Enquanto Elian e Emanuelle saíam do beco, os passos eram lentos e vacilantes. A pequena mão de Emanuelle apertava a dele com tanta força que parecia querer fundir suas peles. Tremia. Tão frágil, tão assustada, e ainda assim… agarrada a ele como quem segura a última luz antes do abismo.
Elian a olhou de lado, com o rosto machucado e o peito ainda arfando. Ela era um pouco mais alta que ele, mas naquele momento parecia tão menor. Tão indefesa. E mesmo assim, era ela quem se agarrava a ele como se acreditasse que nada mais poderia lhe acontecer.
Ele ia dizer algo. Qualquer coisa que soasse reconfortante, mas uma voz os interrompeu:
— Elian? Emanuelle?
Elise surgiu entre as sombras da rua, o passo calmo, mas os olhos agitados. Tinha acabado de encontrar Arthur — e a preocupação no olhar dele a fizera correr o vilarejo inteiro.
Ela os encarou de cima a baixo.
— Eu ia perguntar se vocês estão bem… mas acho que seria uma pergunta tola, não é? — disse, observando os hematomas que coloriam o rosto de Elian como uma pintura grotesca.
Ele mancava. Um dos olhos quase fechado, o sangue seco preso no canto da boca. A mão direita inchada, o dedo indicador torto num ângulo errado. Uma costela trincada. O corpo gritava, mas Elian estava ali — de pé.
Já Emanuelle não dizia nada. Apenas tremia. O rosto marcado por um hematoma na bochecha direita. As mãos pequenas seguravam a barra da camisa de Elian como se fossem parte dela.
— O que houve? — perguntou Elise, agora em tom mais baixo, quase sussurrado. — O que aconteceu com vocês dois?
— Dois meninos me arrastaram... — disse Emanuelle, baixinho. A voz embargada. — Eu vi uma barraca com tangerinas… queria pedir ao papai pra comprar pra mamãe... então eles me puxaram pra dentro do beco…
Ela engoliu o choro, mas as lágrimas desciam mesmo assim. O som de seus soluços era o único barulho naquele canto da vila. Ela apertou ainda mais os dedos de Elian, como se precisasse ter certeza de que ele ainda estava ali.
— E Elian apareceu... e me salvou — completou, enterrando o rosto na camisa ensanguentada do irmão.
Elise se agachou diante deles. Tocou de leve a cabeça de Emanuelle e, em seguida, olhou direto nos olhos de Elian.
— E o que você fez? — perguntou. Não havia julgamento em sua voz. Apenas curiosidade.
Elian hesitou. Seus olhos dourados evitaram os dela por um instante, mas então assentiu com a cabeça e respondeu, firme — com a mesma mentira piedosa que contou à irmã:
— Eles… estão dormindo. Dormirão por muito tempo.
Elise o encarou por um instante, em silêncio. Então sorriu, com um brilho curioso no olhar.
— Dormindo, é? Entendi.
Ela se ergueu com lentidão e estalou os dedos.
— Fiquem aqui. Já volto.
Desapareceu beco adentro.
★★★
Lá, entre o mofo e a escuridão, os dois corpos jaziam jogados como bonecos quebrados. A aura da morte ainda impregnava o ar. Elise os encarou em silêncio por alguns segundos.
— Tão jovens… tão tolos.
Fez um gesto com as mãos. Uma chama laranja surgiu. Em seguida, azul. As chamas se moldaram em serpentes flamejantes, dançando em torno de seus pulsos.
Apontou para os corpos.
— Queimem. E levem com vocês esse erro para o esquecimento.
As chamas os consumiram em silêncio. Não restaria osso, nem cheiro. Apenas cinzas. E até elas se dispersariam ao vento.
Quando voltou até Elian e Emanuelle, havia uma sombra de decisão em seu olhar.
— Vamos. Seu pai está desesperado, e vocês precisam de cuidados.
E enquanto caminhavam, Elise pensou consigo mesma:
“Talvez seja hora de ter um aprendiz.”
Elian apenas assentiu, e Emanuelle, ainda agarrada ao braço dele, caminhava sem soltar. Os dois seguiram pela vila… deixando para trás os corpos, as dores, os gritos abafados — mas não os traumas.
Elian e Emanuelle caminhavam lado a lado, sem dizer uma única palavra. Mas não era necessário — o silêncio entre eles falava mais do que qualquer frase poderia expressar. Tudo o que queriam, naquele instante, era a presença um do outro.
Elian queria proteger.
Emanuelle queria ser protegida.
O peso daquele momento ainda pulsava nos passos que davam. O beco parecia ter ficado para trás, mas a sensação de terror que o preenchia seguia com eles, como uma sombra grudada na pele.
Elian sabia o que havia acontecido ali — e, pior, sabia o que quase havia acontecido. Não apenas sua vida, mas a vida e a pureza de Emanuelle poderiam ter acabado entre aquelas paredes úmidas e escuras.
Ele a salvara. Mas por pouco.
“Graças aos deuses… eu cheguei a tempo.” — pensou, com os punhos cerrados.
“Se eu tivesse demorado mais um segundo…”
O pensamento o corroía, embora ele soubesse que não adiantava se perder nos “e se”. A única certeza que lhe restava era uma:
— Eu matei... mas não me arrependo.
Foram dois garotos. Dois garotos que nunca mais voltariam para casa. Dois garotos que talvez também fossem filhos de alguém.
Mas para Elian, aquilo não importava.
Antes as mães deles chorarem, do que Maria.
Antes aquelas mãos se sujarem, do que Emanuelle ser corrompida.
Por mais que Elian desejasse — de verdade — uma vida tranquila, longe de violência, de sangue, de morte... agora ele sabia.
O mundo não o deixaria em paz.
A verdade o havia encontrado mais uma vez, mesmo na forma de crianças.
E o obrigou a matar.
Elise caminhava ao seu lado, oferecendo o ombro para apoiá-lo. Seus olhos observavam Elian com atenção, mas não havia julgamento neles. Havia respeito.
Respeito e... um sutil lampejo de curiosidade.
— Esse garoto... — pensou ela.
— Mesmo machucado, mesmo em desvantagem… ele venceu. E mais do que isso… ele protegeu. Sem hesitar no fim.
Mesmo que tivesse hesitado por um instante, no fim, Elian havia feito o que precisava ser feito. Com precisão.
E agora… ela se perguntava:
— Por que não torná-lo meu aprendiz?
A ideia antes absurda, agora fazia sentido. Elise já havia recusado filhos de nobres, de famílias ricas… Mas Elian, mesmo franzino, ferido e manchado de sangue, mostrava algo que os outros não tinham: convicção no que importava.
Caminharam mais alguns minutos até avistarem Arthur — e quando seus olhos se encontraram, o mundo pareceu congelar por um instante.
Arthur estava parado no meio da rua, olhos arregalados, peito arfando, como se tivesse corrido a vila inteira.
Quando viu os filhos, correu até eles num impulso quase desesperado.
Emanuelle soltou a mão de Elian pela primeira vez desde que saíram do beco — mas só para se jogar nos braços do pai.
Ela chorava.
Não como uma criança birrenta, nem como alguém machucada no joelho.
Ela chorava com o corpo todo. Com os ombros tremendo, com a voz presa, com a alma assustada.
Arthur os abraçou com firmeza, tentando esconder a angústia no próprio peito. Mas bastava olhar para Elian para perceber que algo muito errado havia acontecido.
O rosto do menino estava inchado, arroxeado de hematomas. O canto da boca ainda sangrava. Um dos dedos da mão direita estava inchado e torto — claramente quebrado. O corpo, coberto de arranhões e marcas. Ele mancava.
Arthur olhou para Elise, buscando desesperadamente uma resposta.
Ela assentiu com seriedade.
— Vamos para minha casa. Lá eu explico tudo. E Elian precisa de tratamento o quanto antes. — disse, com uma urgência contida na voz.
Arthur não discutiu. Apenas concordou, o rosto carregado de preocupação.
Levantou Elian no colo, mas o menino pediu que não o fizesse. Não queria parecer fraco. Então, com esforço, subiu sozinho na carroça.
Emanuelle subiu logo em seguida e, instintivamente, segurou sua mão mais uma vez. Forte. Como se quisesse ter certeza de que ele ainda estava ali.
Arthur ajeitou os dois na carroça, e então seguiu ao lado de Elise, puxando o velho burro pelas rédeas. O caminho até a casa da curandeira seria breve… mas as feridas daquele dia, Elian sabia, levariam muito mais tempo para curar.
★★★
O caminho até a casa de Elise foi feito em silêncio.
Arthur caminhava à frente, conduzindo a carroça com passos firmes, mas apressados. Elise seguia ao lado, de tempos em tempos lançando olhares preocupados para Elian, que ainda mantinha a expressão endurecida, embora seus olhos estivessem turvos de dor.
Emanuelle permanecia colada a ele, com as mãos entrelaçadas nas dele como se tivesse medo de que, se soltasse, ele desapareceria.
A vila de Brumaria parecia mudar de rosto conforme se afastavam da feira central. As ruas de barro e estrume ficaram para trás, dando lugar a caminhos de terra mais batida e menos tortuosos. As casas, antes tortas e sujas, começaram a ganhar traços mais simétricos, com muros baixos, portas de madeira bem tratada, e pequenas cercas de jardim.
Não era uma área nobre, mas era… diferente.
Melhor.
Era como se ali, por alguma razão esquecida, o tempo passasse mais devagar.
— Essa é a parte alta da vila — comentou Elise, como se sentisse a curiosidade crescer em Elian. — Aqui vivem os artesãos, alguns curandeiros… e os poucos que ainda conseguem vender algo digno nessa vila.
A casa de Elise surgiu como um sussurro em meio à decadência de Brumaria.
Diferente das construções tortas do centro da vila, a casa dela se erguia com dignidade. Tinha dois andares, feitos em madeira escura e pedras bem encaixadas, com janelas largas de vidraça azulada que refletiam o céu opaco daquele dia.
À frente, um pequeno jardim se abria como um refúgio verde — flores de pétalas longas e delicadas dividiam espaço com ervas medicinais, arbustos bem podados e uma árvore solitária de folhas finas, que balançava suavemente ao vento.
Elian olhou para aquilo e pensou, quase sem querer:
— É como se ela vivesse num lugar que não pertence à vila…
Havia beleza ali. Não a beleza ostentada dos castelos, mas a beleza simples de quem cuidava.
Era como Maria cuidava das roupas remendadas.
Como Arthur cuidava da terra.
Arthur parou a carroça próximo ao portão de madeira escura. Elise foi a primeira a descer, empurrando com cuidado a cerca e abrindo passagem.
Arthur pegou Emanuelle no colo — ela não queria soltar Elian, mas ele a convenceu com um sussurro gentil. Depois estendeu a mão para o filho, que recusou com a cabeça, preferindo descer sozinho, mesmo mancando.
Subiram os três degraus da varanda e entraram. A porta rangeu suavemente, como se também respeitasse o silêncio do momento.