. Mas não o mesmo prazer de antes. Era justiça. Justiça manchada, sangrenta — mas ainda justiça.

— Eu tentei me redimir… juro que tentei. Quis uma vida nova, uma alma limpa. Mas então… surgem vermes como vocês.

Ele olhou para Emanuelle. Ela estava de costas, tremendo, com as mãos nos ouvidos.

— Se for para protegê-la — murmurou, com a voz embargada pelo ódio — então sim, eu me torno de novo o monstro que fui.

O garoto tentou fugir, correndo na direção oposta. Mas seus pés afundaram na lama. Caiu de frente para Elian.

Foi a última escolha errada que fez na vida.

Elian montou sobre ele como um predador feroz. Os olhos negros do garoto se arregalaram quando sentiu os punhos socarem seu rosto sem parar.

Um.

Dois.

Três.

Sangue voava. Dentes se soltavam.

Então, Elian canalizou uma chama minúscula no dedo indicador e, sem hesitar, enfiou-a no olho do garoto.

O grito foi abafado por uma pedra que Elian criou na boca do menino, vedando qualquer som.

A dor explodia. Mas Elian não parou.

Criou uma bola de fogo. E outra. E outra.

Jogava sobre o corpo do garoto como se acendesse um cadáver num ritual de condenação. O cheiro de carne queimada se espalhou pelo beco, misturado com fezes, lama e fumaça.

O garoto estava agonizando, já inconsciente, mas Elian não queria apenas dor.

Queria fim.

Criou uma última lança de pedra, fina, afiada, precisa.

— Por ela — sussurrou.

E a enfiou direto no coração.

O corpo estremeceu. Depois, silenciou.

Emanuelle, de costas, ainda não havia se virado. Ainda com as mãos nos ouvidos. Mas seu choro… esse nunca cessou.

E o coração de Elian… jamais voltaria a ser o mesmo.

Antes que se aproximasse de Emanuelle, Elian respirou fundo. O cheiro de carne queimada ainda pairava no ar, misturado à umidade pútrida daquele beco. Se ela sentisse aquilo... se ela visse os corpos...

Não. Não podia deixar que ela carregasse mais horrores.

Movendo as mãos com precisão, manipulou os elementos. Uma leve rajada de vento espalhou o fedor, dissipando parte do cheiro metálico e amargo que impregnava o ambiente. Depois, concentrou-se em criar uma fina cortina de água, limpando o sangue em sua roupa, nas mãos, no rosto. Por fim, secou-se com calor controlado, até não restar sinal visível da violência — pelo menos por fora.

Em seguida, virou os corpos dos garotos de bruços, tapando com terra os buracos abertos por suas lanças. O sangue restante foi coberto com uma camada de lama escura, disfarçando os traços do massacre. Não era um enterro digno, nem um perdão — era apenas o instinto de alguém que sabia esconder um crime.

Emanuelle estava de costas para tudo. Tremia, sozinha, com os braços ao redor do próprio corpo, os olhos apertados, as mãos tapando os ouvidos.

Elian hesitou. Sua mão ainda ardia com a lembrança do fogo, do sangue, da morte. Uma parte dele dizia que não deveria tocá-la… que agora ele era sujo demais até para isso.

Mas ela era sua irmã.

Ele deu um passo.

— Manu? — chamou baixinho.

Ela não respondeu.

Com cuidado, pousou a mão em seu ombro.

Ela deu um salto, virando-se com os olhos arregalados, o rosto tomado pelo pânico. A imagem fez o coração de Elian doer. Ele se amaldiçoou por deixá-la ver, por tê-la feito sentir medo… até dele.

Mas então, sem aviso, Emanuelle se lançou para frente e o abraçou com força, apertando-o com o corpo inteiro.

— Está tudo bem, Manu… eu resolvi o problema, viu? — disse ele com a voz baixa, apontando discretamente para os corpos virados. — Eles estão dormindo. Logo vão acordar.

Mentiu.

Claro que mentiu.

Mas o que seria da infância dela se soubesse da verdade?

— Eu tive medo, Eli… muito medo… — sussurrou, com a voz embargada de choro. — Mas quando eu te vi… eu sabia que você ia me proteger.

Elian sentiu os olhos arderem. A raiva, o nojo, a dor, tudo foi abafado por aquela frase tão simples.

— Sempre, Manu. Sempre vou proteger você — respondeu, afagando os cabelos dela.

Ficaram ali por um tempo, apenas abraçados. Emanuelle soluçava em silêncio, o rosto enfiado no peito do irmão.

Elian fechou os olhos.

Pela primeira vez desde que acordara naquele mundo… ele teve certeza do que faria da própria vida.

Protegeria ela e sua família. Com tudo o que tivesse. Com tudo o que fosse.

— Vamos encontrar o papai — disse enfim, com a voz firme. — Ele deve estar preocupado.

Ela assentiu, limpando as lágrimas com as costas da mão. Seus olhos ainda estavam vermelhos, mas havia um resquício de alívio ali.

Juntos, deram as costas aos corpos sem nome.

Saíram do beco. Caminharam devagar, como se pudessem deixar para trás o horror. Mas não deixaram. Ninguém deixa.

Os corpos ficaram. O sangue, também. Mas o pior... o pior ficou por dentro.

Nasceram duas coisas naquele dia.

O trauma em Emanuelle.

E algo dentro de Elian... algo que ele acreditava ter deixado no outro mundo.

Um gosto antigo, amargo e cruel: o gosto da morte.

O que ele se tornará, naquele instante, talvez nem ele soubesse.

Mas uma coisa era certa:

O que ele se tornará… somente o tempo saberá dizer.