Depois que Elian adormeceu, Elise e Arthur voltaram juntos à sala.
Emanuelle estava lá, sentada no mesmo lugar onde haviam a deixado. O pequeno corpo encolhido no sofá parecia ainda menor, envolto em silêncio e ansiedade. Seus olhos ainda brilhavam com lágrimas que não haviam secado por completo, mas seu semblante estava mais calmo — ou pelo menos, tentando estar.
Assim que viu os dois, mas não o irmão, ela se levantou bruscamente.
— Onde está o Eli?! — perguntou assustada, com a voz embargada.
— Ele está dormindo agora, garotinha — respondeu Elise com suavidade. — Está seguro. Não se preocupe.
Mas as palavras não foram o suficiente.
— É tudo culpa minha… — choramingou Emanuelle, cobrindo o rosto com as mãos antes que as lágrimas voltassem com mais força. — Se eu não tivesse saído de perto do Eli… se eu só tivesse esperado o papai voltar... nada disso teria acontecido! Ele não teria se machucado!
Ela se desmanchou em lágrimas.
Era só uma criança. E como toda criança, cometer erros fazia parte. Mas seu coração, ainda imaturo, não entendia isso. E talvez não entendesse por muitos anos. Talvez ela levasse esse fardo consigo pelo resto da vida — mesmo sem merecê-la.
Arthur sentiu o peito apertar ao ver sua filha naquele estado.
Não hesitou. Ajoelhou-se diante dela e a envolveu nos braços com força — tanta, que quase a esmagou contra o peito.
— Não, meu amor… isso não é sua culpa. — sussurrou ele, afagando os cabelos ruivos dela. — Você só queria comprar algumas coisas pra sua mãe, não foi? Você só queria fazer uma surpresa…
Ela assentiu, soluçando.
— Aqueles monstros foram os que machucaram o Elian. E só eles. Você não tem culpa de nada.
Arthur encostou o queixo sobre os cabelos dela, apertando ainda mais o abraço.
— E sabe de uma coisa? Se o Elian acordar e te ver assim, se culpando e chorando… ele vai ficar triste também. Ele quer te proteger, Manu. Não quer te ver sofrendo por causa dele. Ele está bem, já está sendo cuidado. A Elise cuidou dele.
Emanuelle não respondeu de imediato. Seus olhos ainda estavam marejados, mas havia ali uma pequena mudança — como se uma parte dela quisesse acreditar naquelas palavras. Elise se aproximou, ajoelhando-se ao lado da menina.
— Vai até lá, Emanuelle — disse Elise com uma voz calma, porém firme. Seus olhos, naquele momento, não estavam apenas vendo — eles compreendiam. Havia ali uma dor silenciosa, como se ela própria carregasse cicatrizes parecidas. — Fique com ele. Fique com seu irmão até ele acordar. Tenho certeza que será bom pra vocês dois.
Arthur então se inclinou, dando um beijo na testa da filha.
— Vai lá, bebê.
— Eu não sou mais um bebê... — murmurou Emanuelle, baixinho, com a voz embargada, mas uma sombra de sorriso despontando nos lábios.
Ela se soltou do abraço, enxugou as lágrimas com as costas das mãos e saiu apressada em direção à enfermaria.
A porta se fechou suavemente atrás dela.
Alguns instantes depois, já ao lado da cama onde Elian repousava, ela permaneceu em pé, observando-o. Seu rosto dormia em paz, mesmo com os hematomas ainda visíveis.
Ela se inclinou devagar, e sussurrou:
— Desculpa, Eli. Por minha causa… você passou por tudo isso. Mas eu juro que vou me tornar mais forte. Forte o suficiente para que você não precise mais me proteger… E para que eu possa te proteger também.
Com mãos pequenas, ergueu a coberta e se enfiou com cuidado ao lado dele.
Abraçou seu irmão como um escudo, como quem prometia silêncio e segurança.
E ali, ao lado daquele corpo ferido, adormeceu.
★★★
Na sala, Arthur continuava de pé, olhando para a porta por onde a filha havia saído.
Elise, então, se aproximou lentamente.
— Arthur... — disse ela em voz baixa. — Gostaria de conversar com você.
Na cozinha da casa de Elise, o cheiro de chá de ervas preenchia o ar com uma calma quase forçada — como se tentasse suavizar, em vão, o peso da conversa que estava prestes a acontecer.
Elise preparava a infusão com movimentos contidos, mas o olhar fixo na xícara denunciava a tempestade por vir. Quando se virou para Arthur, que observava em silêncio, ela foi direta. Não havia outra forma de dizer aquilo.
— Por onde devemos começar…? — murmurou, tocando o copo com os dedos. Depois respirou fundo. — Elian matou dois garotos hoje.
A frase caiu como uma lâmina no ar.
Arthur congelou.
— O quê? — A voz saiu quase sem força. Ele esperava algo grave, claro — mas jamais isso. Na sua mente, a imagem de Elian ainda era a de um menino gentil, sensível, que brincava com a irmã e respeitava os pais com devoção.
— Sim. Ele os matou. No beco. Eu cheguei depois. Não fiz nada. Foi tudo ele. — A voz de Elise era firme, sem adornos.
— Mas... como? E por quê?
— Com magia — respondeu, como se fosse óbvio.
Arthur levou a mão ao rosto, tentando assimilar o que ouvia. Sabia que Elian tinha talento com magia. Sabia que ele era mais maduro do que aparentava. Mas matar alguém?
Elise se inclinou. Seus olhos não vacilaram.
— O motivo… — ela disse, com voz controlada — foi que tentaram estuprar sua filha.
O silêncio que se seguiu não foi vazio.
Foi uma implosão
Arthur se levantou num rompante. Os olhos, arregalados. O punho cerrado. E então, o soco na mesa.
— Malditos! Filhos da puta! Como puderam… com a minha filha?!
O grito ecoou pela casa.
Elise não se moveu. Apenas o encarou com firmeza.
— Eu entendo. — disse. — Eu também fiquei assim. Mas a situação já foi resolvida. Eles estão mortos, Arthur. Emanuelle está a salvo. Elian… salvou ela.
Arthur cambaleou um pouco ao se sentar de novo. Levou a xícara à boca com mãos trêmulas. O chá ainda fumegava. Bebeu como quem precisava se agarrar a alguma coisa.
— Meus filhos… tão pequenos… já tendo que passar por isso. — sussurrou, mais para si mesmo do que para ela. O olhar perdido, o semblante desolado.
Elise se aproximou devagar.
— Arthur — chamou com delicadeza, mas firmeza. — Gostaria de fazer um pedido.
Ele ergueu os olhos. Assentiu, silencioso.
— Quero que me permita treinar o Elian. Não como curandeira. Mas como mestra.
Arthur piscou, confuso.
— Você quer… treiná-lo?
— Sim. Ele tem potencial. Mais do que imagina. Mais do que ele próprio sabe. — Fez uma pausa. — Mas precisa de orientação. E rápido.
Arthur ficou em silêncio por alguns segundos, depois soltou um suspiro cansado.
— Você sabe que não temos condições de pagar um mestre. Ainda mais um como você… — olhou com sinceridade. — E não acredito que vá fazer isso de graça.
— Não farei. — respondeu ela, com honestidade. — Mas o pagamento não será em moedas.
Arthur franziu o cenho.
— Ele vai me ajudar. Nos tratamentos. No preparo de poções. Vai manter a ordem da casa. Vai estudar cura, ajudar no atendimento de alguns pacientes… e, claro, vai aprender magia. Eu o treinarei com tudo que puder, desde que ele tenha disciplina e esteja disposto.
Arthur ficou pensativo.
O silêncio dessa vez durou mais tempo.
— Antes de te dar uma resposta... — disse ele, enfim — preciso falar com Elian. E com Maria.
Elise assentiu com compreensão.
— Eu sei o quanto Maria é apegada a ele. E sei que não é uma decisão fácil. Mas pense bem. Vocês moram longe, e trazer Elian todo dia não é viável. Ele teria que passar a semana aqui, e voltar nos finais de semana. Eu entendo o peso disso. Mas depois do que aconteceu hoje… ele precisa disso.
Desde o nascimento de Elian, Maria nunca mais o deixou longe dos braços por muito tempo. Era como se uma parte dela soubesse — mesmo sem saber — que havia algo diferente naquele filho.
Não que ela amasse menos Anthony ou Emanuelle. Pelo contrário, ela os amava com a mesma intensidade, com o mesmo calor materno que ardia no peito desde que se tornara mãe. Mas com Elian… havia algo a mais. Algo que ninguém conseguia explicar, nem ela mesma.
Talvez fosse o trauma do parto. O sangramento que quase levou sua vida. O medo de morrer e deixar os três filhos sozinhos num mundo cruel e injusto. Ou talvez… fosse algo mais profundo.
Talvez, no fundo de sua alma, Maria soubesse.
Soubesse que havia algo nele — algo silencioso e antigo — que a trouxe de volta da morte. Como se aquela criança, que nasceu entre a vida e o fim, tivesse empurrado as portas do outro mundo para salvá-la. Como se, de algum modo inexplicável, Elian tivesse sido a âncora que a impediu de afundar.
— Eu sei. — respondeu Arthur, baixando os olhos. — Ele precisa de mais do que só amor. Precisa de direção. De preparo.
— Então conversem. Mas não demorem muito. — completou Elise. — Elian está à beira de um caminho... e o que ele se tornará a partir de agora… pode depender de com quem ele aprender.
O silêncio que se seguiu foi denso, quase solene. Como se as palavras de Elise tivessem traçado uma linha invisível entre o que já havia sido... e o que ainda podia ser.
★★★
Do outro lado daquela escolha, Elian dormia profundamente na enfermaria. Mas em seus sonhos… raízes se entrelaçavam, e a luz e a sombra pareciam conversar.
A escuridão era densa, mas não silenciosa.
Havia um som — grave, profundo — como o eco de raízes crescendo sob a terra. Elian estava ali, de pé, mas não sabia como. O chão sob seus pés era frio, encharcado, coberto por musgo e cinzas. Uma névoa leitosa serpenteava em torno de suas pernas, ocultando o horizonte, como se o mundo terminasse logo além do que seus olhos podiam alcançar.
— Que lugar é esse...? — sussurrou, a voz trêmula, lembrando-se do ambiente cinzento para onde fora levado após sua morte. Mas aquilo... era diferente. Ali não havia cor alguma. Apenas negro.
Diante dele, erguiam-se duas árvores colossais.
Uma era viva, luminosa, com galhos que se entrelaçavam como veias líquidas de ouro. De seu tronco pendiam dez esferas, pulsando como corações etéreos — era a Árvore da Vida, a Sephiroth.
A outra era um monólito de trevas. Retorcida, com galhos como garras e raízes que se contorciam feito serpentes adormecidas, murmurando palavras em línguas que Elian não conhecia, mas... sentia. Pairavam ao redor dela dez esferas escuras, pulsando numa cadência lenta, faminta.
Qliphoth.
As duas árvores cresciam lado a lado, mas suas raízes se entrelaçavam sob a terra como irmãs siamesas, ligadas por um único coração oculto. E acima delas, pairava a coruja.
De asas abertas, cada pena parecia feita de prata viva. Em uma das asas, a Sephiroth estava inscrita em luz dourada. Na outra, a Qliphoth, desenhada em trevas líquidas.
— Você foi julgado. — sussurrou a coruja, sem mover o bico. O som invadiu o espaço como pensamento moldado em vento.
Elian tentou falar, mas não havia som em sua garganta. Ele apenas olhou ao redor, tentando entender por que o coração pesava tanto.
Foi então que percebeu: a Árvore da Vida estava sangrando. Mas não como algo que morre — e sim como algo que alimenta. A luz dourada que escorria da Sephiroth descia pelo tronco e se misturava com a sombra que emanava da Qliphoth.
Luz e Trevas. Unindo-se.
Era impossível. Ilógico. Como se dois opostos ignorassem sua própria natureza. Como se o mundo, naquele instante, estivesse errando de propósito.
Elian olhou para a coruja... e viu dúvida.
Mesmo ela — observadora de julgamentos, portadora das asas da criação e do fim — não compreendia o que via.
Uma das esferas mais baixas da Sephiroth — Malkuth — escorria um fio carmesim. O sangue da matéria. E esse sangue alimentava diretamente uma raiz negra da Qliphoth, que o absorvia com prazer silencioso.
E a Qliphoth sorria.
Não com uma boca, não com um rosto. Mas Elian sabia. Ela sorria.
Uma das raízes escuras começou a rastejar em sua direção.
Elian tentou recuar, mas seus pés estavam presos na lama. A névoa se adensava, subindo até os joelhos, sufocando a visão. Ao fundo, os sussurros das árvores se tornavam cada vez mais intensos — como se o próprio mundo estivesse entoando um cântico. Um louvor. Ou um lamento.
E então, a raiz tocou sua perna.
Elian estremeceu.
Mas não havia dor. Nem frio.
Havia… familiaridade.
Um arrepio percorreu sua espinha, não por ameaça, mas por reconhecimento. Como se aquela raiz o conhecesse. Como se soubesse seu nome. Como se tivesse tocado sua alma antes mesmo de ele renascer.
Era como voltar para um lugar que ele nunca deveria ter deixado.
O peso daquela revelação esmagou qualquer medo.
E então Elian gritou.
Mas não houve som.
Nem eco.
Apenas o silêncio.
E despertou.
★★★
Ofegante, Elian abriu os olhos.
Por um instante, demorou a reconhecer o lugar. O teto de madeira. O cheiro de ervas. O travesseiro firme sob sua nuca.
— A enfermaria… — murmurou, relembrando tudo o que havia acontecido.
Seu corpo doía, mas não tanto quanto antes. As dores estavam ali, latentes, mas suportáveis — como sombras de feridas que já haviam começado a cicatrizar.
Foi então que sentiu o peso leve sobre seu braço direito.
Virou o rosto e a viu.
Emanuelle.
Adormecida, agarrada ao seu lado como se ele fosse a única âncora em meio a um mar de pesadelos. Seu rosto estava parcialmente coberto pelos cabelos ruivos desgrenhados. Havia um traço seco de lágrima sobre sua bochecha.
— Manu… — sussurrou Elian, com a voz baixa, tentando não acordá-la.
Passou os dedos com delicadeza pelos fios de cabelo que escondiam o rosto dela. Ficou ali, observando-a. Seu peito subia e descia devagar, os lábios entreabertos, sonhando com alguma coisa que talvez ele jamais soubesse.
— Ela deve estar se culpando por tudo… — pensou Elian com pesar. — Mesmo sendo só uma criança.
Não demorou até que ela despertasse, assustada com o movimento.
Mas, ao ver que era Elian quem a observava, a tensão em seu corpo se desfez. Seus olhos se encheram de lágrimas no mesmo instante.
— Eli… — sussurrou ela, com a voz embargada. — Me desculpa… por favor.
— Pelo quê? — perguntou ele com um sorriso gentil, quase rindo.
— Por ter saído da carroça… por ter me afastado… por ter feito você se machucar tanto. — disse ela, engolindo o choro. — Foi tudo culpa minha…
Antes que as lágrimas descessem, Elian estendeu a mão e segurou o rosto dela com carinho.
— Não, Manu. Você não tem culpa de nada. — disse com firmeza, mas sem perder a ternura. — E mesmo que tivesse, eu faria tudo de novo. Uma, duas, dez vezes. Porque você, o papai, a mamãe e o Anthony são tudo o que eu tenho. Tudo o que eu amo. E eu daria minha vida por vocês.
Fez uma pausa, inclinando levemente a cabeça com um sorriso travesso.
— E além disso… se continuar chorando assim, vai parecer um bebê chorão.
Emanuelle fungou, surpresa, e logo soltou uma risada abafada.
— Eu não sou um bebê… — resmungou, dando um soquinho leve no ombro dele.
— Eu sei — respondeu Elian, com os olhos brilhando. — Você é minha irmã mais velha. E é a mais corajosa de todas.
— Um dia… — disse ela, ainda abraçada a ele — eu vou ser forte. Forte de verdade. Forte o bastante para te proteger também, Eli.
Elian não respondeu. Apenas assentiu, sentindo uma ponta de emoção atravessar o peito.
E então, ficaram ali. Deitados lado a lado, trocando algumas palavras bobas e risadinhas baixas, até que o aroma suave do incenso preencheu seus pulmões mais uma vez.
E juntos, adormeceram.