O silêncio na oficina era absoluto.
Marcos respirava fundo, as mãos ainda um pouco trêmulas pelo esforço do entalhe. Diante dele, o totem finalizado parecia pulsar, mesmo inerte. A madeira guardava os traços recém-entalhados — espirais rúnicas, o semblante sereno do espírito curador e os símbolos de proteção cuidadosamente desenhados na base.
Agora era a hora.
Ele se ajoelhou em frente à mesa de pedra, colocando o totem sobre uma manta fina. Fechou os olhos. Sentiu o calor da mana nas palmas, como uma corrente morna fluindo sob a pele. O conhecimento estava lá — as imagens, os gestos, o ritmo. Era como se estivesse prestes a reviver um ritual ancestral.
A primeira tentativa seria sempre a mais difícil.
Verditos observava em silêncio, flutuando próximo à parede oposta, respeitando aquele momento como algo sagrado.
Marcos estendeu as mãos, posicionando os dedos ao redor da base do totem. Um sussurro quase inaudível escapou de seus lábios — não uma prece, mas uma afirmação interna:
— Agora.
E então, deixou a mana fluir.
Com as palmas voltadas para o totem, sentiu a mana começar a se concentrar em suas mãos, vibrando com uma leveza quente, quase etérea. Aos poucos, guiado pelas lembranças que despertara anteriormente, ele tentou transferir aquela energia para dentro do totem recém-esculpido.
Mas não era simples.
Era como tentar empurrar fumaça com as mãos para dentro de uma garrafa estreita, ou como passar uma porção de gelatina espessa por um buraco minúsculo sem deixar escorrer pelas bordas. Por mais que concentrasse o foco, sentia a mana se desviar, escorrer para os lados, resistir ao fluxo. Seu controle oscilava entre o esforço e a frustração.
E então, o inevitável aconteceu.
Um estalo seco ecoou pela oficina.
O totem tremeu. Pequenas fissuras começaram a surgir ao redor dos entalhes rúnicos, avançando em ramificações irregulares. Em poucos segundos, o tronco cuidadosamente talhado se partiu em três grandes fragmentos — lascas de madeira rachadas, o rosto esculpido agora dividido e sem vida.
Marcos recuou as mãos, ofegante, com a testa úmida de suor e o olhar vazio. Aquilo doía mais do que esperava. Não era apenas uma falha — era a destruição de algo em que havia colocado parte de si.
Verditos, que até então observava em silêncio, se aproximou com um tom mais calmo que o normal.
— Você tentou empurrar a mana com força… — disse ele, pousando suavemente ao lado do jovem. — Mas o caminho da energia não é um túnel de pressão. É uma trilha que você deve guiar, e não forçar.
Marcos ergueu os olhos, frustrado, mas atento.
— Pense como se você fosse um guia silencioso — continuou Verditos. — A mana não quer ser empurrada. Ela precisa ser conduzida com intenção, com delicadeza. Quando você tenta dominar a madeira, ela resiste. Mas se permitir que a energia percorra o caminho certo… ela aceita.
O silêncio voltou a reinar por alguns instantes. Marcos encarava os pedaços partidos do totem sobre a mesa. Parte de si queria gritar, esmagar aquilo, abandonar o treino por hoje. Mas outra parte — mais calma, mais amadurecida — reconhecia que falhas também fazem parte da aprendizagem.
Ele respirou fundo outra vez.
E começou a buscar, dentro de si, o equilíbrio necessário para tentar de novo.
Com a mente mais centrada após as palavras de Verditos, Marcos limpou a mesa com cuidado, afastando os restos do totem quebrado. O tempo na sala de oficina era limitado — e ele já devia estar lá dentro há pelo menos metade das seis horas permitidas.
Não podia desperdiçar o restante.
Decidido, retornou à prateleira de materiais e selecionou novos troncos, todos de tamanho e textura semelhantes ao primeiro. Não tentou repetir a mesma escultura elaborada. Em vez disso, focou na forma, na harmonia e na preparação. O importante agora era treinar o processo, deixar as mãos se acostumarem com o ritmo e o fluxo da mana.
Totem após totem, ele esculpia com foco absoluto. As lembranças ainda o guiavam, mas agora com mais humildade — cada linha era traçada com atenção, cada espiral rúnica entalhada com um propósito. Ele não buscava perfeição, mas sim consistência.
O tempo avançava. As lâminas se desgastavam. Seus dedos formigavam de cansaço. A concentração vacilava a cada novo totem, mas ele continuava.
Quando as seis horas chegaram ao fim, a sala tremeu levemente, e as runas nas paredes começaram a se apagar. Um portal se abriu atrás dele, puxando-o suavemente para fora, encerrando a sessão.
Ao pisar novamente na caverna central, Marcos carregava consigo sete novos totens — todos simples, rústicos, mas aceitáveis. Nenhum se comparava ao primeiro que ele havia feito com tanto cuidado… mas nenhum deles estava rachado.
Já era um progresso.
Sentindo o corpo tenso e os músculos doloridos, caminhou sem pressa até a fonte mágica. A água serena no canto da caverna, iluminada por um brilho cintilante e suave. Sem hesitar, entrou e se deixou afundar até a altura do peito.
A água era morna, reconfortante. Em poucos minutos, a fadiga nos braços começou a se dissolver, assim como o cansaço da mente. Sua mana também se restaurava aos poucos, como se a fonte reconhecesse seu esforço e oferecesse descanso em troca.
Enquanto deixava os totens descansarem ao seu lado, sobre uma pedra lisa próxima à fonte, Marcos fechou os olhos.
A sensação não era de vitória, mas de avanço.
Ainda era o começo. Ainda haveria muitas falhas.
Mas agora… ele tinha algo em mãos.
E estava pronto para continuar.
Após o banho, Marcos se vestiu e se preparou para retornar ao treinamento. Estava decidido a tentar novamente — desta vez, mais cauteloso, mais atento ao que havia aprendido.
Sentou-se no chão próximo a fonte, alinhou os sete novos totens ao seu lado e iniciou o processo. Concentrou a mana nas mãos e tentou, com calma, guiá-la para dentro da madeira.
A primeira tentativa falhou. A mana se dispersou antes de penetrar, e o totem rachou em silêncio, inutilizado.
Na segunda, ele sentiu que quase conseguiu — mas, novamente, a energia escapou pelas ranhuras de forma errática, e o totem quebrou em três partes.
Na terceira tentativa, algo mudou. Conseguiu infundir uma pequena quantidade de mana. As runas chegaram a brilhar por um instante, instáveis, antes que a energia se descontrolasse e o totem explodisse em farpas.
Na quarta, o fluxo parecia certo — até que a mana encontrou resistência. O excesso fez o totem vibrar e estourar pelas laterais.
Cinco tentativas. Cinco totens destruídos.
E com eles, boa parte de sua energia também se esvaiu. Marcos ofegava, o suor escorrendo pela testa, os braços pesados. Ainda restavam apenas dois totens — e o cansaço ameaçava comprometer qualquer progresso.
Verditos, atento como sempre, se aproximou com um tom brando:
— Você está ultrapassando seu limite — disse com tranquilidade. — Vá até a fonte e descanse. Tome uma das porções de mana. Elas não restauram tudo, mas vão aliviar o peso que está sentindo.
Marcos assentiu em silêncio. Pegou um pequeno frasco de líquido azul-claro e o bebeu.
O sabor era azedo, mas não desagradável — lembrava um tipo de energético mágico. Logo sentiu o frescor percorrer seu corpo, aliviando a pressão no peito e clareando a mente. Voltou à fonte mágica, submergindo até os ombros. A água morna devolvia, pouco a pouco, sua vitalidade.
Após algum tempo, Verditos retornou e pairou próximo à borda da fonte.
— Agora que você já consegue infundir a mana, o que te falta é controle.
Ele fez uma breve pausa antes de continuar, com um olhar mais sério:
— A mana não é só energia. É parte da sua força vital e, por isso, responde diretamente ao seu estado emocional. Se estiver ansioso, tenso ou emocionalmente instável, o fluxo se desequilibra. Você precisa aprender a manter a calma. Relaxe a mente. Medite, se for preciso. A mana flui melhor quando o espírito está em paz.
Marcos assentiu. Sentia a verdade nas palavras.
Levantou-se, secou o rosto e voltou a sentar no chão, onde os dois últimos totens o aguardavam.
Com o sexto totem em mãos, Marcos fechou os olhos e respirou fundo. Dessa vez, não forçou nada. Deixou a mana vir como uma maré suave e, com paciência, conduziu-a por entre as linhas entalhadas.
Tudo ia bem… até o último passo.
Ao tentar selar a mana, cometeu um pequeno erro — um gesto impreciso, um momento de distração. O fluxo vacilou, o totem tremeu. Uma rachadura surgiu no topo e, em seguida, ele se partiu por completo. Mais um perdido.
Agora, restava apenas um.
Marcos o segurou com ambas as mãos. Observou os entalhes, sentiu o peso, relembrou cada etapa do processo.
Ele sabia que podia fazer.
Começou novamente.
Com calma, guiou a mana. Aos poucos, conduziu-a pelas ranhuras do totem. As runas começaram a reagir, brilhando com uma luz dourada suave. O fluxo se manteve estável. E, com concentração absoluta, Marcos realizou o selo final.
O totem pulsou em sua mão — uma leve vibração, como um coração batendo devagar.
Ele caiu de costas no chão, exausto, mas sorrindo.
O último totem, único sobrevivente, repousava sobre seu peito, emitindo um brilho sereno.
Marcos o observava com os olhos entreabertos, as mãos erguidas em direção ao teto rochoso da caverna.
Ele havia conseguido.
Pela primeira vez, criara um totem funcional de cura.
Pela primeira vez, sua habilidade ativa havia sido usada com sucesso.
Ainda deitado, com o totem repousando sobre o peito e o brilho dourado lentamente diminuindo, Marcos foi surpreendido por um som suave. Verditos pousou ao seu lado com um sorriso tranquilo no rosto.
— Muito bem, Marcos… — disse, satisfeito. — Conseguiu. Seu primeiro totem funcional.
Marcos sorriu, ainda ofegante.
— Foi mais difícil do que eu imaginava…
Verditos inclinou levemente a cabeça.
— Agora me diga: você compreendeu o funcionamento da sua habilidade? Sabe como usá-la em combate real?
Marcos assentiu e, com esforço, se sentou, ainda segurando o totem entre as mãos.
— Pelas memórias que vieram… sim, eu entendi.
Ele ergueu o totem diante dos olhos e começou a explicar, como se revisasse algo que já soubesse há muito tempo, mas só agora conseguisse colocar em palavras.
— A minha habilidade ativa começa com a criação do totem. Quando infundo minha mana na madeira, estou literalmente moldando a habilidade. Esse primeiro processo transforma o totem em algo mais do que madeira comum — ele se torna um recipiente mágico.
Verditos ouvia em silêncio, atento.
— Mas ainda não é tudo — continuou Marcos. — Quando o totem está pronto, posso canalizar mais mana nele, antes de usá-lo, para deixá-lo mais resistente. Como se estivesse fortalecendo um artefato mágico. Isso aumenta sua durabilidade e garante que ele suporte a habilidade até o fim da energia.
Marcos então se levantou e caminhou até uma área de solo livre no centro da caverna.
— Depois, para ativar, eu lanço o totem no chão, cravando a ponta afunilada na terra.
Com cuidado, ele arremessou o totem — o impacto foi leve, mas firme. As runas voltaram a brilhar, e um círculo de luz dourada começou a se expandir ao redor da base.
— E é aí que a habilidade acontece — explicou. — Dentro de um raio de três metros ao redor do totem, posso determinar os alvos da cura. Ele começa a absorver as feridas dessas pessoas e canaliza a energia a partir da mana que contém. Enquanto a mana durar, ele continua ativo. Quando se esgota…
Ele fez uma breve pausa, observando as runas se apagarem.
— …ele se parte — concluiu, no exato momento em que o totem rachou em silêncio e se desfez em pedaços de madeira comun.
Verditos se aproximou e pairou acima dos restos do totem, com expressão satisfeita.
— Excelente. Você compreendeu mais rápido do que eu esperava.
Cruzou os braços, falando com serenidade:
— Esse tipo de habilidade exige não só técnica, mas também sabedoria. Você não poderá carregar muitos totens por vez, então precisa escolher com cuidado quando e como usá-los. Em batalhas reais, o tempo de ativação pode ser a diferença entre salvar um aliado… ou falhar.
Marcos assentiu, já sentindo o peso da responsabilidade.
Mas agora, com aquele primeiro sucesso gravado em sua mente e corpo, ele sabia:
Estava pronto para dar o próximo passo.