Convicção selada pelo sangue II.

O interior da casa de Elise era outra coisa.

Logo ao entrar, um perfume doce e profundo invadia o ar — uma mistura de incenso de mirra, erva-cidreira e um leve toque amadeirado de alecrim queimado. O cheiro era antigo e reconfortante, como o colo de uma avó que entende dores que ninguém mais entende.

As paredes eram de madeira escura, bem tratadas, cobertas por estantes que iam do chão ao teto, todas abarrotadas de frascos, potes de barro, vidros com líquidos de cores estranhas, folhas secas e raízes amarradas com cordões vermelhos.

Ao fundo, uma lareira acesa lançava sombras trêmulas sobre um tapete de couro desgastado. Móveis simples e bem cuidados preenchiam o espaço: duas cadeiras acolchoadas, uma poltrona larga, uma mesa de carvalho com marcas de queimaduras e cortes — usada tanto para refeições quanto para poções.

Pendiam do teto ramos de ervas secando: hortelã, arruda, verbena e outras que Elian não sabia nomear. Pequenos sinos de ferro tilintavam suavemente quando o vento entrava pelas janelas abertas, produzindo uma melodia baixa, quase mágica.

— Entrem. Sentem-se onde quiserem. — disse Elise, com a voz suave, já indo em direção a um armário de madeira com puxadores de bronze.

Elian deu um passo hesitante e se deixou cair sobre a poltrona. Seu corpo parecia reconhecer aquele espaço como seguro — como se, por fim, pudesse descansar.

Emanuelle se sentou ao lado, sem soltar sua mão.

Arthur entrou por último e fechou a porta devagar, como se não quisesse que o mundo lá fora escutasse o que estava prestes a ser dito.

A casa de Elise, naquele momento, não era apenas um lugar.

Era um santuário.

— Arthur — chamou Elise, com a voz firme, mas suave — leve Elian até a enfermaria. Fica nos fundos da casa.

Arthur assentiu em silêncio. Levantou-se imediatamente da cadeira e se aproximou do filho, que já tentava se erguer por conta própria.

— Eu consigo ir sozinho... — murmurou Elian, com esforço. Mas assim que tentou se levantar, sentiu as pernas cederem. Um formigamento cortante subiu pela espinha, e os músculos, antes tensionados pela adrenalina, agora se tornavam apenas dor.

— Entendeu agora? — disse Elise, encarando-o com olhos sérios. — Sua adrenalina baixou, seu sangue esfriou… e o incenso ajudou a relaxar seus músculos. Você não vai conseguir dar dois passos.

Ela já caminhava à frente, sem esperar resposta.

Arthur, com um suspiro pesado, inclinou-se e tomou o filho nos braços. Elian gemeu baixinho ao ser erguido, sentindo o corpo gritar em cada osso e músculo machucado. A dor era aguda, mas não maior que o cansaço.

Os dois seguiram o corredor interno da casa, cruzando uma pequena porta de madeira clara.

A enfermaria ficava no fundo, a poucos metros da entrada principal.

— Eu vou também! — exclamou Emanuelle, pulando da cadeira.

— Espere aqui. — respondeu Elise, virando-se com gentileza, mas firmeza. — Ele precisa de tratamento. Logo poderá vê-lo.

— Mas... — A voz dela tremia. Ainda havia medo em seus olhos.

Antes que começasse a chorar, Elian ergueu a cabeça com esforço e disse:

— Manu... fica aqui, por favor. Está tudo bem. Logo eu volto. — Ele forçou um meio sorriso. — Prometo.

Mesmo relutante, Emanuelle assentiu com um aceno silencioso. Voltou a se sentar, os olhos grudados nas costas do irmão até que ele desaparecesse pelo corredor.

★★★

A enfermaria não era luxuosa. Não era sequer bonita, nos padrões da terra que Elian conhecera em sua vida passada — mas havia ali uma ordem silenciosa, um cuidado nos detalhes.

Havia quatro leitos, divididos por cortinas de linho grosso, tingidas num verde pálido. As camas eram simples, mas claramente mais confortáveis do que a esteira de palha que Elian usava em casa.

O colchão, feito de um material mais macio, afundou levemente sob o peso de seu corpo quando Arthur o deitou com delicadeza no leito central.

Ao lado de cada cama, pequenos criados-mudos de madeira escura sustentavam jarros de barro com água, copos do mesmo material, panos limpos e pequenos frascos com rótulos manuscritos.

As janelas estavam abertas, permitindo a entrada de luz natural e ventilação suave. Cortinas de algodão fino balançavam preguiçosamente ao som de um sino preso à parede, que tilintava de vez em quando.

O mesmo aroma que preenchia o resto da casa estava ali: incenso de mirra, folhas queimadas de sálvia e o perfume discreto de alguma flor que Elian não conseguiu identificar. Era um cheiro de cura, mas também de lembrança. Algo ancestral.

— Coloque-o na cama do meio — disse Elise, gesticulando com a mão enquanto já começava a recolher alguns frascos e panos de dentro de um armário embutido. — Vou começar pelos ferimentos mais graves.

Arthur acomodou o filho com cuidado. Elian soltou o ar pela boca, aliviado por finalmente repousar. Mas o que ele sentia naquele momento era mais que exaustão física.

Era como se, depois de anos, estivesse enfim sendo acolhido por algo além do amor da família.

Como se… alguém estivesse cuidando dele sem esperar nada em troca.

Elise se aproximou com uma tigela de cerâmica fumegante entre as mãos.

— Isso vai arder. — avisou. — Mas depois… vai aliviar.

Elian apenas assentiu, os olhos fixos no teto de madeira, onde um ramo seco de arruda pendia em silêncio, como uma sentinela invisível.

Elise apoiou a tigela fumegante sobre o criado-mudo ao lado da cama. O líquido exalava um aroma forte de raízes amargas, folhas secas e algo doce como mel queimado.

— Beba isso, Elian. Vai ajudar seu corpo a relaxar... e a dor a se acalmar um pouco — disse ela, servindo o chá em um pequeno copo de barro.

Elian levou o copo à boca com esforço. O líquido desceu quente, amargo e denso, raspando a garganta como se fosse feito para lembrar que a cura também tem gosto de luta.

— O que tem nesse chá? — murmurou ele, franzindo o cenho.

— Ervas da floresta norte. Caule de Ninféia e flor de Sangre-Dourado. Também usei raiz de luzérnia e um pouco de mel — respondeu Elise, ajustando os panos sobre a cama. — É um remédio antigo... e eficaz. Seu corpo precisa disso.

Ela então se aproximou do leito e sentou-se ao lado dele.

— Elian, antes de começar… preciso que saiba o que vou fazer. — disse, com aquele tom firme que não admitia interrupções. — Eu vou usar magia de cura, certo?

Elian assentiu levemente, já sentindo o chá agir. A dor começava a pulsar de forma mais lenta.

— Existem três níveis principais de magia de cura — continuou ela. —

O primeiro é chamado Sanare. É o feitiço básico. Serve para aliviar dores leves, curar arranhões, reduzir inchaços e acelerar a regeneração natural do corpo. A luz que emana dessa magia é azul celeste — clara, leve, como o céu da manhã.

Ela fez uma pequena pausa, buscando dentro de uma sacola de couro alguns cristais curvos, usados para amplificar a condução mágica.

— O segundo se chama Sanare Medio. É um nível intermediário. Pode tratar fraturas, entorses, cortes profundos, contusões internas e sangramentos mais sérios. A luz dela é azul bebê — suave, mas mais intensa e quente do que a básica.

Ela olhou diretamente para Elian, com seriedade.

— E por fim, temos o nível alto. Sanare Altiora. Essa magia… só pode ser usada por magos curandeiros treinados por anos. Cura ferimentos fatais, ossos esmagados, doenças internas e… há quem diga até que pode curar doenças da alma. A luz dela é azul pálido, quase prateada… como o luar sobre um lago. Mas eu… — ela hesitou — …eu só domino os dois primeiros.

— Tudo bem — respondeu Elian com a voz fraca, mas firme. — Confio em você.

Elise sorriu de leve, tocando a mão dele.

— Começarei com Sanare, nos hematomas e escoriações. Seus músculos estão inflamados, seu rosto… bem, seu rosto está mais roxo que uva madura. Depois, usarei o Sanare Medio nas costelas e no dedo. Essas fraturas precisam de uma energia mais precisa.

Ela se posicionou, elevou as mãos com delicadeza, e inspirou profundamente.

— Sanare. — murmurou, quase como uma prece.

De suas palmas, começou a emanar uma luz azul celeste. Branda, morna, como uma brisa de primavera tocando o rosto. A magia percorreu o corpo de Elian em suaves ondas, passando pelas escoriações no peito, no ombro e nos braços. Os roxos começaram a desinchar, e a dor, antes constante, se dissolvia em calor.

Elian fechou os olhos. Por um momento, sentiu como se estivesse flutuando em água morna, deixando para trás o peso da dor.

Depois de alguns minutos, Elise afastou as mãos e murmurou novamente:

— Agora, vamos ao mais difícil.

Ela se aproximou da costela quebrada, estendeu uma das mãos sobre a lateral do corpo de Elian, e a outra sobre o dedo inchado da mão direita.

— Sanare Medio. — disse com mais ênfase.

A luz azul bebê surgiu mais intensa, pulsando com firmeza, como se obedecesse a um coração próprio. As ondas de calor agora eram mais concentradas, penetrando mais fundo. Elian mordeu o lábio inferior — não era uma dor insuportável, mas era como se os ossos estivessem sendo moldados novamente, por dentro.

O dedo estalou suavemente, voltando ao lugar. As costelas latejaram, e então, o alívio veio. Um alívio tão forte que ele quase desmaiou.

Elise suspirou, limpando o suor da própria testa.

— Pronto. Isso é tudo que consigo fazer por hoje — disse ela, se levantando devagar. — Você precisa descansar, Elian. Vai se sentir fraco, e talvez um pouco enjoado, mas amanhã já poderá caminhar.

Elian assentiu, com os olhos pesados. A exaustão o dominava.

Arthur se aproximou, colocando a mão sobre a cabeça do filho.

— Obrigado… Elise. — murmurou ele.

— Não me agradeça ainda. — respondeu ela, séria. — Na verdade… quero conversar com você. A sós.

Arthur franziu o cenho.

— Agora?

— Assim que ele dormir — disse ela, olhando para Elian, que já começava a fechar os olhos. — Não vai demorar. Temos muito o que conversar.

Arthur assentiu em silêncio, enquanto o cheiro de ervas pairava no ar e o silêncio da enfermaria se aprofundava.

E Elian… finalmente dormiu.