Um Novo Começo

O branco era absoluto, infinito. Toshiro flutuava em um vazio sem forma, sem som, sem tempo. Para onde quer que olhasse, a brancura ofuscante se estendia, engolindo qualquer senso de direção ou propósito. Então, uma silhueta surgiu na distância indistinta, uma forma vagamente humana que lhe pareceu estranhamente familiar. A curiosidade, um instinto quase esquecido naquele limbo, o impeliu para frente.

À medida que se aproximava, os contornos da figura se tornaram mais nítidos, e um arrepio percorreu Toshiro. Era ele mesmo. Ou uma versão dele. Os mesmos traços, o mesmo cabelo rebelde, mas os olhos... os olhos continham um desespero que ele nunca vira em seu próprio reflexo. Estavam vazios, quebrados.

–Você... sou eu? — A pergunta saiu como um sussurro rouco, perdido na vastidão branca.

A figura estremeceu, os lábios se movendo em um grito silencioso antes que as palavras finalmente encontrassem som, carregadas de uma angústia palpável:

–Me tire daqui! Por favor, me tire daqui!!

Instintivamente, Toshiro estendeu a mão para tocar seu duplo, para oferecer algum consolo, mas seus dedos encontraram uma barreira invisível, fria e impenetrável como vidro. O outro Toshiro também começou a golpear a barreira, os punhos batendo freneticamente contra a parede invisível que os separava, o desespero transformando- se em pânico selvagem. Toshiro imitou seus movimentos, a frustração crescendo a cada golpe inútil.

Ele viu os lábios de seu duplo se moverem novamente, formando palavras que não produziam som, uma súplica muda perdida no silêncio opressor. E então, a escuridão começou a rastejar pelas bordas do lado do outro Toshiro, uma mancha de tinta negra se espalhando sobre a tela branca, engolindo a luz. Seu duplo olhou para trás, para a escuridão que avançava, o terror puro estampado em seu rosto antes de ser completamente engolido pela noite.

Toshiro recuou instintivamente, o medo primordial tomando conta. A penumbra agora avançava em sua direção, uma onda de nada que ameaçava consumi-lo também. Ele continuou a recuar, passo a passo, até sentir suas costas encontrarem outra parede invisível. Estava preso. Encurralado entre a brancura infinita e a escuridão devoradora.

O pânico o dominou. Ele se encolheu no chão inexistente, abraçando os joelhos, as mãos cobrindo o rosto como uma criança assustada. A mesma frase repetindo-se em sua mente, em seus lábios trêmulos:

–Eu não quero morrer... por favor... eu não quero morrer!!!

A escuridão o alcançou, envolvendo-o em um abraço frio e final. O fim? Ou apenas uma passagem para outro tipo de inferno?

Fragmento Mika Univer

Diário Criptografado

Entrada 734

Memória recorrente. Praça. Sol. Risadas da mãe. O cheiro de grama cortada. Felicidade simples, quase esquecida. Depois, o céu escurecendo rápido demais. O vento uivando como um espírito faminto. A corrida para casa, a mão pequena apertando a da mãe com força. A cápsula fria, metálica. Comida sintética, água reciclada. O som do próprio coração batendo na escuridão. A promessa da mãe: "É só por um tempo, querida. Para te proteger." Quanto tempo? Dias? Semanas? Meses? Anos? O silêncio era o pior. O dia em que a escotilha rangeu e se abriu. A luz do sol ferindo os olhos. A hesitação. A saída. O arrependimento imediato. O mundo lá fora... não era mais o mesmo. Nunca mais seria.

21 Meses Depois…

20 de Janeiro de 2006

8:30 A.M

Terraço do Hospital Central - Base da Univer X (Nível Superfície)

Mika observava Hoshizoru do terraço do hospital. A cidade, ainda marcada pelas cicatrizes da batalha de quase dois anos atrás, fervilhava com a atividade incessante das máquinas de reconstrução. Guindastes moviam vigas de aço, drones soldavam estruturas, um testemunho da resiliência humana – ou talvez de sua teimosia. O ar frio da manhã picava seu rosto, mas ela não sentia. Seus olhos, de um azul gélido que raramente revelava emoção, percorriam a paisagem urbana remendada. Um prédio aqui, uma praça ali... lugares onde a Fera Vermelha havia deixado sua marca de destruição. Onde ele havia deixado sua marca.

Uma vibração em seu bolso a tirou de seus pensamentos. O identificador de chamadas mostrava o nome: Nayomi. Mika atendeu, o rosto impassível.

–Sim? ... Entendido Estarei lá. — Sua voz era monocórdica, eficiente. Ela desligou,

guardou o dispositivo e virou-se, seus passos silenciosos ecoando no concreto enquanto se dirigia à escadaria que levava às profundezas controladas do hospital.

Os olhos de Toshiro se abriram abruptamente, um arquejo escapando de seus lábios. O teto branco e estéril do quarto de hospital entrou em foco lentamente. Onde ele estava?

A última coisa de que se lembrava era... a escuridão. O medo. Ele se sentou na cama com um movimento brusco, o coração martelando contra as costelas. Instintivamente, levou a mão ao peito, depois ao rosto, como se para confirmar sua própria existência. Estava vivo.

O som suave de uma porta deslizando o fez virar a cabeça. Mika estava parada ali, observando-o com aquela intensidade fria e analítica que o deixava desconfortável. Seus olhares se encontraram por um instante tenso. Ela entrou no quarto, segurando uma sacola de papel comum, e parou ao pé da cama, simplesmente encarando-o.

Foi então que Toshiro percebeu. Olhou para baixo e viu que estava coberto apenas por um fino lençol branco. Estava nu. O sangue subiu ao seu rosto instantaneamente, um calor constrangedor se espalhando por seu corpo. Ele puxou o lençol até o queixo, sentindo-se vulnerável sob o olhar impassível de Mika.

Ela, sem mudar de expressão, começou a remexer na sacola. Tirou um conjunto de roupas simples – calça, camiseta – e as estendeu na direção dele.

–Tome. Vá tomar um banho. Seu coma prolongado requer higiene adequada — disse ela, a voz neutra, quase robótica.

Toshiro pegou as roupas com cuidado, tentando desesperadamente manter o lençol no lugar. O olhar dela não se desviava.

–Ahn... com licença... será que você poderia... se virar? — pediu ele, a voz embargada pela vergonha.

Mika pareceu considerar por um momento, talvez processando a lógica por trás da etiqueta social.

–Procedimento aceitável — respondeu ela, virando-se rigidamente de costas.

Com um suspiro de alívio, Toshiro deslizou para fora da cama, mantendo o lençol enrolado em si, e correu desajeitadamente para o banheiro anexo, fechando a porta atrás de si.

A água quente do chuveiro foi um choque bem-vindo, ajudando a clarear sua mente confusa. Enquanto se lavava, tentava juntar os fragmentos de memória. A batalha, a dor, a transformação... sua mãe... A imagem dela, caída nos escombros, atingiu-o com a força de um golpe físico. Ele se apoiou na parede fria do box, a respiração ofegante, as lágrimas se misturando à água do chuveiro. Não. Ele não conseguia se lembrar claramente. Era como olhar através de um vidro embaçado. Havia dor, raiva, perda... mas os detalhes eram fugidios, protegidos por uma névoa em sua mente.

Ele se vestiu rapidamente com as roupas fornecidas e saiu do banheiro, sentindo-se um pouco mais humano, embora a confusão e a angústia persistissem. Mika ainda estava no quarto, agora sentada na beira da cama, lendo algo em um tablet fino. Sobre a pequena mesa ao lado da cama, havia uma bandeja com o que parecia ser uma refeição hospitalar e uma lata de refrigerante.

–Não vai comer? — perguntou Mika, sem tirar os olhos do tablet. — A nutrição é essencial para a recuperação pós-coma.

Toshiro aproximou-se da mesa, puxou a cadeira e sentou-se. O estômago roncava, mas o apetite era inexistente. Mesmo assim, forçou-se a pegar os talheres.

–Obrigado, Mika-san — murmurou ele.

–Agradecimentos são logicamente desnecessários. Executo minhas funções designadas — respondeu ela, ainda focada no tablet.

Toshiro começou a comer mecanicamente, o sabor da comida insípido em sua boca. O silêncio era pesado, preenchido apenas pelo som discreto de seus talheres.

–Como... como eu vim parar aqui? — perguntou ele finalmente, incapaz de suportar mais a incerteza.

Mika finalmente ergueu os olhos do tablet, fixando-os nele.

–Seus parâmetros de memória estão comprometidos? — perguntou ela, mais como uma constatação do que uma pergunta.

Toshiro engoliu em seco, a comida parecendo um nó em sua garganta.

–Eu... eu realmente não lembro de muita coisa depois da... da batalha. É como se... como se uma parte de mim estivesse faltando. Eu me lembro de você, Mika-san, mas... você parece diferente. Mais velha?

–Correto. Sua estase temporal durou aproximadamente 21 meses. Um ano e nove meses terrestres — informou Mika, com a mesma neutralidade com que relataria o clima.

A informação atingiu Toshiro como uma onda de choque. Um ano e nove meses? Ele havia perdido quase dois anos de sua vida, adormecido em uma cama de hospital?

–V-vinte e um meses? — gaguejou ele, o garfo caindo de sua mão trêmula. — Em que ano... em que ano nós estamos?!

–Ano Gregoriano de 2006. Considerando sua data de nascimento registrada e a minha, ambos temos agora dezesseis anos de idade cronológica — respondeu Mika, impassível.

Dezesseis anos. Ele havia feito catorze anos no dia em que tudo aconteceu. O dia em que aceitou o poder. O dia em que... sua mãe... A realização o atingiu com força total. Ele havia perdido não apenas tempo, mas momentos preciosos, talvez os últimos, com ela. Uma vertigem o tomou, o quarto pareceu girar. Ele levou as mãos à cabeça, tentando conter a crise existencial que ameaçava engolfá-lo.

–Respire fundo. Hiperventilação não é construtiva — instruiu Mika, observando sua reação com um interesse puramente clínico.

Antes que Toshiro pudesse se recompor, a porta do quarto se abriu com um estrondo, e Nayomi entrou, um sorriso largo e energético no rosto, contrastando violentamente com a atmosfera sombria do quarto.

–E aí? Foi neste quarto que encomendaram o serviço de despertar defunto?! — brincou ela, a voz alta e cheia de vida.

Mika apenas lançou um olhar breve e desinteressado na direção de Nayomi antes de voltar sua atenção para o tablet. Toshiro, pego de surpresa, conseguiu esboçar um sorriso fraco.

Nayomi correu até ele, envolvendo-o em um abraço apertado e caloroso que quase o derrubou da cadeira.

–Toshiro! Você acordou! Finalmente! — exclamou ela, afastando-se para olhá-lo nos olhos, a alegria genuína brilhando em seu rosto.

–Senhorita Nayomi! — disse ele, o nome vindo naturalmente, uma das poucas âncoras em seu mar de memórias confusas. O abraço dela, a familiaridade de sua presença, era reconfortante.

–Que bom que você ainda se lembra de mim! — disse Nayomi, parecendo genuinamente aliviada. — Os médicos estavam pessimistas, sabe? Diziam que a chance de você reter memórias significativas era de apenas quarenta por cento. Quarenta! Dá pra acreditar?

A menção aos médicos e à perda de memória trouxe de volta as perguntas que o atormentavam.

–Senhorita Nayomi... o que aconteceu? Depois da batalha... o que aconteceu comigo? E... e minha mãe?

O sorriso de Nayomi vacilou por um instante, uma sombra passando por seus olhos. Ela puxou uma cadeira e sentou-se de frente para ele, sua expressão tornando-se mais séria.

–Escuta, Toshiro... é complicado. Não podemos falar sobre tudo agora, aqui. Mas sim, nós temos muito o que conversar. Muita coisa mudou. Daqui pra frente, tudo vai ser... diferente.

Do outro lado do quarto, perto da janela, Mika observava a cidade lá fora. Ela repetiu a última palavra de Nayomi em um sussurro quase inaudível, seus olhos focados em seu próprio reflexo pálido no vidro.

–Diferente.

Nayomi bateu palmas, quebrando a tensão.

–Bom! Chega de papo furado por enquanto! Agora que nossa Bela Adormecida finalmente acordou, temos assuntos a resolver e protocolos a seguir! Vamos dar uma volta, respirar um ar... menos hospitalar.

Mika levantou-se fluidamente, guardando seu tablet. Toshiro, ainda hesitante, mas sentindo uma fagulha de esperança ao ver Nayomi, também se levantou. Os três saíram do quarto. O corredor do hospital estava relativamente movimentado, com médicos, enfermeiros e alguns pacientes circulando. No entanto, à medida que Toshiro passava, as conversas cessavam, e os olhares se voltavam para ele. Olhares de curiosidade, de medo, talvez até de ressentimento. Ele se encolheu instintivamente, sentindo-se como um animal em exposição.

Mika notou seu desconforto, embora não demonstrasse nenhuma reação externa. Eles continuaram em silêncio em direção ao elevador principal. Quando estavam prestes a alcançá-lo, uma voz amigável os interrompeu.

–Hmmm, se não é o meu paciente estrela, finalmente de pé!

Era o Dr. Kiyoshi, um homem de meia-idade com um sorriso gentil e olhos cansados, mas bondosos. Ele era o médico que, segundo Nayomi havia mencionado brevemente, fora o principal responsável por cuidar de Toshiro durante seu longo coma.

Nayomi imediatamente abriu um sorriso um pouco forçado.

–Ah, oi, Kiyoshi! Desculpa, eu deveria ter avisado que viria buscá-lo. Protocolos, sabe como é...

Dr. Kiyoshi riu, um som agradável.

–Sem problemas, Nayomi. A Central já me notificou. Fico feliz em vê-lo acordado, Toshiro. Você nos deu um belo susto. Mas vejo que está em boas mãos agora — disse ele, piscando para Nayomi.

Nayomi corou levemente.

–Que nada! O mérito é todo seu, doutor! Você e sua equipe fizeram milagres!

–Fazemos o que podemos — disse Kiyoshi, seu sorriso se alargando. — A propósito, Nayomi... você está livre hoje à noite? Pensei que talvez pudéssemos...

A compostura de Nayomi pareceu evaporar. Ela começou a gaguejar, o rosto ficando ainda mais vermelho.

–H-hoje à noite? Ahn... bom, eu não sei... com o Toshiro acordado... talvez eu tenha... ordens... sabe?

Mika, percebendo a interação social ineficiente, simplesmente deu um passo em direção ao elevador, e Toshiro, sem saber o que fazer, a seguiu, deixando Nayomi para trás.

–Tudo bem, sem pressão — disse Dr. Kiyoshi, compreensivo. — Imagino que terá muito trabalho pela frente. Mas se mudar de ideia, me liga, ok?

–Sim, sim, claro! Eu te ligo! Com certeza! — gaguejou Nayomi, antes de praticamente fugir em direção ao elevador onde Mika e Toshiro a esperavam.

Ela entrou no elevador, recompondo-se rapidamente, ajeitando a jaqueta e alisando o cabelo.

–Por que vocês me abandonaram lá com ele? — perguntou ela, tentando parecer irritada, mas ainda um pouco corada.

–Análise de contexto indicou que a interação era de natureza pessoal. Nossa presença foi considerada supérflua — respondeu Mika monotonamente.

Toshiro, observando a troca e lembrando do sorriso do doutor, não resistiu.

–Até que vocês formam um casal fofo, Senhorita Nayomi.

Nayomi lançou-lhe um olhar fulminante, misturado com embaraço.

–Vamos mudar de assunto, sim? Já perdemos tempo demais! Temos um cronograma a cumprir!

A porta do elevador se fechou. Nayomi digitou uma longa sequência numérica em um painel oculto. O elevador começou a descer, mas em vez de um poço escuro, as paredes se tornaram transparentes, revelando uma visão estonteante. Eles desciam por um vasto complexo subterrâneo, uma cidade vertical de metal e luz. Plataformas interconectadas, passarelas suspensas, escadas rolantes que serpenteavam entre níveis repletos de laboratórios, hangares e áreas de treinamento. Visto de cima, o layout

parecia uma série de intrincados padrões geométricos, quase como mandalas tecnológicas. Era a verdadeira Base da Univer X.

Toshiro ficou boquiaberto, pressionando o rosto contra o vidro, tentando absorver a escala e a complexidade do lugar. Aquele era apenas o primeiro nível subterrâneo.

O elevador parou suavemente, e as portas se abriram para um corredor largo e impecavelmente limpo. Nayomi os guiou por uma série de corredores idênticos, suas botas ecoando no chão polido. Finalmente, pararam diante de um portão maciço de aço escovado, sem maçanetas ou fechaduras visíveis. O portão deslizou silenciosamente para o lado, revelando não mais corredores metálicos, mas um jardim.

Um jardim subterrâneo de beleza impossível. Grama de um verde vibrante, árvores exóticas com folhagens luminosas, flores que emitiam um brilho suave e, ao fundo, o som relaxante de uma cachoeira caindo em um lago cristalino. O ar era fresco e perfumado. Parecia um pedaço do paraíso escondido nas entranhas da Terra.

–Uau... — sussurrou Toshiro, maravilhado. — Isso... isso tudo é incrível!

Nayomi sorriu, um sorriso genuíno desta vez, apreciando a reação dele. Mika, no entanto, permaneceu impassível, seus olhos varrendo o ambiente com uma familiaridade distante, quase triste.

Enquanto Toshiro admirava a paisagem, partículas de luz começaram a se aglutinar no ar à frente deles, formando rapidamente um holograma tridimensional. Era a figura sombreada de um homem alto, vestindo o que parecia ser um sobretudo e um quepe militar. Sua forma era translúcida, mas sua presença era imponente.

Instantaneamente, Mika e Nayomi assumiram uma postura rígida de sentido. Toshiro, percebendo a mudança, rapidamente as imitou, endireitando os ombros. A figura holográfica falou, sua voz ressoando pelo jardim artificial, calma, controlada, mas com um poder inegável:

–Permitam-me apresentar-me formalmente. Sou Kurotsuki. Comandante Supremo da Univer X International Company, Divisão Japonesa.

Era ele. O homem por trás de tudo. Toshiro sentiu um calafrio, apesar da beleza do ambiente.

–Você esteve em estase por um período considerável, Toshiro Matsumo — continuou o holograma, dirigindo-se diretamente a ele. — Tempo necessário para sua recuperação e para a análise dos eventos. Você é, como deve saber, um dos portadores designados da Pedra Celest, contida no artefato em seu pescoço.

Toshiro levou a mão ao colar instintivamente. Ele ainda estava lá. A fonte de seu poder, de sua dor.

–Mas... o que aconteceu? Comigo? Naquela batalha? — A pergunta escapou antes que ele pudesse contê-la.

O holograma de Kurotsuki pareceu observá-lo por um momento.

–Seus protocolos de contenção falharam. Você perdeu o controle sobre o poder da Pedra.

–Controle? Como assim? Eu não... eu não me lembro... — Toshiro sentiu a névoa em sua mente se adensar.

–Sua memória está fragmentada, como previsto — disse Kurotsuki. — Talvez uma demonstração visual seja mais eficaz. Preste atenção.

No instante seguinte, o jardim paradisíaco desapareceu. As árvores, as flores, a cachoeira... tudo se dissolveu, substituído por uma recriação holográfica terrivelmente realista da cidade de Hoshizoru em chamas, no dia da batalha. Eles estavam agora em uma plataforma de observação virtual, olhando para a devastação. E lá, no centro do caos, estava ela: a Fera Vermelha. Sua forma monstruosa, sua fúria cega, sua destruição implacável... tudo reproduzido com detalhes excruciantes.

Toshiro assistiu, horrorizado, enquanto seu eu transformado rasgava a cidade, ignorando os esforços da ELO, destruindo o Skar gigante com uma brutalidade selvagem. Ele viu a si mesmo, ou aquela coisa que ele se tornou, rugindo para o céu em um misto de triunfo e agonia. A realidade da simulação era tão visceral que ele podia quase sentir o cheiro da fumaça, ouvir os gritos, sentir o chão tremer.

Mika e Nayomi assistiam em silêncio, seus rostos tensos. O peso do que aconteceu pairava sobre eles.

Toshiro não aguentou. Suas pernas cederam, e ele caiu de joelhos na plataforma holográfica, as mãos cobrindo o rosto, o som da destruição ecoando em seus ouvidos.

–Esse... é você — disse a voz calma de Kurotsuki, cortando o caos simulado.

–Não... não pode ser... — soluçou Toshiro, balançando a cabeça em negação. — Isso é impossível! E-esse monstro... não sou eu!!

Ele ergueu o rosto, buscando os olhos de Nayomi, implorando por uma negação, uma explicação. Mas Nayomi desviou o olhar, a cabeça baixa.

–É você mesmo, Toshiro — confirmou ela, a voz baixa, quase inaudível.

Mika, por outro lado, o encarou diretamente, a frieza em seus olhos cortando mais fundo que qualquer lâmina.

–A negação é uma resposta emocional ineficiente. Quanto mais rápido você aceitar a realidade de suas ações, Toshiro, mais fácil será a transição para a próxima fase.

Suas palavras eram como sal na ferida. Toshiro voltou-se para o holograma de Kurotsuki, lágrimas escorrendo livremente por seu rosto.

–Mesmo cientes desta... capacidade destrutiva... nós o escolhemos, Toshiro — disse Kurotsuki, sua voz mantendo o tom neutro. — Escolhemos dar-lhe a oportunidade de redimir-se. De usar esse poder para proteger, não para destruir. Para nos ajudar a salvar este mundo. Para, talvez, compensar as inúmeras vidas perdidas como resultado direto de sua falta de controle.

As palavras eram uma faca de dois gumes: uma oferta de redenção envolta em uma acusação esmagadora.

–Mas... e se acontecer de novo? — sussurrou Toshiro, o medo e a culpa o sufocando. — E se eu falhar? Se eu... sair do controle outra vez!?

–Isso não ocorrerá — respondeu Kurotsuki com certeza absoluta. — Implementamos novas medidas de contenção. Protocolos aprimorados. Sua... besta interior... será mantida sob controle.

A forma como ele disse "besta interior" fez um arrepio percorrer Toshiro. Ele ainda estava tremendo, indeciso, perdido.

–Eu não sei... eu não consigo... isso tudo... é demais...

–Escuta aqui, Toshiro! — A voz de Nayomi o interrompeu, firme, quase dura. — Chega de autopiedade! O mundo lá fora está desmoronando! Nós precisamos de soldados!

Precisamos de pessoas dispostas a lutar, a se sacrificar! Pessoas fortes que enfrentem os problemas de frente! Que lutem pelas vidas que ainda podem ser salvas! Você tem o poder para fazer a diferença! Vai usá-lo ou vai continuar choramingando?

Toshiro levou as mãos à cabeça novamente, confuso, sobrecarregado, incapaz de formular uma resposta. As lágrimas o cegavam, a culpa o paralisava.

Mika observou sua hesitação com desprezo crescente. De repente, ela avançou e, com uma velocidade surpreendente, desferiu um soco certeiro no rosto de Toshiro. O impacto o jogou para trás, estatelado no chão holográfico. Antes que pudesse reagir, Mika estava sobre ele, agarrando a gola de sua camiseta hospitalar, seus olhos azuis faiscando com uma fúria fria.

–Olha aqui, seu projeto de herói patético! — sibilou ela, o rosto a centímetros do dele.

–Eu não perdi quase dois anos monitorando seus sinais vitais insignificantes pra você acordar e ter uma crise de consciência! Você viu o que fez! Você viu a carnificina! O mínimo que você pode fazer agora é engolir seu medo e aceitar sua responsabilidade! Cale a boca e lute!

–Mas não foi minha culpa! — gritou Toshiro, a injustiça da acusação misturando-se à sua dor. — Eu não queria fazer aquilo! Não fui eu!!

–Que patético — murmurou Nayomi, desviando o olhar com decepção. A voz de Kurotsuki soou novamente, final, decisiva.

–Nayomi. O sujeito demonstra instabilidade emocional e recusa em aceitar a responsabilidade. Protocolo de rejeição ativado. Remova o artefato Celest e dispense-o da instalação.

Nayomi assentiu rigidamente. O holograma de Kurotsuki e a simulação da cidade destruída desapareceram, deixando-os novamente no jardim vazio e silencioso. Mika soltou Toshiro com um empurrão desdenhoso e saiu da sala sem olhar para trás, sua raiva uma aura palpável ao seu redor.

Nayomi ajudou Toshiro a se levantar, mas seu toque era frio, distante. Em silêncio, ela o conduziu de volta ao elevador de vidro. A subida foi tensa, nenhum dos dois disse uma palavra. Toshiro mantinha a cabeça baixa, a vergonha e a confusão queimando dentro dele. Nayomi olhava fixamente para frente, sua expressão indecifrável.

–Desculpe, Senhorita Nayomi — murmurou ele quando o elevador parou no nível do hospital.

Ela não respondeu. Continuaram em silêncio até o portão principal da base, as grandes grades de metal que separavam a instalação do mundo exterior. Ali, Nayomi parou. Com um movimento rápido e preciso, ela retirou o colar com a Pedra Celest do pescoço de Toshiro. A sensação de perda foi imediata, um vazio frio onde antes havia poder e dor.

Ela guardou o colar em uma pequena caixa acolchoada.

–Agora você está livre — disse ela, a voz desprovida de emoção. — Livre para ir.

Toshiro abriu a boca para dizer algo, para implorar, para entender, mas Nayomi já havia se virado, suas costas rígidas enquanto se afastava, deixando-o sozinho do lado de fora do portão.

Livre. Mas livre para quê? Sem memórias claras, sem família, sem propósito. Rejeitado, marcado como um monstro. Ele olhou para a base imponente atrás de si, depois para a

cidade desconhecida à sua frente. Estava perdido. Um pássaro expulso da gaiola, sem saber voar, sem ter para onde ir.

Enquanto Toshiro começava a caminhar sem rumo pelas ruas de Hoshizoru, Nayomi retornava às profundezas da base. No elevador, a máscara de indiferença caiu, revelando um turbilhão de emoções conflitantes em seu rosto. Ela foi diretamente para a sala de Kurotsuki.

O comandante estava sentado em sua cadeira minimalista, os dedos entrelaçados sobre a mesa vazia, o escritório imenso e sombrio refletindo sua própria natureza enigmática. Tatshu estava ao seu lado, como uma sombra leal.

Nayomi parou a alguns metros da mesa, na área iluminada designada.

–O artefato foi removido e o sujeito dispensado, Comandante — relatou ela, estendendo a caixa.

Tatshu se adiantou, pegou a caixa e retornou ao lado de Kurotsuki.

–Comandante Kurotsuki... — começou Nayomi, a hesitação em sua voz. — Posso fazer uma pergunta? Sobre o procedimento?

Kurotsuki inclinou a cabeça minimamente.

–Prossiga.

–Por que deixá-lo ir? O senhor investiu recursos significativos em sua recuperação. Por que mandá-lo embora agora?

Um sorriso quase imperceptível tocou os lábios de Kurotsuki.

–Porque ele voltará, Nayomi. Ela franziu a testa, confusa.

–Ele não tem nada — explicou Kurotsuki friamente. — Memórias fragmentadas. Nenhuma família. Nenhum lar. O mundo o verá como o monstro que ele acredita ser. A rejeição, o isolamento... eles o quebrarão. E quando ele estiver no fundo do poço, sem nenhuma outra opção, ele retornará. E então, ele aceitará. Ele implorará pelo poder que agora rejeita. Ele será nosso.

Nayomi sentiu um calafrio percorrer sua espinha ao ouvir a crueldade calculista nas palavras do comandante. Era um jogo psicológico terrível. Ela agradeceu rigidamente pela resposta e retirou-se, a perplexidade e o desgosto estampados em seu rosto.

Decidiu procurar Mei para almoçar, talvez para desabafar, mas o laboratório dela estava vazio. Nenhuma resposta no comunicador. "Onde diabos ela se meteu?", pensou Nayomi, frustrada. Decidiu almoçar sozinha.

11:30 A.M

Restaurante Sakyu Center “Miharashi no Oka”

O restaurante tinha uma vista espetacular da praia, um contraste gritante com a atmosfera opressora da base. Toshiro estava ali, encostado na mureta do terraço, olhando para as ondas que quebravam na areia. Estava exausto de andar sem rumo, a fome roendo seu estômago, a confusão e o desespero pesando em sua alma. "Voltar? Para quê? Para ser um monstro controlado? Mas para onde ir? Meus pais... onde estão meus pais?" A névoa em sua memória era uma tortura.

Nayomi estacionou seu carro esportivo e desceu, caminhando em direção à entrada do restaurante. Foi então que o viu. O garoto encostado na mureta, o cabelo despenteado, os ombros caídos. Seu coração deu um salto. Ela hesitou por um momento, lembrando da dureza com que o tratara, das ordens de Kurotsuki. Mas algo em sua postura desolada a impeliu a se aproximar.

–Toshiro? É você mesmo? — chamou ela suavemente, tentando não assustá-lo.

Ele se virou, surpreso ao vê-la. Havia constrangimento em seus olhos, a lembrança recente da rejeição.

–Ah... Senhorita Nayomi!

Nayomi sentiu uma pontada de culpa. Aproximou-se mais, a voz baixa.

–Toshiro, olha... sobre mais cedo... me desculpe. Eu fui dura demais. Eu... Ele a interrompeu, um sorriso triste, mas genuíno, surgindo em seus lábios.

–Tudo bem, Senhorita Nayomi. Eu entendo. A senhora estava apenas seguindo ordens. Eu... eu acho que mereci.

A maturidade inesperada em sua resposta a surpreendeu. Naquele momento, o estômago de Toshiro roncou alto, quebrando a tensão. Nayomi não pôde deixar de sorrir.

–Bom, parece que alguém está precisando de combustível. Que tal me fazer companhia no almoço? Por minha conta.

Os olhos de Toshiro se iluminaram ligeiramente. Ele assentiu. Entraram no restaurante e escolheram uma mesa com vista para o mar. Fizeram seus pedidos. Enquanto esperavam, Nayomi retomou a conversa, mais gentilmente desta vez.

–Toshiro, falando sério... o que você vai fazer agora? Você mesmo disse que não se lembra de muita coisa.

Ele olhou para o mar, o olhar perdido.

–Eu não sei, Senhorita Nayomi. Não sei mesmo. É tudo... tão confuso. Sinto que perdi algo importante, mas não consigo alcançar...

Nayomi estendeu a mão sobre a mesa e tocou a dele gentilmente.

–Toshiro... pense bem. Por favor, reconsidere a oferta do Comandante. Eu sei que ele é... difícil. E o que aconteceu foi terrível. Mas lá na base... você teria um lugar. Treinamento. Apoio. Você não estaria sozinho nisso.

Toshiro olhou para a mão dela sobre a sua, depois para os olhos dela, buscando sinceridade. Ele estava tão perdido, tão sozinho... A mão de Nayomi pousou sobre a de Toshiro, um toque quente e firme que contrastava com o frio que ele sentia por dentro.

–Toshiro, por favor... reconsidere. Aceite a oferta do comandante Kurotsuki. Lá... lá você não estaria sozinho. Teria um lugar, apoio. Nós estaríamos lá. Eu estaria lá.

A sinceridade em sua voz era quase palpável, mas a memória da rejeição ainda estava fresca. Toshiro puxou a mão, não por raiva, mas por uma vergonha súbita, uma sensação de não ser digno daquele apoio.

–Eu... eu não sei, Senhorita Nayomi — murmurou ele, a voz embargada, os olhos fixos na mesa. — Eles... todos vocês... pareciam confiar tanto em mim antes. Mas e se eu falhar de novo? E se aquela... coisa... voltar? E se eu machucar mais alguém? Se eu decepcionar... você?

As lágrimas que ele tentava conter escaparam, traçando caminhos quentes em seu rosto. Ver a vulnerabilidade crua do garoto pareceu quebrar algo na compostura de Nayomi. Um sorriso genuíno, tingido de compaixão, iluminou seu rosto.

–Ei... — disse ela suavemente. — Nós estamos aqui desta vez. Eu estou aqui. Não vamos deixar aquilo acontecer de novo. Eu prometo, Toshiro. Eu vou cuidar de você. Custe o que custar.

A promessa, dita com tanta convicção, atingiu Toshiro em cheio. Era mais do que ele esperava, mais do que sentia merecer. Uma onda de gratidão e alívio o submergiu, e as lágrimas fluíram mais livremente.

–Senhorita Nayomi... mui-muito... obrigado! — conseguiu dizer entre soluços, a cabeça baixa para esconder a intensidade de sua emoção.

Nayomi ficou momentaneamente sem palavras, observando-o com uma expressão de ternura protetora. Naquele instante, o garçom retornou com a comida, sua chegada quebrando o momento íntimo. Ele olhou de Nayomi para Toshiro, que tentava disfarçar o choro, e perguntou, preocupado:

–Senhorita? Está tudo bem com o rapaz?

Nayomi recompôs-se rapidamente, adotando uma expressão de tristeza teatral.

–Ah... é que... o cachorrinho dele. Faleceu hoje de manhã. Ele está arrasado. O garçom levou a mão à boca, os olhos arregalados de compaixão.

–Oh, céus! Eu sinto muitíssimo, jovem! Perder um amigo assim é terrível!

–Obrigada pela compreensão — disse Nayomi, com a voz embargada. O garçom assentiu com simpatia e se afastou apressadamente.

Nayomi gentilmente ergueu o queixo de Toshiro, usando um guardanapo para secar suas lágrimas. — Não chore mais, ok? Vai ficar tudo bem.

Mal terminara de falar, o garçom voltou, ainda mais compadecido.

–Senhorita, com licença. O gerente ouviu a história e ficou muito comovido. Ele insiste que a refeição de vocês hoje é por conta da casa. Nossos pêsames pela perda do cachorrinho.

Nayomi agradeceu profusamente, mantendo a expressão triste enquanto o garçom se retirava. Assim que ele se afastou, Toshiro não conseguiu mais segurar. Uma risada borbulhante escapou por entre as lágrimas remanescentes. Nayomi olhou para ele, primeiro surpresa, depois um sorriso divertido surgiu em seus lábios.

–Temos que vir aqui mais vezes, definitivamente! — disse ela, piscando. — Agora, vamos comer antes que a comida esfrie e o gerente descubra que seu cachorro imaginário está ótimo!

Ambos riram, uma risada genuína que aliviou a tensão e solidificou um novo entendimento entre eles. Enquanto comiam, Nayomi observava Toshiro. A vulnerabilidade ainda estava lá, mas havia também uma centelha de determinação ressurgindo. Aquele choro, aquela aceitação de sua promessa, era a confirmação silenciosa que ela precisava. Ele voltaria para a Univer X. E um futuro incerto, repleto de perigos e potenciais, começava a se desenhar para ele.

Nas profundezas gélidas e silenciosas da base, em uma câmara oculta conhecida por poucos, Kurotsuki e Tatshu contemplavam o passado e o futuro. Fileiras de criotubos se

alinhavam nas sombras, seus ocupantes indistintos envoltos em névoa gelada. No centro, porém, uma cápsula maior dominava o ambiente. Inclinada, atravessada por cabos grossos como serpentes adormecidas, continha uma figura solitária imersa em um fluido translúcido de tom carmesim pálido. A iluminação mínima lançava sombras longas e dançantes, conferindo ao local uma atmosfera de santuário profano.

Kurotsuki pousou a mão enluvada sobre o vidro frio da cápsula central, seu olhar fixo na figura imóvel lá dentro. Sua voz, geralmente um instrumento de comando frio, era agora um sussurro carregado de uma emoção raramente expEu vou trazê-la de volta, minha querida. Eu juro.

Tatshu, parado a uma distância respeitosa, observava seu comandante com uma expressão grave. Sua voz era baixa, mas firme.

–Kurotsuki, este caminho... receio que esteja se afastando demais da luz. Kurotsuki não se virou, seus olhos ainda presos à cápsula.

–Farei o que for preciso, Professor Tatshu. O impossível é apenas uma barreira a ser transposta.

Tatshu suspirou, o som pesado no silêncio da câmara.

–Mas a que custo? Quem, tendo provado a paz dos céus, escolheria retornar voluntariamente a este inferno que chamamos de vida?

Um som eletrônico discreto, um alerta de proximidade, quebrou o silêncio tenso. Kurotsuki endireitou-se, a máscara de comandante impassível retornando ao seu lugar.

–Ele chegou.

De volta ao mundo da superfície, no estacionamento ensolarado do restaurante, a leveza do momento persistia enquanto Toshiro e Nayomi entravam no carro.

–Nossa! — exclamou Toshiro, afundando no banco do passageiro. — Acho que nunca comi tanto na vida!

Nayomi riu, ligando o motor.

–E eu nunca comi tanto sem precisar hipotecar um rim! Definitivamente, seu cachorro imaginário merece uma medalha!

A risada compartilhada preencheu o carro. Mas quando o riso diminuiu, a expressão de Nayomi tornou-se séria novamente. Ela olhou para frente, para a estrada que os levaria de volta à base.

–Toshiro... falando sério agora. Você tem certeza absoluta dessa decisão? Não há volta depois disso.

O olhar de Toshiro se perdeu na paisagem que passava pela janela, a linha distante da praia encontrando o céu.

–Tenho, Senhorita Nayomi — disse ele, a voz mais firme do que antes. — Não quero mais fugir. Não posso. E... a senhora prometeu cuidar de mim, não foi?

Seus olhos se encontraram, e a sinceridade no olhar dele dissipou qualquer dúvida que Nayomi pudesse ter. Ela sorriu, um sorriso caloroso e encorajador.

–Sim, eu prometi. E eu cumpro minhas promessas. Então, vamos nessa!

O carro acelerou, deixando o restaurante e a breve fuga da realidade para trás. A música no rádio tentava preencher o silêncio, mas a mente de Toshiro estava a mil. Nayomi cantarolava distraidamente, mas seus olhos mantinham uma vigilância atenta. Ao chegarem aos portões imponentes da Univer X, ambos desceram. Nayomi avistou Mei encostada em uma árvore perto dos dormitórios, um fino fio de fumaça subindo de seus dedos.

–Espera aqui — disse Nayomi a Toshiro, indo em direção à médica. Mei ergueu uma sobrancelha ao ver Toshiro ao lado de Nayomi.

–Ora, ora... se não é o nosso fugitivo arrependido. Devo presumir que sua lábia finalmente funcionou, Nayomi?

Toshiro sorriu timidamente. Nayomi revirou os olhos.

–Te procurei para almoçar, sabia? Onde você estava?

Mei deu uma última tragada no cigarro antes de apagá-lo sob o sapato.

–Precisava de um tempo. Assuntos de laboratório. Esqueci de avisar. Mas já estava voltando. O que manda?

–Ele decidiu voltar. Precisamos levá-lo para a readmissão e depois para a sala H15. Kurotsuki quer vê-lo.

–Já notificou o Comandante? — perguntou Mei.

Nayomi bateu na própria testa.

–Droga! Esqueci completamente!

Mei suspirou, pegando seu comunicador.

–Deixa comigo, cabeça de vento. Você ainda se perde sem mim. Enquanto Mei fazia a comunicação, Nayomi sorriu agradecida.

–O que seria de mim sem você, hein?

Com a confirmação recebida, os três seguiram para o elevador de vidro, descendo novamente para as entranhas da base. O silêncio no elevador era palpável. Toshiro observava os níveis passando, a vastidão tecnológica ainda o impressionando, mas agora com um peso diferente. Nayomi o observava discretamente. Ao chegarem ao oitavo andar, caminharam pelo corredor familiar até a porta da sala H15.

Antes de entrarem, Nayomi parou e colocou a mão no ombro de Toshiro.

–Última chance. Tem certeza, Toshiro?

Ele respirou fundo, encontrou o olhar dela e assentiu com firmeza. Desta vez, não havia hesitação.

Entraram. O jardim holográfico estava lá novamente, tão belo e irreal quanto antes. O holograma de Kurotsuki materializou-se diante deles.

–Ele retornou, Comandante Kurotsuki — anunciou Nayomi formalmente.

Kurotsuki observou Toshiro por um longo momento, seu olhar holográfico parecendo penetrar fundo.

–Um mundo belo — disse ele, a voz ressoando suavemente. — Mas uma ilusão. Nosso mundo real, Toshiro, caminha para um destino muito diferente, a menos que intervenhamos. Permita-me mostrar-lhe a verdade que você agora escolheu enfrentar.

O paraíso dissolveu-se, substituído por uma visão apocalíptica. Uma cidade em ruínas, engolida por uma vegetação retorcida e sinistra. O mar, visível ao longe, tinha a cor de sangue coagulado sob um céu permanentemente tempestuoso e escuro. A desolação era absoluta.

–Este... este é o nosso futuro? — perguntou Toshiro, a voz embargada pelo horror da visão.

–É o futuro provável, se falharmos. Se os portadores das Pedras Celest não cumprirem seu propósito — respondeu Kurotsuki, seu olhar varrendo a paisagem desolada.

A visão, por mais terrível que fosse, solidificou a resolução de Toshiro. Ele ergueu a cabeça, a determinação brilhando em seus olhos.

–Então... eu aceito. Eu entro para a Univer X. Eu lutarei.

Um leve sorriso de satisfação pareceu tocar os lábios holográficos de Kurotsuki. Mei e Nayomi trocaram um olhar de alívio contido.

–Muito bem — disse Kurotsuki. — Sua decisão foi registrada. A partir deste momento, Toshiro Matsumo, você é reintegrado como agente operacional da Univer X International Company. Seu posto designado: Portador Celest Primário. E seu indicativo de chamada, para todos os efeitos operacionais e para romper com as amarras do passado, será... Shiro.

–Shiro... — repetiu Toshiro, testando o nome em seus lábios. Era estranho, mas também... novo. Um recomeço.

–Nayomi — continuou Kurotsuki. — Leve Shiro ao Departamento de Integração de Agentes para os procedimentos formais.

Nayomi assentiu. O holograma de Kurotsuki desapareceu, e o jardim ilusório retornou. Eles se despediram de Mei, que seguiu para seus próprios afazeres no laboratório.

No corredor, Nayomi deu um leve soco no ombro de Shiro.

–Shiro, hein? Gostei. Tem força.

–É... diferente — admitiu ele. — Significa que não sou mais Toshiro?

–Para a Univer X, em missão, você é Shiro — explicou Nayomi. — É uma forma de criar uma nova identidade, focada no dever. Esquecer o passado, enfrentar o futuro, todo aquele blá blá blá oficial. Mas para mim... você ainda é o Toshiro que prometi cuidar. Agora vamos, sua nova vida começa agora!

Eles seguiram para um elevador diferente, um modelo mais funcional, com paredes metálicas. Subiram para um dos níveis administrativos superiores. A porta se abriu para uma sala ampla e movimentada, repleta de mesas, telas e agentes trabalhando diligentemente. No centro, uma estação de comando circular era ocupada por um homem de aparência eficiente e olhar aguçado.

–Ah, Nayomi! Shiro! Estava esperando vocês. Fui notificado, já adiantei tudo.

–Sempre eficiente, Kaito! — cumprimentou Nayomi.

Kaito riu. — Tempo é recurso, não podemos desperdiçar. Então, Shiro, pronto para se tornar oficial?

Shiro assentiu. Kaito operou alguns comandos em seu console. Uma impressora 3D próxima zumbiu e, após alguns instantes, um compartimento se abriu com uma lufada de vapor frio, revelando um crachá de identificação metálico e brilhante. Tinha a foto de Shiro, seus dados biométricos e o nome "Shiro". Era idêntico ao de Mika.

Kaito entregou o crachá a Shiro.

–Bem-vindo oficialmente à Univer X, Shiro. Você agora pertence à companhia. Shiro olhou o crachá, depois para Kaito, uma ponta de preocupação surgindo.

–Pertence? Como assim? Vocês são meus donos agora?

Nayomi riu alto. — Não, seu bobo! "Pertence" no sentido de filiação. É como uma adoção corporativa. A Univer X assume a responsabilidade legal por você, fornece suporte, mas você ainda tem seus direitos. É complicado, mas você não é propriedade de ninguém.

Shiro suspirou aliviado. Kaito sorriu.

–Seu alojamento designado é o quarto 301, Prédio 9 dos Dormitórios de Agentes Celest.

–Deixa comigo, Kaito, eu o levo até lá — ofereceu-se Nayomi.

Após os agradecimentos, Nayomi e Shiro pegaram o elevador de volta à superfície, emergindo novamente na área do hospital. Caminhavam em direção à saída quando o comunicador de Nayomi tocou. Ela atendeu, a conversa tornando-se rapidamente séria. Shiro percebeu pela tensão em sua voz que algo urgente havia surgido.

Ela desligou, o rosto preocupado.

–Shiro, desculpe. Surgiu uma emergência de nível Alfa. Preciso ir imediatamente. Não vou poder te levar até o dormitório.

–Tudo bem, Senhorita Nayomi! — disse Shiro prontamente. — Só me mostre qual é o prédio, eu me viro.

Nayomi sorriu agradecida e apontou para um prédio moderno de seis andares, com muitas janelas, um pouco afastado dos edifícios principais. — É aquele ali, o nove. Terceiro andar. Seu crachá abre a porta principal e a do seu quarto. Tome cuidado, ok? E bem-vindo de verdade.

Eles se despediram rapidamente, e Nayomi correu em direção a um veículo de transporte rápido que já a esperava. Shiro ficou observando-a partir, depois se virou e começou a caminhar lentamente em direção ao seu novo lar. O sol da tarde banhava a base, mas uma sombra de incerteza pairava. No caminho, uma pequena flor silvestre, teimosamente crescendo perto de uma pedra, chamou sua atenção. Ele se abaixou e a colheu, admirando sua cor vibrante.

–Sabe que acabou de encurtar a vida dela, não é?

A voz fria e familiar o fez dar um pulo. Mika estava parada ali, observando-o com sua intensidade habitual.

Shiro ficou sem graça, escondendo a flor atrás das costas.

–Ah... oi, Mika-san. Eu só...

–Então, você voltou — constatou ela, ignorando a flor. — Por quê?

A pergunta direta o pegou desprevenido. Ele gaguejou, tentando formular uma resposta coerente, ainda intimidado pela lembrança do confronto anterior.

Os olhos de Mika pousaram no novo crachá em seu peito. "Shiro". Ela ergueu a mão como se fosse tocá-lo, e Shiro recuou instintivamente.

Mika parou, a mão suspensa no ar. Uma expressão quase imperceptível de... surpresa? Ou talvez mágoa? passou por seu rosto.

–Espera... você... está com medo de mim?

–Não! Não, é que... — Shiro desviou o olhar, sem saber o que dizer.

Um silêncio tenso se instalou. Então, Mika baixou a mão e disse algo que Shiro jamais esperaria ouvir dela, a voz baixa, quase um murmúrio:

–Desculpe. Pelo... pelo soco. E pelo que eu disse. Foi... inadequado.

Shiro ficou boquiaberto. Mika pedindo desculpas? Ele conseguiu esboçar um pequeno sorriso.

–T-tudo bem, Mika-san. Eu... eu entendo.

Outro silêncio, menos tenso desta vez. Mika olhou para o prédio dos dormitórios.

–Bom. Agora você é um de nós. Oficialmente. Shiro.

–Sim — respondeu ele, sentindo um misto estranho de apreensão e pertencimento. — Acho que agora somos... parceiros?

Mika deu de ombros, um movimento quase imperceptível.

–Protocolos de parceria ainda não definidos. Venha, vou te mostrar o caminho para o seu alojamento.

Shiro a agradeceu, e eles começaram a andar lado a lado. O silêncio entre eles não era mais hostil, apenas... quieto. Chegaram ao Prédio 9.

–Então é aqui? — perguntou Shiro.

–Sim. Terceiro andar, quarto 301. Você é o Portador Três — explicou Mika. — O prédio tem seis andares, mas atualmente apenas os alojamentos dos portadores ativos estão operacionais.

–Seis andares? Então... há espaço para mais? E quem são os outros? Você é a Dois, eu sou o Três... e o Um?

–Correto quanto ao espaço. Quanto aos outros... — Mika hesitou por um instante. — O Portador Um está em missão de longa duração. Informações confidenciais. Não era... comunicativo. Agora, vamos. Preciso de um banho.

Usaram seus crachás para entrar no prédio. Mika o acompanhou até a porta do 301.

–Cada andar é codificado para o respectivo portador. Apenas seu crachá abre esta porta e permite acesso total ao andar. Eu moro no andar de baixo, o dois. Alguma pergunta?

Shiro sorriu, sentindo-se genuinamente grato.

–Não, Mika-san. Obrigado por tudo.

Mika virou-se para ir embora, mas parou na escada.

–E Shiro... tente sorrir menos. Faz você parecer um idiota.

E com isso, ela desceu as escadas, deixando Shiro com uma expressão confusa e ligeiramente divertida. Ele passou o crachá na porta, que se abriu com um clique suave. Entrou e ficou boquiaberto.

O apartamento era enorme. Uma sala de estar espaçosa dominada por uma janela panorâmica que ia do chão ao teto, oferecendo uma vista deslumbrante da cidade de Hoshizoru e da base abaixo. Corredores levavam a uma cozinha moderna, um banheiro luxuoso e um quarto amplo que também parecia ter outros cômodos anexos. Era mais espaço e luxo do que ele jamais imaginara.

–ISSO AQUI... É O PARAÍSO!! — gritou ele para o vazio, a voz ecoando no apartamento silencioso.

Ele correu para o meio da sala e se jogou no chão macio, rindo, uma sensação de alívio e excitação tomando conta dele. Talvez, apenas talvez, as coisas pudessem melhorar.

20 de Janeiro de 2006

10:30 P.M

Nível Ômega - Sala de Análise Estratégica - Base Univer X

Na sala mais segura e secreta da base, Kurotsuki e Tatshu examinavam projeções holográficas e relatórios físicos espalhados sobre uma grande mesa de análise. Imagens da batalha de Shiro como a Fera Vermelha contra o Skar gigante eram exibidas em detalhes perturbadores.

–O Pentágono confirmou. Múltiplas assinaturas energéticas Skar de classe elevada detectadas sobre a região amazônica, América Latina — relatou Tatshu, apontando para um mapa tático.

Kurotsuki observou o mapa sem grande interesse.

–Irrelevante para nossa jurisdição primária. A divisão americana que lide com seus próprios demônios.

Tatshu pegou uma imagem de alta resolução do Skar gigante que Shiro havia enfrentado.

–Não deveríamos nos isolar, Comandante. A ameaça é global. Quando o fim chegar, não haverá fronteiras.

Ele estendeu a imagem para Kurotsuki, que a pegou. Seus olhos se estreitaram ao analisar os detalhes da criatura.

–É ele... — murmurou Kurotsuki, um reconhecimento sombrio em sua voz. — O Décimo Segundo. O Arauto.

Com uma expressão indecifrável, Kurotsuki virou-se e saiu da sala, deixando Tatshu sozinho com as imagens da destruição e as previsões sombrias. Kurotsuki dirigiu-se a uma seção discreta de seu escritório principal. Uma parede lisa deslizou para o lado ao comando de voz, revelando um elevador privativo. Um scanner retinal confirmou sua identidade, e as portas se fecharam. Dentro, ele colocou a palma da mão em outro scanner biométrico. O elevador desceu, não para os níveis conhecidos da base, mas para algo muito mais profundo.

As portas se abriram para o nada. Um vazio absoluto, uma escuridão que parecia engolir a própria luz e o som. Kurotsuki deu alguns passos para fora do elevador, a única fonte de luz naquele negrume infinito. A porta atrás dele permaneceu aberta, um retângulo luminoso flutuando na escuridão.

Então, o vazio respondeu à sua presença. Sob seus pés, um cubo translúcido de energia azulada materializou-se, elevando-o ligeiramente. Simultaneamente, a escuridão ao redor se transformou. O preto absoluto deu lugar a um céu infinito, um azul vibrante pontilhado por nuvens brancas que se moviam em um ritmo acelerado e hipnótico. Era como estar no topo do mundo, flutuando em um cubo de energia sobre um céu sem fim. A porta do elevador atrás dele fechou-se, desaparecendo completamente, deixando-o sozinho naquela realidade impossível. Com um olhar que poderia congelar aço, Kurotsuki deixou Tatshu sozinho na câmara fria, um silêncio pesado pairando sobre os segredos adormecidos. Seus passos eram precisos, sem hesitação, enquanto se dirigia a uma seção discreta de seu vasto escritório. Uma parede lisa, indistinguível das outras, deslizou para o lado ao seu comando biométrico silencioso, revelando não uma sala, mas o poço de um elevador privativo.

Um scanner retinal piscou, confirmando sua identidade. As portas se fecharam, isolando-o do mundo exterior. No interior minimalista do elevador, um painel discreto iluminou-se ao toque da palma de sua mão. Outro scanner, mais intrusivo, mapeou sua estrutura vascular e assinatura energética. Somente após a dupla verificação, o elevador começou seu movimento – não uma subida ou descida comum, mas uma transição quase imperceptível, uma sensação de deslocamento dimensional mais do que física.

Quando as portas se abriram novamente, revelaram o nada. Um vazio absoluto, uma escuridão tão profunda que parecia absorver a própria luz e o som. Kurotsuki saiu do elevador, seus pés encontrando uma superfície que não podia ser vista. O ar era rarefeito, imóvel. O elevador atrás dele era a única referência, um retângulo de luz flutuando precariamente naquele abismo infinito.

Ele deu alguns passos calculados para dentro da escuridão. Então, o vazio respondeu. Sob seus pés, linhas de energia azulada convergiram, formando um cubo translúcido de três metros de aresta que o elevou suavemente. Simultaneamente, a escuridão ao redor se desfez como tinta em água. O preto deu lugar a um céu impossível – um azul vibrante e profundo, atravessado por nuvens etéreas que se moviam e se transformavam em um balé cósmico acelerado. Era como flutuar no ápice da criação, equilibrado em um pedestal de pura energia sobre um firmamento sem fim. A porta do elevador atrás dele dissolveu-se na paisagem celestial, apagando o último vestígio do mundo tangível.

Kurotsuki permaneceu imóvel sobre o cubo, observando o céu turbulento com uma calma que beirava o desinteresse. Então, ele falou, sua voz ressoando clara e firme naquele espaço impossível:

–Aqui estou, meus senhores. Como requisitado.

Como se conjuradas por suas palavras, sete formas majestosas materializaram-se no ar ao redor do cubo. Estátuas. Mas estátuas que emanavam uma presença antiga e poderosa. Flutuavam serenamente, esculpidas em um quartzo branco leitoso que parecia absorver e refratar a luz do céu circundante. Eram os titãs do pensamento grego: Aristóteles, com seu pergaminho; Platão, contemplativo; Sócrates, com seu semblante questionador; Alexandre, o conquistador régio; Péricles, o estadista; Hipócrates, o curador; e Homero, o poeta cego cujos olhos de quartzo pareciam ver mais do que os outros. Sentados em tronos invisíveis, seus olhos esculpidos brilhavam com uma luz interior, uma inteligência fria e penetrante. Giravam lentamente ao redor do cubo de Kurotsuki, como planetas ao redor de um sol sombrio.

Kurotsuki observava-os, sua postura ereta, um mestre de xadrez diante de peças ancestrais. O silêncio foi quebrado pela voz de Aristóteles, ressoando não do quartzo, mas diretamente na mente, antiga e lógica:

–Kurotsuki. Sua presença perturba o equilíbrio. O que o traz ao nosso conclave? A voz de Sócrates seguiu, mais áspera, inquisitiva:

–Esperamos que traga notícias que justifiquem os custos, Comandante. Os recursos desviados após a... sua recente demonstração de força bruta ainda pesam em nossas deliberações financeiras.

E então Platão, a voz mais melancólica, quase resignada:

–O ponto crucial permanece, Kurotsuki. O garoto. A anomalia. Você assegura o controle? A contenção é absoluta? Não podemos permitir outra falha...

Kurotsuki absorveu as palavras, seu rosto uma máscara impenetrável. Ele respondeu com calma calculada:

–Asseguro que a situação está sob controle, senhores. Os custos foram necessários para conter uma ameaça iminente. Quanto à profecia... venho informar que há novos desenvolvimentos.

A voz de Homero, diferente das outras, pareceu ecoar não na mente, mas no próprio espaço, como um sussurro antigo:

–A profecia... ela se agita. O fio do destino se tensiona.

Kurotsuki manteve o olhar fixo, sem demonstrar reação ao tom ominoso.

–Exato, meu senhor. Nossas análises do incidente Skar, ocorrido há um ano e nove meses, indicam fortemente que a criatura era, de fato, um apóstolo. O primeiro.

A voz de Sócrates retornou, mais afiada:

–Um apóstolo? Tão cedo? Isso acelera todos os cronogramas! Nossos preparativos militares devem ser intensificados imediatamente!

Alexandre, o Grande, interveio, sua voz mental carregada de autoridade marcial:

–Você tem certeza de que essa criatura, Neron, é o primeiro apóstolo do caos? Aquele que prenuncia o fim?

–Tenho fortes indícios, meu senhor — respondeu Kurotsuki, escolhendo as palavras com cuidado. — E sim, devemos nos preparar para as lutas vindouras. A calmaria está prestes a terminar.

Péricles, o estadista, ponderou:

–Se a análise estiver correta, não há razão para hesitar. Devemos prosseguir com os planos estabelecidos.

Platão questionou, buscando consenso:

–Todos concordam? A manutenção da base Univer, apesar dos custos crescentes, é essencial?

Um murmúrio de assentimento percorreu o conclave mental, embora algumas notas de discordância financeira fossem perceptíveis. Aristóteles concluiu:

–O objetivo final, a Recivilização, justifica os meios, Kurotsuki. Contamos com sua eficiência. Não falhe.

Kurotsuki inclinou levemente a cabeça.

–Sua vontade será cumprida.

O céu turbulento pareceu escurecer por um instante. As estátuas começaram a se dissolver, retornando ao nada de onde vieram. O cubo sob seus pés desvaneceu-se, deixando-o flutuando por um momento antes que a porta do elevador reaparecesse diante dele, abrindo-se silenciosamente. Ele entrou, e enquanto as portas se fechavam, selando a escuridão lá fora, um pensamento sombrio escapou por entre seus lábios, um sussurro apenas para si:

–Este mundo... talvez realmente não haja mais salvação.

21 de Janeiro de 2006

6:30 A.M

Dormitórios do Shiro

O bipe insistente do despertador arrancou Shiro de um sono pesado. Ele gemeu, tateando o criado-mudo até silenciar o aparelho. Sentou-se na cama, piscando para afastar as teias de aranha do sono. Um novo dia. Um dia na Univer. Um sorriso involuntário surgiu em seus lábios. Ele saltou da cama e correu para o banheiro. A água quente do chuveiro ajudou a despertar completamente seus sentidos. Encarou seu reflexo no espelho embaçado, passou a mão pelo cabelo rebelde e deu um sorriso largo e genuíno. Estava pronto.

Enrolado em uma toalha, voltou para o quarto. Sobre a cômoda, um pequeno bilhete chamou sua atenção. Ao lado, dobrado impecavelmente, um conjunto de roupas. O bilhete, escrito em uma caligrafia elegante, dizia: “Este é seu uniforme. Tenha um bom dia!” Abaixo, um pequeno desenho de um rosto sorridente.

Shiro pegou o uniforme: uma calça social preta, confortável mas resistente, e uma camisa de manga longa branca, de um tecido tecnológico que parecia respirar. Vestiu-se rapidamente, calçou os sapatos pretos designados e prendeu o crachá de identificação da Univer em seu peito. Olhou-se no espelho novamente. Diferente. Oficial. Parte de algo maior.

Arrumou o cabelo como pôde e correu para escovar os dentes, percebendo que quase havia esquecido. Nesse momento, ouviu batidas na porta. Ao abrir, encontrou Mika, já impecável em seu próprio uniforme. A versão feminina incluía uma saia preta plissada sobre meias longas que iam até as coxas, em vez da calça. O mesmo tecido tecnológico, o mesmo crachá. Ela o olhou de cima a baixo, um brilho divertido nos olhos.

–Vamos, Cinderela, ou vai perder o café da manhã? Acha que a comida vai voar até aqui?

Shiro piscou, confuso.

–Café? Mas eu nem preparei nada!

Mika revirou os olhos, mas havia um sorriso em seus lábios.

–Relaxa, novato. A gente toma café no refeitório. Anda logo.

Um sorriso de alívio e surpresa iluminou o rosto de Shiro. Ele fechou a porta atrás de si e seguiu Mika pelo corredor. Desceram as escadas, a conversa fluindo naturalmente entre eles.

–Então... o que acha que vamos fazer hoje? — perguntou Shiro, a ansiedade e a excitação misturadas em sua voz.

Mika deu de ombros, sua expressão neutra, quase entediada.

–Treinamento. O que mais seria?

Continuaram caminhando pelo campus da Univer, um complexo vasto e moderno. Chegaram a uma estrutura impressionante, um domo geodésico feito de vidro e metal que brilhava sob a luz da manhã – o refeitório principal. As portas automáticas deslizaram, revelando um espaço amplo e movimentado. Trabalhadores, pesquisadores, pessoal de segurança – todos convergiam para as longas filas do buffet.

Shiro arregalou os olhos.

–Nossa! Vamos ter que enfrentar essa fila toda? Mika bufou, agarrando o braço dele.

–Fica quieto e me segue. Temos... privilégios.

Ela o conduziu por uma entrada lateral, quase escondida, que dava acesso a uma fila muito menor, claramente destinada a pessoal selecionado. Pegaram bandejas com múltiplas cavidades. Shiro observou enquanto uma funcionária sorridente servia a comida deles: pães tostados na chapa, uma maçã vermelha e brilhante, três bananas, alguns biscoitos integrais e uma caixinha de suco. Ele notou que a comida servida na fila principal parecia mais... comum.

Mika o guiou para uma escada que levava ao segundo andar do refeitório, uma área mais reservada com uma sacada que oferecia uma vista panorâmica do campus.

Sentaram-se a uma mesa perto da balaustrada. Shiro encarou a bandeja, a variedade e a aparência apetitosa da comida o surpreendendo.

Mika percebeu seu olhar.

–Aproveita enquanto é novidade. Logo você vai estar enjoado disso. Shiro sorriu, pegando um dos pães.

–Não é isso... é que... faz tanto tempo que não como algo assim... com... sabor! — Ele deu uma mordida generosa.

Mika riu, mordendo sua própria maçã.

–Bem, aquela gororoba do hospital era comida de doente. Sem gosto de propósito. Shiro mastigou, seus olhos se arregalando ligeiramente.

–Meu Deus... isso é incrível! — disse ele, a boca ainda um pouco cheia. — É totalmente diferente daquela... pasta nutritiva que você me deu no hospital!

Mika deu uma risadinha.

–Eu avisei.

Conversaram trivialidades enquanto comiam, Shiro absorvendo cada detalhe daquele novo ambiente. Em outro lugar, Nayomi se preparava para sair de casa, bocejando enquanto terminava um pão e pegava sua garrafa térmica de café. No laboratório, a Dra. Akary já estava imersa nos preparativos para o treinamento de Shiro, ajustando parâmetros em um console holográfico. No terraço do hospital, a Dra. Mei observava a cidade distante, a fumaça do cigarro subindo em espirais lentas no ar da manhã, uma xícara de café na outra mão. No refeitório principal, o Dr. Kiyoshi ria de alguma piada com seus colegas.

Nayomi chegou à base, estacionando seu carro com precisão. No mesmo instante, Mika e Shiro saíam do refeitório. Shiro avistou o Dr. Kiyoshi à distância e acenou com um sorriso; o doutor retribuiu. Mika puxou Shiro em direção ao prédio central – um cilindro imponente revestido de janelas espelhadas. Entraram no lobby e foram direto para o elevador central.

As portas estavam quase se fechando quando avistaram Nayomi correndo em direção a eles. Ela acenou. Mika hesitou, mas Shiro instintivamente colocou a mão no sensor, impedindo o fechamento. Nayomi entrou, ofegante, com um sorriso agradecido.

–Obrigada, Shiro! Quase perdi.

O elevador desceu suavemente para o terceiro subsolo. As portas se abriram em um corredor high-tech. Nayomi assumiu a liderança.

–Sala 7.0, vamos lá.

Seguiram-na até uma porta larga que deslizou para o lado, revelando uma sala de controle repleta de equipamentos avançados. No centro, uma grande câmara de vidro se destacava. As paredes internas eram acolchoadas, e o chão parecia uma esteira multidirecional. O ambiente lá dentro era visivelmente climatizado.

Lá dentro, a Dra. Akary estava debruçada sobre um console, seus dedos voando sobre a interface.

–Bom dia! — disse ela, animada, sem tirar os olhos da tela. — Que bom que chegaram! Pontuais!

Todos retribuíram o bom-dia, exceto Mika, que já se dirigia a uma porta lateral marcada como "Vestuário - Treinamento". Nayomi se aproximou de Akary.

–Akary, viu a Mei por aí?

A Dra. Akary finalmente levantou o olhar, ajeitando os óculos.

–Mei? Pensei que estava com vocês. Ela costuma ser a primeira a chegar.

Nesse exato momento, a porta principal deslizou novamente, e a Dra. Mei entrou, espreguiçando-se dramaticamente.

–Ufa! Que sono! Por que tanta pressa? Só me atrasei uns minutinhos. Dra. Akary sorriu.

–Que bom que chegou, Mei. Agora que estamos todos aqui, podemos começar, certo?

Shiro assentiu, ansioso. Mei foi para outro console, enquanto Nayomi começou a explicar a Shiro:

–Ok, Shiro, você vai precisar colocar o uniforme de treinamento. Está no vestuário, esperando por você. Mika já foi se trocar.

Shiro foi para o vestuário indicado. Encontrou um uniforme idêntico ao de Mika, mas em um tom de roxo vibrante com detalhes dourados. Vestiu-o. O tecido era justo, quase uma segunda pele, e ele se sentiu um pouco exposto e desconfortável. A gola alta cobria boa parte do pescoço, e as luvas eram integradas às mangas. Quando saiu, Mika já estava de volta, parecendo perfeitamente à vontade em seu uniforme similar.

Mika olhou para Shiro, notando seu desconforto.

–Você se acostuma — disse ela, com um pequeno sorriso. Dra. Mei, ajustando algo dentro da câmara de vidro, comentou:

–Não precisa ter vergonha, Shiro. Faz parte do processo. É para monitoramento biométrico.

Dra. Akary, tentando animá-lo, exclamou:

–Você ficou ótimo nessa roupa, Shiro! De verdade!

Shiro conseguiu sorrir, acenando sem jeito. Nayomi se aproximou e sussurrou em seu ouvido, com um tom divertido:

–Uau, Shiro! Ficou muito sexy nessa roupa!

O rosto de Shiro ficou instantaneamente vermelho, enquanto Nayomi ria abertamente. Mei interveio:

–Típico de você, Nayomi. Vai deixar o garoto intimidado antes mesmo de começar. A porta da câmara de treinamento se abriu com um silvo. Dra. Akary anunciou:

–Muito bem, todos prontos? Vamos dar início ao Treinamento Nível Um.

Shiro e Mika assentiram e entraram na câmara. As portas se fecharam, selando-os lá dentro. Shiro olhou ao redor, maravilhado com a tecnologia. Dra. Mei falou pelo comunicador interno, sua voz clara dentro da câmara:

–Certo, o primeiro teste será uma simulação de ataque Skar de baixa intensidade. Para familiarização.

Ambos concordaram, olhando através do vidro para as doutoras e Nayomi na sala de controle. Mei continuou:

–Mika, você tem mais experiência. Peço que guie o Shiro inicialmente.

Mika assentiu. Dra. Akary iniciou a contagem regressiva em um dos consoles: "5... 4... 3... 2... 1... Iniciando simulação!"

Os vidros da câmara escureceram completamente, tornando-se opacos. Então, o ambiente ao redor deles começou a se transformar. O chão da esteira ganhou textura de terra batida, paredes holográficas surgiram, criando a ilusão perfeita de uma área rural – uma fazenda abandonada com um celeiro, cercas quebradas e pilhas de feno. O ar ficou mais frio, com cheiro de terra molhada. Do lado de fora, na sala de controle, as três mulheres observavam tudo em uma tela holográfica gigante que replicava a visão de dentro da câmara.

Mika reagiu instantaneamente, puxando Shiro para trás de uma pilha de feno.

–Não fica aí parado! Aja como se fosse real! Presta atenção! Shiro, ainda atordoado pela transformação, perguntou:

–Mas... como isso funciona?!

Antes que Mika pudesse responder, gritos guturais ecoaram à distância, aproximando-se rapidamente. Eram os Skar. Mika se levantou parcialmente, espiando por cima do feno.

–Eles estão vindo! — Ela levantou as mãos vazias na direção dos inimigos que se aproximavam. Com um brilho súbito, duas pistolas FTAC Siege, personalizadas em roxo e dourado, materializaram-se em suas mãos. Um sorriso feroz e determinado surgiu em seu rosto. — Hora do show!

Ela começou a disparar com uma precisão mortal, os tiros ecoando no ambiente simulado. Os Skar caíam, mas outros continuavam avançando. Shiro observava, boquiaberto, a eficiência de Mika. A voz da Dra. Mei soou novamente pelo comunicador:

–Vamos, Shiro, reaja! É seu treinamento também!

Ouvindo o comando, Shiro decidiu imitar Mika. Levantou as mãos, esperando que armas aparecessem. Em vez disso, uma espada longa, de aparência medieval, com runas brilhantes na lâmina, materializou-se em suas mãos. Ele ficou paralisado, olhando para a arma inesperada enquanto os Skar chegavam cada vez mais perto. Olhou para Mika, desesperado:

–O QUE EU FAÇO COM ISSO?!

Mika, sem parar de atirar, gritou de volta, irritada:

–SEI LÁ! CORTA ELES, SEU IDIOTA!

Na sala de controle, Nayomi riu.

–Ah, esses dois... vão se dar muito bem.

Em um misto de pânico e adrenalina, Shiro correu para cima dos Skar mais próximos, brandindo a espada desajeitadamente, como se fosse um porrete. Ele golpeava sem técnica, fechando os olhos em alguns momentos, acertando mais por sorte do que por habilidade. Destruía caixotes e cercas holográficas junto com os Skar. Mika parou de atirar por um momento, olhando incrédula para a falta total de estratégia de Shiro. Na sala de controle, as três mulheres também observavam, perplexas.

Shiro logo se cansou. Os Skar restantes, percebendo sua exaustão e falta de defesa, pularam sobre ele, derrubando-o e formando uma pilha sobre seu corpo. Segundos depois, a simulação terminou abruptamente. As paredes holográficas desapareceram, os Skar se dissolveram, e os vidros da câmara voltaram a ficar transparentes. Shiro estava caído no chão acolchoado, tonto e coberto de suor simulado.

Mika se aproximou, as pistolas já desmaterializadas, e ficou de pé ao lado dele, mão na cintura.

Shiro olhou para ela, ofegante.

–E aí... como eu fui?

Mika respondeu com um sarcasmo cortante:

–Foi... excelente.

Shiro conseguiu dar uma risadinha fraca.

–Você mente muito bem.

Mika desviou o olhar, escondendo um quase sorriso. Na sala de controle, as doutoras e Nayomi trocavam olhares que misturavam diversão e preocupação com o progresso do treinamento. A porta da câmara se abriu.

–Podem sair — disse Akary. — Vão tirar os uniformes e depois conversamos sobre o desempenho.

Mika e Shiro saíram. Depois de trocarem de roupa, voltaram para a sala de controle. Nayomi deu um tapinha nas costas de Shiro.

–Você tem muito o que aprender, garoto. Dra. Akary sorriu para eles.

–Bom, por hoje é só. Amanhã continuaremos com os treinamentos. Intensivos.

Akary e Mei começaram a desligar os sistemas. Nayomi se despediu delas e depois se virou para Shiro e Mika.

–Bom, crianças, hora de ir. Vocês sabem o caminho da saída, certo? Eu vou indo. Até amanhã!

Shiro se despede de Nayomi enquanto Mika só fica a observar. Mika então começa a andar, saindo da sala e indo para o corredor. Shiro a segue, já que não tem para onde ir. Pelos corredores, ela entra no elevador e ele faz o mesmo. A porta se fecha e eles estão dentro do elevador, Mika à frente da porta e Shiro atrás dela. O elevador começa a se mover. Algo estranho é sentido por Shiro, algo como uma sensação de que já viveu aquele momento em algum lugar.

Ambos seguem para seus dormitórios. Mika vai diretamente para o seu sem dizer nem um "Tchau" para Shiro, que segue para seu próprio dormitório. Ao se aproximar da porta, ele vê a câmera de reconhecimento acima dela. Ela o analisa e imediatamente a porta se abre. Shiro entra e as cortinas que cobrem as imensas janelas se abrem, dando uma visão esplendorosa da cidade. Ele se aproxima da janela devagar, para a alguns centímetros dela e pergunta para si mesmo:

–O que aconteceu? Por que ninguém me diz nada?

Shiro suspira. Ele vai até a cozinha, abre sua geladeira e pega um jarro com água. Ele coloca o jarro sobre a mesa que fica no centro da cozinha. Em seguida, ele vai até o armário pegar um copo. Ele se ergue, alcançando um copo de vidro. Shiro imediatamente volta para a mesa, colocando o jarro sobre o copo, enchendo-o com água. Ele pega o copo e começa a beber, mas um sentimento misto de medo e desconforto abala seu corpo. Algo inexplicável é sentido, ele não consegue descrever. Seus olhos dilatam e seu corpo começa a tremer levemente. O copo cai de sua mão, deixando-o cair no chão. Cacos de vidro se espalham por sua cozinha.

Shiro está paralisado. Ele tem uma visão de frames de segundos: vê uma criatura gigantesca rugindo em meio a uma floresta. Ele nota nos olhos da criatura uma vermelhidão sanguinária e então a visão termina. Shiro grita sem ter ideia do que teria acontecido. Ele volta para sua realidade e nota os cacos de vidro no chão. Ergue suas mãos à altura dos olhos e fica a observar para ver se nota algo estranho, mas nada aparenta estar fora do lugar. Shiro logo apanha os pedaços do copo quebrado e os coloca no lixo, põe o jarro de volta na geladeira e volta para a sala. Ele olha para a cidade novamente através de sua exuberante janela, enquanto isso as cortinas fecham

lentamente, deixando seu quarto totalmente escuro, e Shiro logo se deita em seu sofá, fechando seus olhos.

Ele acorda assustado. Shiro passa a mão em seu rosto e percebe que está suado. Batidas impacientes vêm de sua porta. Ele logo se levanta para atender e, ao abrir, percebe que é Nayomi, que diz:

–O que você estava fazendo, menino? Já está na hora de você almoçar e ir para a base subterrânea novamente!

Shiro esfrega sua mão em seus olhos e responde:

–Desculpe, Senhorita Nayomi, é que eu acabei dormindo. Nayomi responde, mais calma:

–Tudo bem, vá almoçar e em seguida desça para a base, na mesma sala de hoje.

Shiro concorda balançando a cabeça. Nayomi vai embora. Shiro coloca seus sapatos de volta, já que os havia retirado assim que chegou. Ele sai de seu dormitório, desce as escadas até o dormitório de Mika. Ele bate na porta várias e várias vezes, mas ninguém o atende. Ele então decide seguir até o refeitório.

Chegando lá, Shiro faz o mesmo trajeto que fez pela manhã. Ao pegar sua comida, ele sobe até o primeiro andar, que estava vazio, e se senta no mesmo lugar onde se sentou de manhã. Shiro começa a comer até que uma moça se senta à mesa com ele. Ao olhar, ele percebe que é a Dra. Akary, com um grande sorriso no rosto, que pergunta:

–Shiro! Posso me sentar com você?

Ele olha para ela, um pouco envergonhado, e diz meio atrapalhado:

–Sim, sim.

Dra. Akary, já sentada, pega de sua bolsa um pequeno pote que estava com sua comida e o põe sobre a mesa. Ela começa a comer, mas, olhando para Shiro, percebe que ele está meio corado. Ela diz:

–Você parece meio desconfortável. Quer que eu saia? Shiro tenta disfarçar:

–Hmm, não, não, por favor fique. É muito bom ter a sua presença aqui. Ela dá algumas risadas e diz:

–Pode se dirigir a mim como "você", Shiro. Eu não me incomodo.

Ele responde:

–Cer-certo. Dra. Akary, eu posso fazer uma pergunta peculiar? Ela responde, um pouco animada:

–Sim, sim, estou aqui para ajudar você, Shiro. Ele pergunta, meio sem jeito:

–O que aconteceu comigo? Eu não lembro de muita coisa, minhas memórias parecem que foram bloqueadas.

A Dra. Akary responde:

–Shiro, infelizmente não podemos tocar nesse assunto, não ainda, mas a sua perda de memória é resultado dos acontecimentos. Você se lembra da sua mãe?

Shiro se surpreende com a pergunta de Akary e diz:

–Mãe? Eu não lembro, Dra. Akary. Eu, eu não consigo! Ela suspira e diz, reconfortando-o:

–Me dá dó vê-lo assim, Shiro. Bom, vamos fazer um acordo: passe na minha sala hoje por volta das sete horas, no décimo segundo andar, Andar L, no sub-andar 3.

Shiro diz, sem entender:

–Como, Andar L, sub-andar 3?!

Ela dá uma risada e explica para Shiro:

–Sim, a base subterrânea da Univer é muito grande. Os andares comuns têm sub- andares. É como se tivesse um cubo grande e dentro desse cubo gigante tivesse pequenos cubos. Então, lembre-se: andar L, sub-andar 3, sala 18. Ok?

Shiro balança a cabeça concordando. Eles terminam de almoçar e, em seguida, se levantam e vão em direção ao prédio central para pegar o elevador. Novamente eles descem para o andar C da base. No elevador, a cada instante que se afastava da superfície, a escuridão tomava conta do lugar de forma sorrateira. Akary olha para Shiro, que está observando os outros andares através dos vidros. Eles chegam e vão em direção à sala de treinamento. Lá, Shiro vê apenas a Dra. Mei e pergunta:

–Hmm, onde está Mika? Mei responde:

–Esse treinamento é especialmente para você, Shiro.

Shiro coloca novamente o traje de treinamento. Neste momento, a Dra. Akary e a Dra. Mei estão fazendo todos os preparativos para iniciar o sistema de treinamento. Com tudo pronto, Shiro entra na sala de treinamento. A sala rapidamente recria uma ambientação semelhante a um lindo e vasto campo com gramas verdes e um ar fresco. Akary diz:

–Shiro, vamos treinar suas habilidades, então não precisa se preocupar. Só faça o mesmo que fez antes, ok?

Shiro confirma com a cabeça. Logo ele novamente materializa uma espada em suas mãos. No campo, vários manequins de treinamento começam a se erguer. Ele vai para cima de cada um, cortando-os. Se passam algumas horas e, no painel de controle onde estão as Doutoras Akary e Mei, mostra-se uma grande melhoria no desempenho de Shiro. Depois de mais algumas horas, o treinamento termina. Shiro, exausto, cai sobre aquela falsa realidade da sala de treinamento. Ele olha para o céu e diz:

–Mas que lugar bonito!

A sala de treinamento volta à sua forma original. Shiro se levanta e sai da sala. Do lado de fora, Mei e Akary batem palmas para ele, dizendo que ele foi excelente. Ele sorri. Após todo o treinamento, Shiro é liberado. Ele coloca de volta seu uniforme. Dra. Akary e Mei se despedem de Shiro. Assim que elas vão embora, ele vai para o banheiro daquele mesmo andar. Lá, ele toma um longo banho. Então, ele se lembra de passar na sala da Dra. Akary. Ele rapidamente se veste novamente e vai em direção ao elevador. Aperta o botão, fazendo o elevador descer até o décimo segundo andar, referente ao andar L.

Ao chegar, ele percebe que a presença de funcionários é bem menor, tornando o lugar um pouco morto. Shiro começa a andar para lá e para cá, procurando outro elevador que o fizesse se locomover por dentro daquele andar. Sem sucesso em sua busca, ele fica confuso e indeciso. Ele se encosta na parede e uma porta se abre: era o elevador. Shiro fica feliz por tê-lo encontrado. Ele aperta no número 3, referente ao sub-terceiro andar do andar L de toda a base.

Ao chegar, as portas se abrem e Shiro percebe que lá é um lugar mais mórbido, com ausência de luz. Ele se sente desconfortável, como se algo o estivesse observando. Shiro vai andando até achar a sala 18. Depois de muita caminhada e desconforto, ele a encontra.

Shiro bate na porta, que se abre, mas não havia ninguém lá dentro. Era uma sala modesta e com um estilo brutalista, alguns utensílios sobre uma mesa, um notebook aberto, ao lado uma xícara de café ainda saindo fumaça, alguns papéis sobre a mesa e outros sobre o chão. Shiro chama por Akary, mas ela não o atende. Ele entra e fica diante de tudo aquilo. À sua frente havia uma grande tela branca presa sobre a parede. Ele olhou para o teto e viu um projetor posicionado em direção àquela tela. Shiro diz:

– Uau, deve dar para ver um filmão com essa tela toda!

O projetor ganhou vida com um zumbido baixo, quase inaudível, lançando um feixe de luz que cortou a penumbra da sala e atingiu a tela branca. Shiro sobressaltou-se, o coração martelando contra as costelas, mas uma força invisível o prendeu no lugar, os olhos fixos na imagem que começava a se formar. Não era um filme. Era um pesadelo gravado, um registro cru e sem filtros do dia em que o inferno irrompeu através dele.

A tela explodiu em caos. Prédios desabando em nuvens de poeira e concreto, chamas vorazes lambendo estruturas retorcidas, o chão marcado por crateras fumegantes. Gritos silenciosos ecoavam em sua mente enquanto via figuras indistintas correndo em pânico, algumas sendo engolidas pela destruição avassaladora que ele... *ele* havia causado. Não havia trilha sonora, apenas o silêncio opressor da sala e o zumbido baixo do projetor, tornando as imagens ainda mais viscerais, mais insuportáveis. Morte. Destroços. O desespero estampado em rostos que ele nunca conheceria, mas cujas vidas ele havia estilhaçado.

Então, abruptamente, a carnificina deu lugar a um rosto familiar, um sorriso caloroso que ele sentiu no fundo da alma antes mesmo de poder nomeá-lo. Sua mãe. Um fragmento de segundo de paz, de amor, um oásis impossível no meio do horror. E tão rápido quanto surgiu, a imagem foi brutalmente rasgada. O corte foi seco, impiedoso. O sorriso foi substituído por... vazio. Olhos sem vida fitando o nada, uma imagem congelada de morte que durou apenas o tempo suficiente para quebrar algo irreparavelmente dentro dele. O ar fugiu de seus pulmões, um nó gelado se formando em sua garganta, impedindo qualquer som de escapar. Seus joelhos fraquejaram.

O vídeo então congelou, não nela, mas na paisagem urbana devastada, uma cicatriz aberta na cidade, um testemunho silencioso e permanente do monstro que ele era. A tela estática era um espelho, refletindo a ruína que agora se instalava em sua própria alma.

Em um ato de surpresa, a porta se abre, e a Dra. Akary que, ao ver Shiro, deixa os utensílios que carregava na mão cair. Ele estava lá, parado, com lágrimas nos olhos, trêmulo, com uma face estranhamente dolorosa. Akary imediatamente correu até Shiro e tampou seus olhos, abraçando-o. Ele se derrama em seu caos interno, chorando sobre os braços da Dra. Akary, que o conforta, abraçando-o contra seu corpo. Ela sente o desespero iminente de Shiro, sente a sua dor confusa e destrutiva. Enquanto isso, Akary acaricia os cabelos de Shiro, enquanto suas próprias mãos tremiam. E ali ficam eles até o momento daquele desespero sem fim passar.

A verdade foi totalmente jogada na cara de Shiro de forma crua e fria por um pequeno descuido. Será que Shiro irá ficar bem?