Corte Umbilical II.

Elise caminhou até um dos bancos de pedra sob a sombra das lavandas e sentou-se com tranquilidade. Fez um gesto suave, convidando Elian a se juntar a ela.

Ele obedeceu em silêncio, ainda com as palavras da conversa anterior martelando na mente.

Por um instante, apenas o som leve da brisa preenchia o ar. Então, Elise quebrou o silêncio:

— Elian… quero te perguntar uma coisa. — Sua voz era baixa, quase um sussurro entre as flores. — Que tipo de magia você usou ontem?

Elian a fitou por um segundo. Sabia que seria questionado em algum momento.

— Terra… e vento. — respondeu, medindo cada palavra. — Formei lama no chão, depois uma lança... usei o vento pra acelerar. Depois, fogo. — Fez uma breve pausa. — Queimei os olhos de um deles.

Elise franziu ligeiramente o cenho, sem interrompê-lo.

— Você misturou três elementos. Criou uma conjunção instável. Controlou rotação, impacto, dispersão… — Ela cruzou as pernas com elegância. — E tem cinco anos.

Elian abaixou o olhar, apertando o tecido da calça com os dedos finos.

— Eu treinei sozinho... às vezes com a mamãe. — mentiu, com a voz baixa. — Eu não sei exatamente o que tô fazendo… só... imagino. E sinto.

Elise percebeu a hesitação. Não o expôs, apenas o observou mais de perto.

— Sente como? — perguntou, com um interesse mais agudo. — Como essa energia se manifesta pra você?

Elian pensou por um instante, então respondeu com sinceridade:

— Começa aqui. — Apontou para o esterno. — É como uma água fria correndo por dentro. Ela sobe, se espalha… quando eu imagino o que quero, ela muda. Fica quente. Firme. Como se esperasse um comando.

Elise permaneceu alguns segundos em silêncio, absorvendo aquilo. O vento carregava o perfume de lavanda misturado ao frescor da manhã.

— Você tem noção do que isso significa? — disse ela, por fim. — A maioria das crianças nessa idade mal consegue acender uma vela com magia. Você criou ataques de conjunção. Com precisão. Instintiva ou não, isso não é algo comum.

Elian permaneceu calado.

Elise então respirou fundo e, com firmeza, disse:

— Eu quero te treinar, Elian.

Os olhos dele se ergueram com surpresa.

— Como maga. Não como curandeira. Não como amiga da sua mãe. Mas como alguém que vê em você um poder que, se não for guiado, pode te consumir.

— Por que você quer me treinar? — perguntou Elian, com um traço de desconfiança.

— Porque se continuar sozinho, você vai acabar se perdendo dentro de si. — respondeu, sem rodeios. — E porque, se for bem orientado… pode ser mais do que imagina. Pode proteger quem ama. E talvez até se perdoar.

Elian apertou os punhos. O peso de suas memórias nunca o deixava esquecer quem ele havia sido.

— Ontem falei com seu pai. Ele disse que conversaria com sua mãe e me daria uma resposta ainda hoje. Se eles aceitarem… — Elise o encarou. — Você aceitaria?

Elian pensou por alguns instantes. O coração apertava só de imaginar a distância. Ver Maria apenas nos finais de semana seria como arrancar uma parte dele. Mas...

— Se eu realmente quiser proteger minha família… — pensou — esse é o caminho.

— Aceito. — respondeu com firmeza. — Mas... como será o pagamento? Nós não temos dinheiro.

Elise sorriu de leve.

— Já conversei com seu pai sobre isso. Você vai me ajudar com os atendimentos, com as poções, manter as coisas em ordem. Em troca, eu vou te ensinar tudo o que sei. E claro… — Ela sorriu. — Você ainda vai receber um pouco por fora. Nada muito, mas o suficiente pra ajudar em casa.

Elian piscou. Aquilo era mais do que esperava.

— Tudo bem. — disse ele, após alguns segundos. — Só preciso da resposta deles, então.

Elise assentiu.

— Vou chamar Emanuelle para ficar aqui com você. Possivelmente vocês vão ficar longe, então vou deixar vocês dois brincando um pouco.

★★★

A noite já havia caído sobre Brumaria quando Arthur chegou em casa. Os passos arrastados não vinham apenas do cansaço físico, mas do peso esmagador do que carregava por dentro.

Maria estava na cozinha, sentada diante da mesa com um pano retorcido entre os dedos. Não limpava. Não costurava. Apenas torcia o tecido como se, de alguma forma, aquilo pudesse aliviar a angústia que lhe corroía o peito.

Quando ouviu a porta se abrir, levantou o rosto de súbito. Seus olhos buscaram instintivamente por um corpo pequeno e ruivo ao lado do marido — mas não o encontraram.

— Onde está o Elian? — perguntou, a voz tomada por urgência.

— Ele está com Elise. Está seguro. — respondeu Arthur, tentando conter o tremor.

— Com Elise? — repetiu, como se a informação não coubesse em sua lógica. — O que aconteceu? Por que ele não voltou com você? E onde está a Emanuelle?

Arthur hesitou por um momento. Então respirou fundo e falou:

— Houve um incidente. Na vila. Eles se afastaram de mim por um tempo... e… dois garotos tentaram machucar a Emanuelle.

O pano caiu de suas mãos.

— O quê?! — gritou ela, o coração quase saltando pela garganta. — Como assim você os perdeu, Arthur?!

— Elian os encontrou. E a salvou. — a voz de Arthur oscilava entre dor e orgulho. — Ele... matou os dois.

O mundo pareceu parar.

Maria recuou um passo, as pernas falhando. Sentou-se devagar, como se as forças tivessem abandonado o corpo.

— Eu senti… — murmurou. — No momento em que aconteceu. Estava costurando, e senti um frio na alma. Uma dor que não era minha… mas era. — Levou as mãos à boca. — Emanuelle… eles...?

— Tentaram. Mas não conseguiram. O Elian chegou antes. Ele impediu.

Lágrimas começaram a escorrer sem que ela percebesse.

— Minha menina... o que ela viu? O que ela sentiu? Ela ainda é só uma criança...

— Eu sei. — disse Arthur, se ajoelhando diante dela. — Mas ela ficou com o Elian. Não quis voltar. Disse que precisava ficar ao lado dele. Elise permitiu.

Maria balançava a cabeça, tentando absorver tudo.

— Elian... matou. — sussurrou. — Meu menino... ele teve que fazer isso.

— Ele fez o que era certo, Maria. Se não fosse por ele...

Ela não deixou Arthur terminar. Ergueu o olhar úmido e o interrompeu:

— E o que vai ser agora? O que essa escolha vai fazer dele?

Arthur hesitou. Então disse:

— Elise quer treiná-lo. Como maga.

Maria paralisou. Depois, lentamente, virou o rosto para o marido:

— Não.

— Maria...

— Não! — disse firme, a voz embargada. — Eu não posso. Eu não vou aceitar isso agora.

— Ele precisa de direção. De preparo. Elise viu com os próprios olhos o que ele é capaz de fazer sem nunca ter tido um mestre. Você sabe o quanto ele é especial.

— E eu sei o quanto isso vai me machucar! — rebateu, finalmente se levantando. — Você acha que é fácil pra mim? Ver meu filho... se afastar? Ele só tem cinco anos, Arthur. CINCO. Ele vai sair daqui e só voltar aos fins de semana? E eu vou fingir que isso é normal?

Arthur ficou em silêncio. Não havia como negar aquela dor.

— Eu... não decidi nada. — disse, mais baixo agora. — Só estou te contando. Amanhã, preciso dar uma resposta.

Maria levou as mãos ao rosto, respirando fundo. As lágrimas continuavam.

— Emanuelle também está ferida. Mesmo que o corpo dela esteja ileso, algo dentro dela… quebrou. E agora você quer separar os dois?

Arthur abaixou a cabeça.

— Eu sei que é muito. Mas se não fizermos nada... se não dermos a ele as ferramentas pra enfrentar esse mundo, um dia... pode ser tarde demais.

No silêncio que se seguiu, não havia vencidos nem vencedores — apenas dois pais, sangrando por dentro, tentando não falhar com aqueles que mais amavam.

★★★

Enquanto Elian e Emanuelle brincavam no quintal dos fundos, Elise surgiu à porta com um leve sorriso e anunciou:

— O pai de vocês chegou.

Emanuelle, que até então estava distraída com os truques de magia que Elian fazia com as folhas e pedrinhas, levantou-se num salto e agarrou o braço do irmão com força.

— Vamos, Eli! O papai voltou! Vamos embora, rápido!

Elian hesitou por um instante.

Por um breve segundo, pensou em desistir do aprendizado com Elise. Mas a imagem da irmã chorando no beco, e o que poderia ter acontecido se ele não tivesse chegado a tempo, afundou essa dúvida.

Ele se levantou, caminhando lado a lado com Emanuelle — os dedos entrelaçados, os passos silenciosos. O coração, pesado.

— Ela vai ficar triste... eu também... — pensava Elian, melancólico.

Ao entrarem na casa, os dois pararam surpresos à entrada da sala.

— Mamãe...? Papai...? Anthony...? — murmurou Emanuelle, com os olhos arregalados.

Maria, que estava sentada na beirada da mesa, não conteve a emoção. Correu até os filhos com lágrimas nos olhos e os abraçou com uma força que só o desespero transformado em alívio é capaz de dar.

— Mamãe...? — sussurrou Emanuelle, com a voz trêmula, antes de começar a chorar.

— Graças aos deuses… vocês dois estão bem… — disse Maria, com o rosto molhado, apertando os filhos contra o peito.

O choro de Emanuelle veio como um rompante — intenso, abafado, como se fosse tudo aquilo que ela guardara desde o beco.

— Obrigada, meu filho… e me perdoe. — murmurou Maria, agora com o rosto colado ao de Elian.

Elian tentou resistir, manter a compostura, mas as palavras da mãe o atravessaram.

A culpa. O medo de ser rejeitado. Tudo caiu por terra com aquele abraço. O que restou foi apenas alívio — por ter salvado a irmã, por ainda ser aceito, por poder continuar chamando aquele lugar de lar.

O reencontro foi interrompido pela voz gentil de Elise:

— Vamos para a cozinha. Preparei algo para acalmar os nervos.

Todos a seguiram: Maria, Arthur, Anthony, Elian e Emanuelle.

Na mesa, Elise serviu um chá quente de ervas. A sala estava silenciosa, como se todos precisassem de alguns minutos para voltarem a respirar com normalidade.

Maria foi a primeira a falar, antes mesmo de Arthur iniciar qualquer explicação:

— Elise… obrigada por cuidar dos meus filhos. — disse com sinceridade, fazendo uma reverência curta e respeitosa. — Arthur me contou o que houve. E também sobre… você querer treinar o Elian.

Elise assentiu em silêncio, esperando que Maria continuasse.

Maria olhou para o filho e, com a voz ainda embargada, disse:

— Eu vou permitir. Obrigada por querer ensinar meu filho.

Fez outra reverência, mais profunda agora — como mãe, não como vizinha.

— Ficar longe dele durante a semana será muito difícil para mim, mas…

— Não! — interrompeu Emanuelle, batendo a mão na mesa. — Eu não quero me separar do Eli!

Elian e Maria já esperavam por essa reação. Elian fechou os olhos, tentando manter-se forte.

— Manu… — disse Elian, com a voz calma — eu preciso disso. Preciso aprender a usar minha magia direito.

— A mamãe pode te ensinar! Ela já te ensinou um monte de coisa!

Maria suspirou, acariciando os cabelos da filha.

— Eu ensinei tudo o que sabia, meu amor. Agora… ele precisa de algo mais.

— Mas, mas… — a voz dela embargava, prestes a chorar novamente.

Elian segurou as mãos da irmã.

— Eu prometo que, quando voltar para casa, vou te mostrar tudo o que aprender. Vou te ensinar os truques, Manu. Como sempre.

Elise então interveio com delicadeza:

— Você disse que também quer ficar forte, não é, Emanuelle?

Ela assentiu, baixinho.

— Então aqui vai uma proposta: uma semana por mês, você treina com o Elian. Eu mesma vou te ensinar. Só preciso que aceite ficar separada dele por alguns dias.

Emanuelle hesitou. Olhou para Elian, depois para Elise… e finalmente assentiu, mesmo com os olhos marejados.

— Tá bom... mas você promete?

— Prometo. — respondeu Elise com um sorriso caloroso.

— Bom — disse ela, virando-se para Elian — já que está tudo certo, você começa...

— Espere. — interrompeu Maria, olhando firme para Elise. — Eu disse que autorizo, mas não agora. Elian vai começar daqui uma semana. Essa é a minha condição.

Elise a encarou por um segundo. E então sorriu.

— Você é mesmo uma mãe coruja.

— Sou. — respondeu Maria, com um suspiro emocionado. — E não tenho vergonha disso.

— Então tudo certo — disse Elise. — Elian, aproveite sua semana com sua família. Na próxima segunda… começa sua nova jornada.

Elian assentiu.

E naquele instante, soube: o tempo da infância livre estava chegando ao fim.

Mas por ora, ainda havia sete dias para ser apenas um filho, um irmão… e nada mais.