Part 1

Darkus

Tá tarde. Acho que já é de madrugada. Vou beber água e dormir. Estava tudo maior silêncio. Da nem vontade de levantar da cama. Mesmo assim, preciso de água, minha boca tá seca. Me levantei e… o chão estava gelado.

*expiro bravo*

Darkus: Tá gelado…

Murmuro, enquanto caço meus chinelos no chão frio. A pouca iluminação que tinha, vinha da televisão. Um pé estava em frente, o outro não achei de cara, olhei debaixo da cama, só poeira. No chão todo e nada. Na hora que abri a porta e ela travou, lá estava. Do nada, meu celular vibra, alguém estava me ligando. Quem podia ser tão tarde da noite?

Darkus: Alô?

Voz feminina: Oi…

Durante alguns segundos, nada foi dito. Mas dava pra ouvir a sua respiração.

Darkus: Cê ligou número certo?

Voz Feminina: Sim… É que eu tô meio nervosa, fiquei com medo de atrapalhar e… você sabe.

Darkus: Ah…

Jeitinho todo tímido de falar, dava pra ouvir até seus leve gemidos.

Darkus: Sua voz, a gente já viu antes?

Voz feminina: Eu sou sua vizinha, moro do outro lado da rua.

Darkus: Hmm… Eu não conheço quase ninguém da rua. É meio chato perguntar isso, mas… Qual seu nome?

Estava frio, voltei pro meu quarto.

Voz feminina: Júlia. Sou do 35.

Darkus: Não te vi ainda.

Maior vacilo da minha parte. Mas também não sou de conversar muito, paciência.

Darkus: Mas… por que cê me ligou?

Júlia: Bom… m-meu leite acabou. Tá tarde pra ir ao mercado. E… essa conversa tá meio estranha.

Darkus: Acho que eu tenho um pouco.

Júlia: Então… você traz aqui ou posso ir buscar?

Só não entendo por que ela tá na defensiva. É só leite.

Darkus: Deixa que eu passo aí.

Sei que tô fazendo a maior besteira.

Júlia: Tá bom. Vou te esperar na porta.

Ela desligou.

Droga… Tenho que sair no meio da noite. Mesmo com tudo iluminado, não quero sair. Vou levar esse leite e voltar pra casa bem rápido.

Minha sorte é que tenho um litro sobrando.

Só que, pro meu azar, eu moro no fim de uma rua circular. Tem um largo espaço no meio, e todas as casas ficam em volta. A minha é a 19; a dela deve ser do outro lado desse círculo gigante.

Vou colocar o leite numa sacola — vai que um dos vizinhos vê e acaba espalhando. Nessa rua só tem fofoqueiro. Por isso, melhor não dar motivo pra inventarem coisas sobre mim.

Abri a porta da frente em silêncio. Aquele ar gelado da rua invadiu, e, junto com o frio, veio o arrependimento. Mas já é tarde.

Do outro lado da rua, vi uma das casas com a luz acesa e a porta se abrindo. Mesmo de longe, consegui ver uma garota jovem — devia ter uns 19 anos. Ela acenou pra mim. Deve ser ela.

Dois passos à frente, me viro, fecho e tranco a porta silenciosamente. Só vou entregar o leite - mesmo assim, não posso me descuidar.

Por algum motivo me sinto estranho. Acho que é porque, à distância, conseguia ver que ela estava usando uma bermuda de dormir e uma regata.

Andei um pouco mais rápido para esquentar o corpo e não deixá-la esperando naquele frio. Olhava de um lado para o outro. Não há nenhum fofoqueiro nesse horário. Ainda bem, porque cuidar da vida dos outros às 2 da manhã já é demais.

Se bem que pedir leite nessa hora também não é normal.

O caminho mais rápido é pelo meio da rua. Estava completamente vazia, sem movimento nenhum. Fora que é até legal: rua grande, deserta.

Não falta muito agora. Estou atento a tudo que pode acontecer - exceto à garota me esperando.

Subi a calçada, olhei para direita e esquerda uma última vez. Além de nós, nem sinal de fofoqueiros. Nem mesmo espiando pelas janelas.

Menos de dez passos agora. Só preciso entregar e ir embora. Primeiro olho o chão para ver se não tem nenhuma pedra, depois olho pra frente. Com a iluminação do poste, conseguia ver a garota claramente.

E isso é um problema. Porque quando a vi de perto, quase caí. Não sei dizer ao certo o que mais me chamou atenção naquele instante. A princípio, pensei que fossem seus olhos azul-escuro.

Mentira. Foi aquele cabelo bagunçado - acho que foi isso que mais me chamou a atenção. Não foi a regata destacando seu corpo, nem suas pernas compridas. Foi o cabelo.

Respirei fundo. Estou frente a frente com ela. O que vou dizer? Melhor ser direto.

Darkus: O leite.

A voz quase não saiu. Tô nervoso demais - não  acostumado a manter contato visual com uma garota tão bonita assim.

Estendo a mão com a sacola para entregar. Pensamentos proibidos invadem minha mente enquanto associo aquele pacote de leite ao decote dela.

Júlia: Obrigada. Quanto eu te devo?

Devendo... devendo. Quanto custou esse leite? Droga, não consigo pensar direito!

Levanto os olhos, encontrando os dela. Melhor ir embora, inventar qualquer desculpa.

Darkus: Não precisa.

Estou tremendo demais. Não tenho mais nada pra dizer.

Júlia: Tem certeza?

Minhas mãos não param de suar. Não consigo olhar para outro lugar que não... aqueles seios.

Darkus: Sim.

Júlia: Obrigada... Quer entrar um pouco?

Nem pensar! Já é difícil me manter aqui!

Darkus: Agradeço, mas deixa pra próxima.

Seu sorriso treme levemente, a expressão muda. Ela não esperava essa resposta.

Júlia: Tudo bem. E-eu vou esperar.

Engoli em seco. Minha mente está em branco - nada interessante pra dizer. Melhor me despedir antes de falar alguma besteira.

Darkus: Bom... acho que é isso. Até a próxima.

Fico parado como um idiota. Só falta ela completar a frase pra eu poder seguir minha vida. É que notei que na sua mão direita há uma aliança.

Júlia: Na próxima, que tal um chocolate bem quente?

Claro... "bem quente"... aquele tom sugestivo no final da frase.

Darkus: Tá bom. Eu vou sim.

Já começo a recuar, pronto para voltar pra casa. Ouço ela suspirar e, em seguida, o som da porta se fechando.

Foi mal, mas não me envolvo com garotas comprometidas. Na verdade, com ninguém - as pessoas são imprevisíveis demais.