Capítulo 5 - O Desapertar Nas Sombras

O silêncio na câmara era denso, pontuado apenas pelo resfolegar irregular de uma respiração trêmula. A penumbra da noite agarrava-se aos cantos, mas o ar, carregado de uma energia residual quase febril, parecia vibrar com a memória do poder recém-liberado.

Hellian adentrou o recinto no exato instante em que Isolde desabou ao chão. Seus olhos, afiados pela experiência de séculos, fixaram-se no corpo inerte da jovem mulher, estendido diante do círculo rúnico. Agachou-se com uma precisão instintiva, os dedos ágeis aferindo o pulso, a respiração rasa e a resposta etérea que revelava uma exaustão profunda. Ela estava viva, sim. Apenas... suspensa, como se sua alma tivesse sido temporariamente arrancada da superfície do mundo.

Nathálie já estava ali, uma figura serena, mas tensa, na penumbra. Seus olhos, antes dourados de poder, agora pulsavam com um azul pálido, quase translúcido, refletindo o cansaço do comando ancestral recém-empregado. Observou a menina vampira no centro da câmara e a jovem caída. Não havia pânico em sua postura, mas uma gravidade que denunciava a magnitude do ocorrido. Aproximou-se, ajoelhou-se ao lado de Isolde e pousou dois dedos em sua fronte.

— Ela está bem. O espírito recuou. — Sua voz era um murmúrio controlado, mas o alívio era perceptível.

Hellian endireitou-se, o semblante ainda austero. Seus olhos percorreram Sophia, depois Nathálie, buscando confirmação para o que parecia impossível. — Foi a pequena? — indagou, a voz um fio de incredulidade.

Nathálie ergueu os olhos para Sophia, que jazia sentada no chão, o vestido claro amassado e os cabelos em desalinho, o olhar azul perdido em algum ponto distante.

— Ela sentiu o perigo. Reagiu. Usou um fragmento da minha própria herança… e calou o espírito. Não por força bruta, Hellian, mas por um comando absoluto.

Hellian desviou o olhar para Sophia, a observando com uma intensidade renovada. Havia nela um brilho diferente agora. Não era o poder em si — que parecia ter minguado —, mas uma compreensão instintiva do risco, uma lucidez precoce que despontava em seus olhos infantis.

— Isso foi... perigoso — murmurou Hellian, a voz rouca, como se pesasse as implicações de um poder tão indomável. — Mas foi... admirável. Nunca imaginei que a Voz pudesse ser evocada de forma tão… crua por alguém tão… novo.

Nathálie assentiu, sua expressão ainda grave. Depois voltou os olhos para Isolde e, com um gesto sutil da cabeça, pediu que Hellian a conduzisse até os aposentos inferiores.

— Leve-a. Ela vai despertar naturalmente. Precisa de descanso profundo. A manifestação daquele espírito drena muito de sua essência, e ela ainda não domina tal custo.

— E a menina? — Hellian perguntou, um aceno discreto do queixo na direção de Sophia. Seus olhos encontraram os de Nathálie, uma silenciosa pergunta sobre os riscos que viriam.

— Fica comigo. Agora… ela precisa entender. E eu preciso que ela entenda. — A resposta de Nathálie carregava o peso de uma decisão irrevogável, um fardo que ela abraçava.

Hellian tomou Isolde nos braços com um cuidado que desmentia sua frieza habitual, o corpo da jovem frágil e sem peso contra o dele. Antes de sair, lançou um último olhar a Sophia — um olhar de estudo, não de julgamento, como se tentasse decifrar o enigma daquela criança que havia parado um poder ancestral.

A porta se fechou, selando a câmara em um novo silêncio, menos carregado, mais introspectivo.

Nos corredores frios sob a colina, Gregor encontrou Hellian vindo da câmara principal, com Isolde desacordada nos braços. Os passos do velho Senescal cessaram de imediato, e sua expressão — normalmente imperturbável — endureceu em preocupação, uma rachadura na fachada de sua calma habitual.

— O que houve com a senhorita Lefaith? — indagou, a voz baixa, mas carregada de uma tensão que ele raramente demonstrava.

Hellian manteve seu passo decidido, apenas o reduzindo o bastante para que Gregor, com suas passadas mais medidas, pudesse acompanhá-lo.

— Está exausta. Acordará sozinha, sem danos maiores. O espírito foi obrigado a recuar… e isso sempre cobra um preço alto, principalmente quando o comando vem de fora.

— Foi a jovem? — perguntou Gregor, o tom de incredulidade se misturando a um vislumbre de admiração. A notícia de um poder tão antigo sendo ativado por uma criança era quase impensável.

— Sim. A menina usou um fragmento da Voz. Não por impulso, mas por instinto. Como se já soubesse. — A voz de Hellian era sóbria, mas havia um sutil tom de respeito pela magnitude do que Sophia fizera.

O velho Senescal estreitou os olhos, assimilando a informação em um silêncio pensativo. A implicação daquele poder, daquela linhagem, era vasta. Depois, respirou fundo, desviando o olhar para o vulto adormecido nos braços do guardião.

— Deixe que eu a leve. — Gregor estendeu os braços com uma naturalidade que beirava a ternura. — Ela é como uma neta para mim. E já passou dos próprios limites por hoje.

Hellian hesitou por um breve segundo, um lampejo de surpresa em seus olhos, depois assentiu. Com um gesto comedido, transferiu o peso leve da jovem para Gregor, que a acolheu com uma reverência silenciosa, como se portasse uma relíquia frágil, não uma guerreira exausta.

— A noite avançou — disse o Senescal, com um olhar para os corredores sombrios. — Logo a senhora também precisará recolher-se. Tudo está preparado. Os aposentos foram selados, os níveis de segurança verificados. Nada se move lá fora.

— Por ora — respondeu Hellian, lacônico, seus olhos fixos na escuridão adiante, onde as ameaças ainda podiam espreitar.

— Sempre por ora — replicou Gregor, com um meio sorriso cansado, um conhecimento ancestral sobre a natureza da vigilância eterna. — É o preço da imortalidade.

Eles se separaram em silêncio, cada um seguindo seu caminho com o peso de seus respectivos deveres.

No quarto de pedra onde Isolde repousava, Gregor cruzou o limiar com passos suaves, quase reverentes. Deitou-a sobre a cama coberta por lençóis simples de linho fino, a fragilidade de seu sono um contraste com o poder que a habitava. Ajeitou-lhe os cabelos castanhos com um gesto cuidadoso e puxou a coberta até seus ombros.

Ajoelhou-se ao lado e, por um instante, observou-la dormir — o rosto sereno, mas ainda marcado pelo esforço espiritual. Seus dedos trêmulos, com um toque leve, acariciaram-lhe brevemente a mão, uma despedida silenciosa, uma promessa.

— Descanse, senhorita — sussurrou, a voz carregada de um afeto paternal, antes de se levantar e apagar a luz da lamparina, mergulhando o quarto na quietude da noite.

Nathálie permaneceu.

Sophia estava quieta. Não chorava. Não tremia. Apenas olhava as próprias mãos, como se as visse pela primeira vez. Aquela energia estranha que antes fluía sob sua pele — os circuitos etéreos que pulsavam como raízes invisíveis no mais profundo de seu ser — havia se apagado, mas a memória da sensação permanecia, um eco formigante que a deixava desorientada.

— O que aconteceu? — murmurou, quase sem voz, a pergunta pairando no ar como uma névoa.

Nathálie sentou-se diante dela, o vestido claro deslizando suavemente contra o chão de pedra. Não havia pressa em seus gestos, apenas a firmeza de quem já viu demais e compreende a profundidade do desespero de uma criança.

— Você se defendeu. E o fez com algo que ainda não entende, mas que é parte de quem você é agora.

— Tinha… algo ali. Algo que não era aquela moça. Era… grande. E escuro. — Sophia gesticulou vagamente para onde Isolde havia caído.

— Um espírito ancestral — explicou Nathálie, sua voz calma e didática. — Vive dentro dela, como uma guardiã. E sentiu você, Sophia. Reagiu à sua energia em ascensão.

— Eu não queria machucar ninguém… — As palavras de Sophia eram carregadas de uma culpa que ela ainda não conseguia processar.

— E não machucou — disse Nathálie, com firmeza, mas sem dureza. — Você conteve. Com um comando preciso, que fez até mesmo aquele espírito recuar. Isso é algo raro, criança… até mesmo entre os anciões da minha Casa.

Sophia olhou para Nathálie com olhos grandes, azulados, agora sem traço do ouro que os dominara momentos antes.

— Foi como… quando você fala… e todos obedecem.

Nathálie esboçou um sorriso discreto, quase imperceptível. Era uma aceitação do reconhecimento.

— Uma herança minha. Uma habilidade que agora corre em suas veias também. Mas não basta herdar… é preciso saber usá-la. E para isso, precisa entender.

Sophia desviou o olhar, sua pequena face contraída em confusão e tristeza.

— Eu não entendo o que sou. Nem o que está acontecendo. Só… só quero minha mãe. Quero meu quarto. Quero minhas bonecas. Quero que isso tudo… não seja verdade.

— Eu sei — disse Nathálie, e a profundidade de sua empatia era palpável naquelas duas palavras. — E lamento que a vida não lhe tenha dado escolha. Lamento a dor que você carrega.

Ela se inclinou, e sua mão tocou os cabelos da menina com um gesto que era quase reverência, um reconhecimento do fardo que Sophia carregava.

— Mas a partir de agora… eu estarei aqui. Para responder o que puder. E para prepará-la para o que não puder responder sozinha.

Sophia assentiu em silêncio. A dúvida ainda pairava em seus olhos, mas a angústia inicial se dissolvia aos poucos na presença tranquila e imponente daquela figura.

Ali, sem precisar de pactos, sem magia ou símbolos arcanos… um laço se formava.

O laço entre uma criança que buscava entender… E uma alma milenar que, finalmente, decidia acolher.

Sophia finalmente deixou o peso da vigília tombar sobre os ombros. Estava cansada. Um cansaço que não era apenas físico, mas que arranhava as bordas da alma, uma exaustão que vinha da própria essência de sua nova existência.

Nathálie a conduziu até o leito com gestos comedidos, e a pequena figura de Sophia se deixando guiar como um fantoche exausto. A cama era fria ao toque, mas firme sob o corpo, e os lençóis cheiravam a flores secas e pedra antiga, um aroma que estranhamente a acalmava.

Já deitada, Sophia observava Nathálie com olhos semicerrados, lutando contra o sono que a puxava para as profundezas. Quando Nathálie se afastou em silêncio, preparando-se para sair, uma voz suave e frágil quebrou a penumbra:

— Senhora Armister… obrigada.

Nathálie deteve-se por um instante, congelada no meio do passo. Levou uma das mãos ao peito, como se reconhecesse o peso daquelas palavras, a inocência por trás delas. Um aceno contido, um sorriso cansado e pequeno, mas sincero, curvou seus lábios — um gesto não visível para Sophia, mas que transbordava toda a humanidade ferida, mas ainda viva, da criança. Naquele momento, Sophia não era apenas um receptáculo de poder, mas uma alma necessitada de consolo.

— Boa noite, Sophia — respondeu Nathálie, sem se virar, sua voz mais suave do que o habitual, e a porta se fechou atrás dela com leveza, deixando a menina entregue ao sono.

Lá fora, sob o sussurro frio das pedras antigas, Hellian aguardava, imóvel como uma estátua. Nathálie parou diante dele, envolta em um silêncio que ambos compreendiam.

— Vá descansar, Hellian. Eu cuidarei do restante. — A voz de Nathálie era uma ordem, mas também um reconhecimento da lealdade e do cansaço dele.

— Como desejar — respondeu ele com um leve aceno de cabeça, uma obediência que vinha de anos de serviço e confiança mútua, antes de desaparecer no corredor escuro, dissolvendo-se nas sombras como se fosse parte delas.

Nathálie seguiu sozinha pelas galerias escuras, onde o eco de seus próprios passos era o único som a quebrar a quietude ancestral, até o salão de estudos.

As tochas bruxuleavam discretamente, e o aroma de pergaminhos antigos, cera de vela e ervas impregnava o ar, uma fragrância familiar que trazia uma certa paz. Ela parou diante da grande mesa circular, onde instrumentos arcanos estavam organizados com precisão matemática: compassos estelares, esferas de cristal polido e mapas celestes intrincados. Nada era deixado ao acaso ali — nem os mapas, nem os selos de proteção, nem os espelhos de vigília que mostravam os céus.

Poucos minutos se passaram antes que os passos cadenciados de Gregor ecoassem pela entrada do salão. Ele surgiu como uma sombra fiel, um guardião silencioso.

— Se me permite, senhora… tudo está pronto para que possa descansar. Eu cuidarei de tudo durante o dia. — Sua voz era firme, a lealdade inabalável.

Nathálie permaneceu voltada para os instrumentos, os olhos fixos em um ponto vago do mapa etéreo que se projetava sobre a superfície da mesa, uma constelação de perigos e possibilidades.

— Não ficaremos aqui por muito tempo — murmurou, uma nova resolução endurecendo sua voz. — Mas falaremos disso depois. Há muito a ser planejado.

Virou-se por fim, cruzando o olhar com o de Gregor, uma rara vulnerabilidade em seus olhos.

— Quanto ao restante… obrigada, Gregor. Por tudo.

Gregor apenas assentiu, sua expressão uma máscara de estoicismo e compreensão. Não havia mais o que dizer. As palavras eram escassas entre eles, substituídas por uma confiança construída ao longo de éons.

Nathálie deixou o salão. O peso da noite não terminara… mas, pela primeira vez em muito tempo, havia algo semelhante à esperança flutuando entre as sombras.