Capítulo 4 - A Trégua Das Sombras

O caminho da clareira amaldiçoada ao refúgio durou dois dias, por trilhas ocultas, sob a vigilância fria da floresta. A carruagem evitava vilarejos e estradas principais, carregando em silêncio o peso de sua jornada.

Na terceira noite, sob a lua velada, chegaram. O refúgio era uma discreta ruína de convento, camuflada por heras nas encostas de uma colina. A verdadeira entrada repousava sob as pedras.

A carruagem estacou. Gregor saltou primeiro, inspecionando os arredores. Rapidamente, estacionou a carruagem sob o antigo pórtico encoberto, e um símbolo discreto fez uma cortina ilusória apagar o local da vista.

Hellian e Nathálie já haviam descido. O painel de pedra parcialmente coberto por musgo respondeu ao toque de Hellian, revelando a fenda na colina e a escadaria espiral oculta sob as raízes.

Nathálie carregava Sophia nos braços. A menina permanecia adormecida, como em sono encantado. Seus cílios dourados descansavam sobre a pele pálida. Com cuidado, Nathálie a aninhava contra o peito frio, como se já pertencesse ali.

Hellian a acompanhava em silêncio. Logo depois, Gregor desceu a escadaria e se juntou a eles.

Dentro do refúgio, a escadaria serpenteava por dezenas de metros. As tochas se acendiam com a aproximação dos passos. As paredes de pedra antiga estavam impecáveis, preservadas por encantamentos silenciosos.

Ao fim da descida, o salão principal revelou-se: amplo, de teto abobadado, um centro de estudo e estratégia digno da Senhora Armister, repleto de pergaminhos e instrumentos arcanos.

Nathálie levou Sophia por um dos corredores laterais. Gregor e Hellian permaneceram no salão.

— Estamos nos preparando para esse evento há muito tempo… — disse Gregor, cruzando os braços. — Eu já estava apreensivo.

— Velho demais para isso? — provocou Hellian com um meio sorriso. — Visões não têm roteiro, mas você sabe como funciona. O que incomodou foi a Rainha se mover sozinha, enquanto os demais aguardavam. Eu também me senti inquieto, assim como ela.

— Mas agora, com o segredo revelado, as peças voltam à lógica do jogo — disse Gregor, com sobriedade.

— Por isso mesmo não estou mais preocupado — replicou Hellian. — Vou refazer o caminho até a estrada e vigiar a região.

— Está inquieto com a demora da jovem Isolde?

— Ela nunca esteve fora por tanto tempo sem ser observada por um de nós.

— Isolde parece um pouco boba... mas é competente. Tenho fé nela.

Hellian parou, fitando o corredor.

— Sabes que não é só sobre ela, Gregor.

Gregor se afastou, tomando outra direção.

— Pelo que percebi, a senhora Armister irá cuidar da menina pessoalmente. Então, eu reforçarei a retaguarda.

No alto da encosta, sob o luar, Hellian permanecia imóvel sobre uma pedra. O vento soprava frio e constante. Sentiu a presença antes de vê-la.

— Senhorita Lefaith…

Isolde surgiu entre as sombras. Retirou o capuz. Jovem, de cabelos longos e castanhos assim como seus olhos, vestia um vestido simples e justo, de cor escura.

— Mestre Hellian — disse, fazendo uma singela reverência. — Por que tão distante da senhora assim?

— Sua demora me inquietou.

— Eu percebo. Mas levei o tempo necessário para cumprir com perfeição o que me foi solicitado. Era um trabalho minucioso… e complexo.

— Se ela a designou, é porque tinha certeza de que o resultado não seria outro.

— Não se castigue por pensar à frente. É aceitável… diante da forma como tudo estava se desenrolando. E ainda há… minha condição peculiar — disse com um sorriso ingênuo.

Ela então parou por um instante, fitando-o com franqueza:

— É incontestável que as ordens da senhora Armister são absolutas para você… mas isso parece divergir quando se trata de confiar algo a mim. Eu não sou aquilo, Mestre Hellian.

Ele não respondeu. Seu maxilar tencionou levemente, enquanto desviava o olhar.

— Ela nos espera. Vamos depressa.

No interior do refúgio, Nathálie aguardava. Já havia se trocado. Usava agora um vestido claro, leve, mas ainda elegante. Sophia, limpa e acomodada, permanecia adormecida.

Nathálie analisara a condição de Sophia. A transformação, incompleta e quase falha, havia sido selada apenas com seu sangue. Ainda assim, a menina despertara antes do tempo, usara poderes e preservara a consciência — inacreditável. Sophia dormia profundamente, seu coração batia, e o rubor e o calor da vida permaneciam, quando deveriam ter se perdido.

Mais tarde, na câmara de reuniões, Isolde, Gregor e Hellian estavam diante de Nathálie.

— Tudo feito conforme as instruções, minha senhora — disse Isolde. — A cena agora remete a um ataque de bandidos. Os Schneider foram mortos, os bens saqueados.

— Nenhum vestígio mágico? — indagou Nathálie.

— Todos apagados. Mas antes disso, coletei fragmentos residuais de aura.

— De quem? — perguntou Hellian.

— Ainda estou analisando. Por ora, apenas isto: era um vampiro mais antigo que vós, minha senhora. Da Casa dos Oráculos. Sua presença... estava em conflito. Fome, fúria, dor, arrependimento. Emoções demais para um ancião. Isso me perturbou.

— Continue sua análise, senhorita Lefaith — ordenou Nathálie.

Ela se ergueu então, observando os três.

— Compreendam — disse, solene. — Ao acolher esta criança, assumo riscos que talvez ultrapassem os limites de nossas tradições. Sei o que carrego. E por isso preciso da lealdade absoluta de vocês. Não pela Casa, mas por mim. Por esta decisão. E pelo futuro que ela poderá trazer.

Gregor assentiu com gravidade. Hellian manteve-se firme. Isolde, com expressão serena, curvou-se levemente.

— Podem se retirar. Desejo falar com a senhorita Lefaith a sós.

Gregor e Hellian deixaram o recinto. Isolde permaneceu.

Nathálie se aproximou e afastou uma mecha do cabelo da jovem com suavidade, como quem arruma uma fita. Seus olhos, ao invés do azul intenso e penetrante de sempre, exibiam agora um azul pálido, brando, como a luz da alvorada filtrada por véus de seda.

— Obrigada pelo excelente trabalho desta noite. Sei o quanto isso lhe custa. Não será em vão.

Isolde ficou sem palavras. Um toque. Um elogio. Para ela, isso bastava. Curvou-se em reverência e se afastou, o coração leve como uma prece sussurrada.

Na penumbra do corredor externo, Isolde caminhava em silêncio. Foi quando sentiu algo. Uma oscilação súbita, como um chamado contido. Parou. Voltou os olhos na direção da câmara de Nathálie. A aura da vampira havia vacilado — leve, mas real.

— Senhora Armister... — murmurou.

Mas não seguiu até ela. Em vez disso, rumou à câmara onde Sophia repousava. Diante da porta, deteve-se. O corredor estava envolto em penumbra.

— Está tentando me assustar? — perguntou Isolde, sem se virar.

— E isso seria possível? — respondeu Hellian, emergindo da escuridão. Havia certo orgulho contido na voz, como quem recorda que Sophia o encontrara dias antes, mesmo oculto sob véus de sombras profundas — como se tivesse visto através dele.

— Há um limite para o que consigo fazer — disse ela, sorrindo.

— A garota mal despertou e já me encontrou como se eu fosse um infante brincando de esconder.

— Deve ter sido engraçado. Estou ansiosa para conhecê-la.

Hellian não respondeu, mas permaneceu ali, vigilante.

— Vou descansar — disse Isolde por fim, e seguiu por um corredor lateral.

Na noite seguinte, antes que a lua cruzasse o zênite, Isolde e Nathálie já estavam a postos na câmara, lado a lado, em silêncio. Aguardavam.

Na câmara onde Sophia repousava, a escuridão era espessa. Mas sua mente estava longe.

Durante o sono profundo, mergulhada nas águas obscuras da inconsciência, ela vagueava por entre as névoas de suas próprias memórias. Não como quem sonha, mas como quem visita um túmulo — e nele repousa.

Lá estava ela, sentada diante da penteadeira, enquanto sua mãe penteava seus cabelos dourados com ternura metódica. No espelho, via a criada estendendo opções de vestidos. A luz do entardecer beijava suas faces.

Depois, ao piano. Os dedos da menina deslizavam pelas teclas, ao lado da mãe. Tocavam juntas. E o pai, de pé, sorria com orgulho, os olhos marejados de emoção.

Na biblioteca, o pai lhe mostrava uma por uma as espadas antigas. Narrava histórias de batalhas que jamais vivera, mas que decorara como orações sagradas. E ela o ouvia com devoção.

Em sua cama, entre os lençóis bordados com lavandas, a mãe lhe contava histórias de fadas, bruxas, sombras e reinos esquecidos. Contava como quem as vivera. E ela adormecia entre sorrisos e encantamentos.

Tão vívido era o passado, que se esquecia de que aquilo era memória. O cheiro de lavanda, o som abafado dos risos, a luz filtrada pelas cortinas… Era real demais.

Mas então, o rompimento. O último instante. A dor. O rosto angelical da mãe, pálido, firme.

— Você viverá, minha querida...

E então, as garras. Frias. Cravando-se em seu peito. Arrancando-a para fora da carruagem. Separando-as. Para sempre.

A aura de Sophia começou a se erguer — lenta, como os primeiros ventos de uma tempestade imemorial. Primeiro, uma brisa densa e crescente. Depois, redemoinhos que giravam em torno de seu corpo adormecido. Um manto escarlate incandescente envolveu-a, pulsando dor, revolta, perda… e um grito mudo de determinação. Era uma chama viva, bruta, de eras passadas. A própria essência de quem acaba de morrer — e renascer.

Isolde deu um passo atrás, ativando o círculo mágico entalhado ao redor da cama de pedra. Uma barreira ergueu-se com estalo invisível, brilhando com sigilos imemoriais.

Sophia abriu os olhos. Seus claros olhos azuis. Amplos. Carregavam um peso que palavras não sustentam.

Sentou-se devagar, levou as mãos ao rosto… e chorou. Não como quem lamenta. Mas como quem foi arrancada de um sonho e atirada num abismo.

Seus olhos tornaram-se dourados, como a alvorada rompendo o luto da noite. Uma chama sutil se acendeu em seu peito. Seus circuitos etéreos — antes adormecidos — brilharam como lava sob a pele. O poder pulsava. Ela ardia.

Nathálie reagiu com precisão milenar, erguendo círculos mágicos nas direções cardeais da câmara. Eles se fixaram às paredes como âncoras da realidade.

A aura de Isolde se manifestou. Violeta. Intensa. De eras passadas. Pulsava como uma ferida aberta, preenchendo o ar com um arrepio glacial. Seus olhos assumiram o mesmo tom. Oito olhos vermelhos se abriram ao redor dela — olhos que não pertenciam ao mundo dos vivos, fixos em Sophia com uma fome primordial. Arachne havia despertado.

Nathálie ponderou em silêncio:

Ela se sente ameaçada… preciso conter isso agora ou…

Do lado de fora, Hellian se ergueu. Gregor, mais adiante, parou abruptamente, sentindo a distorção no éter. Dentro da câmara, a tensão ameaçava rasgar o ar, densa o suficiente para sufocar.

E então —

A voz. Não de Nathálie. Não de Isolde.

Mas de Sophia.

Poderosa. Um trovão silente que ecoou na própria essência do ser.

— Durma.

O comando foi absoluto.

A aura de Isolde cessou como uma vela ao vento. Seu corpo tombou, adormecida. Vencida por um poder que ela mal compreendia.

Nathálie observou, em choque contido.

Essa… foi minha habilidade? A Voz da Imperatriz? Mas… como?

Ela não revelou a dúvida. Apenas falou com firmeza:

— Contenha-se, criança.

Sua Voz ecoou absoluta, e tudo se acalmou.

Sophia vagueava em confusão, como quem ainda ouve o eco de um sonho. O instinto a guiara. Não o controle.