O sol nascia devagar, tingindo a vila de Brumaria com tons dourados, quando Elian despertou na enfermaria onde passara a noite. A luz suave atravessava a janela já aberta, dançando sobre as paredes com os primeiros sussurros do vento frio da manhã. O ar era puro, e o ambiente, silencioso, carregava o aroma adocicado de incenso e o perfume discreto de flores secas.
O sonho da noite anterior ainda pulsava em sua mente.
Aquelas árvores... as raízes... o sussurro das esferas. O cenário negro parecia ter deixado vestígios em sua alma. Era uma lembrança tão perturbadora quanto o ambiente cinzento onde despertara após a morte. Mas algo ali o inquietava ainda mais: a voz da coruja, quando dissera que ele já havia sido julgado.
— O que aquilo significava? — pensou, ainda olhando fixamente para o teto.
Lembrou-se das asas da coruja, e de como as duas árvores — a luminosa e a sombria — estavam gravadas nelas. A sensação que teve quando a raiz negra o tocou ainda era vívida demais. Era como se algo antigo, esquecido, tivesse sido despertado ali. Como se tivesse voltado para casa.
Virando-se levemente, sentiu o calor de uma presença ao lado.
Emanuelle dormia tranquila, mergulhada num sono profundo. Sua respiração era suave, quase imperceptível. Os cabelos ruivos escondiam parte do rosto, mas ainda assim, havia uma doçura quase sagrada na forma como se aconchegava ao seu lado — como se estar ali, junto dele, fosse o bastante para afastar qualquer pesadelo.
Na noite anterior, Arthur precisou voltar para casa. Não podia passar mais tempo longe sem dar notícias a Maria — e com razão. Ele insistiu que Emanuelle o acompanhasse. Mas a menina, com uma teimosia de quem conhecia seu próprio coração, recusou. Chorou, gritou, implorou. E no fim, Arthur cedeu.
Ela não iria embora enquanto Elian não estivesse bem.
Ele sorriu ao lembrar disso. Um sorriso discreto, mas cheio de gratidão.
Emanuelle se mexeu e bocejou, espreguiçando-se.
— Bom dia, Eli... — disse ela com a voz arrastada pelo sono.
— Bom dia, Manu. Dormiu bem?
— A cama aqui é muito mais gostosa que a nossa... — respondeu, ainda de olhos semicerrados.
Elian soltou um riso leve. Não havia como negar. Era verdade. Por mais que sua nova vida fosse marcada pela pobreza, havia momentos como aquele que o faziam repensar suas raízes e o que poderia construir dali pra frente.
Antes que trocassem mais palavras, Elise entrou pela porta com um sorriso caloroso.
— Bom dia, dorminhocos. O café da manhã está pronto. Vamos?
A menção à comida bastou. Emanuelle pulou da cama como um raio. Elian levantou com mais calma, ainda sentindo o corpo dolorido, mas bem melhor que no dia anterior.
Na cozinha, o cheiro era inebriante. Havia frutas, pão fresco, mel, chá… e algo mais.
— Elise… o que é isso? — perguntou Elian, olhando curioso para a xícara fumegante diante dela, com um líquido escuro.
— Isso? — respondeu ela, levando a xícara aos lábios. — É café. Feito com uma fruta que só cresce nas regiões montanhosas.
Os olhos de Elian brilharam.
— Café...? Então existe café nesse mundo também…
Elise arqueou uma sobrancelha, curiosa com sua reação. Mas não disse nada. Apenas estendeu a xícara para ele.
Emanuelle, não querendo ficar de fora, também pediu um pouco. Elise serviu os dois.
Quando Elian levou o líquido quente aos lábios, um turbilhão de lembranças o invadiu. O gosto amargo. O calor descendo pela garganta. Era o mesmo que ele tomava ao lado da mãe, quando ainda era Rodrigo, nos breves momentos de descanso nas manhãs da comunidade. Café e silêncio. Café e saudade.
Mas antes que mergulhasse de novo naquela dor, Emanuelle fez uma careta e exclamou:
— É amargo!
Elian não conteve a risada.
— Adicione mel — sugeriu Elise, empurrando o pequeno pote dourado em sua direção.
A menina seguiu o conselho e sorriu ao provar o novo sabor. Elian a observava com ternura. Era por ela. Por sua família. Por essa nova vida, que ele queria se tornar mais forte.
Na mesa havia bananas maduras, mamões fatiados, abacates temperados com sal e limão, pães quentinhos, queijo de cabra e mais chá.
Era uma fartura que contrastava violentamente com o que ele estava acostumado.
E então, surgiu a dúvida.
— Elise… você descende de alguma família nobre?
Ela quase engasgou. Riu, sem esconder a surpresa.
— Não. Sou plebeia. Mas... uma maga. — respondeu com serenidade. — E aqui, no Reino de Elveron, isso é quase o mesmo que ser nobre.
Elian ficou em silêncio por um momento. Aquilo fazia sentido. Magos eram respeitados. Tementes ou admirados. E, no caso de Elise… ela vivia bem. Muito melhor do que qualquer morador de Brumaria.
— Então... magos podem se tornar nobres?
A pergunta foi direta. Elise o encarou com olhos atentos. Sabia exatamente o que havia por trás daquelas palavras.
“Se eu me tornar nobre… talvez consiga dar uma vida melhor para minha família.”
Ela sorriu, mas não respondeu de imediato.
— Sim. — disse por fim. — Mas é uma longa estrada. E essa conversa fica para outro momento.
— Está certo — assentiu Elian, levando a xícara novamente à boca.
Enquanto o amargor do café se misturava ao doce da fruta madura, ele olhou ao redor — para Emanuelle sorrindo, para Elise observando tudo em silêncio — e se permitiu, por um breve instante, acreditar que havia esperança.
Uma esperança feita de raízes… que começavam, aos poucos, a se firmar.
Após terminarem o café da manhã, Elise convidou Elian para acompanhá-la até os jardins nos fundos da casa.
Emanuelle, atenta, logo se ofereceu para ir junto — mas antes que desse mais um passo, Elise se virou.
— Essa conversa é só entre mim e seu irmão — disse com gentileza firme.
Emanuelle franziu a testa, cruzou os braços e inflou as bochechas num claro sinal de protesto. Mas quando Elian se abaixou levemente e pediu:
— Espera só um pouquinho, Manu. Prometo que depois ficamos juntos.
Ela assentiu, contrariada, e voltou a se sentar com um resmungo quase inaudível.
Elian saiu lado a lado com Elise, atravessando o corredor silencioso até chegar à parte dos fundos da casa. Assim que pisou no jardim, seus olhos se arregalaram com surpresa genuína.
Era um refúgio. Um espaço de beleza meticulosa, onde cada flor parecia brotar com propósito. Rosas em fileiras simétricas, lavandas balançando ao vento com perfume leve e elegante, caminhos de pedra clara que serpenteavam entre sebes podadas com precisão. Fontes de mármore murmuravam baixinho, e pássaros — confiantes e calmos — pousavam nos galhos como se também pertencessem àquela paz.
O chão sob seus pés era quente e firme. O vento trazia um aroma fresco de terra molhada, flores e madeira. Tudo ali parecia em harmonia. Até mesmo os pensamentos de Elian — sempre barulhentos — silenciaram.
— Impressionado? — perguntou Elise com um sorriso contido, notando os olhos dele vagando pelo cenário.
Elian assentiu. Havia uma serenidade naquele lugar que ele nunca tinha sentido.
— Elian… — começou Elise, parando junto a uma fonte redonda de pedra. — Eu queria parabenizá-lo pelo que fez ontem.
Elian a olhou, confuso.
— Parabenizar…? — murmurou. Não era o que ele esperava ouvir. No fundo, ele se preparava para ser julgado. Condenado. Culpado. — Você está me elogiando?
— Sim. — respondeu ela, firme. — Não vou te julgar por proteger quem ama. Muito pelo contrário. O que você fez foi louvável. Salvou sua irmã de um destino terrível. E isso… é algo que nem todo adulto teria coragem de fazer.
Elian abaixou o olhar.
As lembranças do beco voltaram como sombras. O sangue. O cheiro de carne queimada. A dor nos punhos. A chama no dedo. A lança de pedra atravessando um coração que ainda batia.
Ele não sabia se foi por justiça… ou por prazer.
E esse pensamento o corroía.
Na vida passada, ele disfarçou o prazer de matar com justificativas como “vingança” e “justiça”. Mas no fundo, aquilo também alimentava algo escuro dentro dele. E se… estivesse acontecendo de novo?
— A propósito, eu contei para o seu pai. — disse Elise, com a voz seca e direta.
Essas palavras acertaram Elian como um trovão em céu limpo. Por um instante, seu corpo congelou. A boca se abriu, mas nenhuma palavra saiu. Quando finalmente conseguiu falar, a voz mal escapou:
— Você não... deveria... — sussurrou ele, em pânico.
— Deveria, sim — retrucou Elise, firme, mas sem agressividade. — Seus pais têm o direito de saber o que aconteceu.
— Mas e se eles me odiarem? — sussurrou Elian, com os olhos arregalados. — E se... me verem como um monstro? Como alguém que... mata?
A voz dele quebrou. Os olhos, agora cheios de lágrimas, fugiam dos dela.
— Meu pai é um homem bom, minha mãe... é a mulher mais gentil que eu conheço. E se eles... se afastarem de mim?
O medo era tão real que parecia doer fisicamente. Doía mais que qualquer ferida da luta. Doía mais que os socos, que os ossos quebrados. Porque não era uma dor no corpo — era na alma.
— Eu lutei tanto... — murmurou Elian, quase sem perceber que havia dito isso em voz alta. — Lutei tanto pra ter isso... pra ter uma família de novo...
Elise ouviu. Talvez não tivesse entendido o que aquelas palavras realmente significavam, mas ela ouviu — e sentiu que ali havia algo maior. Algo que ele não dizia. Um segredo preso entre camadas de dor.
Ela se aproximou devagar, colocando uma mão leve sobre o ombro dele. Elian não recuou. Ficou parado, tremendo.
— Elian... olhe pra mim — disse Elise, suavemente.
Ele levantou os olhos. E nela não havia julgamento. Não havia medo. Apenas compreensão.
— Como seus pais poderiam odiar o filho que salvou a filha deles? Como Anthony poderia te desprezar, sabendo que você se jogou no meio do perigo pra proteger a Manu? E... como Emanuelle, que viu tudo... que foi salva por você... poderia te olhar com qualquer coisa que não fosse amor?
Elian abaixou a cabeça. As lágrimas escorriam agora, pesadas, silenciosas.
— Você não é um monstro, Elian. — continuou Elise, com a voz firme, mas gentil. — Você fez o que precisava ser feito. E precisa entender isso. Precisa aceitar que… nem sempre salvar alguém é bonito. Às vezes, é sujo. Às vezes, deixa cicatrizes. Mas isso não o torna errado.
Elian permaneceu em silêncio, encarando o chão de pedras limpas do jardim como se a resposta estivesse escondida ali.
Sim... salvar sua irmã havia sido certo. Mas o gosto na boca — ferroso, pesado — era o mesmo de quando ele matava antes.
Por mais que alguém chamasse aquilo de "justo", ele sabia a verdade:
Ele só protegeria quem amava.
E só quem amava.
O mundo não era digno da sua compaixão. Não mais. A traição, a dor, os sorrisos falsos de sua antiga vida ainda viviam dentro dele como feridas mal cicatrizadas. E mesmo agora, mesmo com tudo que Elise fizera... ele ainda não confiava totalmente nela.
Ela era bondosa, sim. Mas havia um brilho em seus olhos que Elian ainda não conseguia decifrar.
E ele sabia — sempre soube — que ninguém age sem motivo.
Houve um silêncio pesado.
Então, Elise suavizou o tom. Seus olhos descansaram sobre ele com uma calma ensaiada.
— Você não precisa carregar isso sozinho — disse ela. — Eu estou aqui. Agora... vem. Vamos sentar um pouco. Tem algo mais que eu quero te contar.