Capítulo 3 - A Estrada De Sombras

A floresta gemeu sob o vento cortante. A vegetação, gélida e silenciosa, sussurrava ritos fúnebres, e o frio, denso e pungente, apertava ao redor de Nathálie. Os passos dela eram firmes, mesmo sobre a lama úmida das trilhas, mas a figura ao seu lado movia-se com dificuldade dolorosa.

Sophia ainda se adaptava à nova forma.

Havia algo de sobrenatural naquela menina de olhos azul-claro pálido e cabelos dourados. O contraste entre a leveza de sua aparência e o fardo que carregava tornava sua presença quase inverossímil. Ela caminhava calada, mas não por medo - seus olhos estavam vivos, atentos demais para uma criança. Uma leve pontada no ar, um peso quase imperceptível, guiava seus sentidos.

Já estavam próximos da estrada de pedras antigas, onde a carruagem de Nathálie os aguardava. E foi nesse momento que Sophia apertou a mão da vampira com uma firmeza inesperada. Detendo os passos, sem pressa, olhou para cima, com um tom que misturava curiosidade e intuição:

- Quem é este... que nos acompanha nas sombras?

A pergunta caiu como uma pedra em um lago negro. Nathálie parou, virando-se lentamente, os olhos azuis intensos atravessando a neblina.

Das sombras entre galhos enovelados, uma figura emergiu com precisão e tranquilidade. Um vislumbre de surpresa cruzou seu rosto quando o capuz escorregou para trás, revelando Hellian.

O rosto endurecido por batalhas antigas, não

havia expressão em seu rosto. Apenas a postura impecável, a quietude controlada, e seus olhos observavam a menina como se ela fosse um fragmento de algo que ele não sabia se queria preservar ou destruir. Por um instante, eles desviaram-se para o chão, carregados de um peso invisível.

Sophia o olhou com seriedade.

- Você não se esconde muito bem - disse com simplicidade.

Nathálie sorriu, um sorriso breve, quase invisível. Uma pontada, quase esquecida, de algo que se assemelhava à esperança, vibrou em seu peito milenar.

- Você é extraordinária, pequena...

- Já fazia um tempo que eu o sentia. Uma friagem sutil, um pensamento pesado. Mas ele não parece perigoso - disse Sophia. - Ele parece... só triste.

Hellian inclinou levemente a cabeça.

- Meu nome é Hellian - disse apenas, sem adornos.

Não tentou parecer amistoso. Não sorriu. Sophia o encarou, e o silêncio entre os dois parecia pesar como uma promessa ainda não dita.

Nathálie observava em silêncio. Então caminharam até a estrada.

A poucos metros, parada sob uma árvore ancestral, estava a carruagem - um veículo negro de contornos austeros, com arabescos entalhados na madeira e uma pequena lanterna acesa que pendia da lateral. Lá dentro, as sombras pareciam mais densas, o veludo escuro prometendo silêncio e segredos.

Ao lado dela, imóvel como uma estátua, estava Gregor Burkov.

Vestia casaco longo de lã escura, luvas de couro gasto, e botas sujas de estrada. Tinha aparência de seus quarenta e poucos anos, mas os olhos pesavam mais de um século. O rosto anguloso era cortado por uma cicatriz pálida na mandíbula, e os cabelos presos em rabo de cavalo baixo já estavam quase todos grisalhos. Era um homem grande, de ombros largos e uma presença robusta, inegavelmente forte para sua idade.

Ao ver Nathálie se aproximar, curvou-se imediatamente com um gesto fluido. Mas ao ver a criança ao lado dela... seus olhos se estreitaram.

Gregor não ousou perguntar. Apenas abriu a porta e preparou a entrada.

A porta da carruagem se fechou atrás deles com um ruído abafado. Lá dentro, o silêncio tornou-se quase palpável.

O espaço era amplo, mas continha mais sombras do que luz. Os estofados de veludo escuro absorviam o brilho das velas, e o cheiro de couro antigo pairava no ar. Sophia sentou-se com delicadeza, mas a tensão em seu pequeno corpo era visível - os ombros rígidos, a respiração curta, o olhar fixo em algum ponto invisível à frente.

Seu pequeno corpo estava quieto, mas seus olhos... denunciavam a agonia silenciosa.

Nathálie sentou-se ao lado, observando-a em silêncio. Hellian permaneceu do outro lado da carruagem, braços cruzados, olhos semicerrados - e então, por um instante, os olhos dele brilharam num tom rubro escuro, quase imperceptível, como brasas por trás da carne.

Ele falou com naturalidade, mas com precisão, a voz grave cortando o ar pesado:

- A aura dela está instável, milady. E não parece ser apenas pela fome. Há uma pulsação irregular, como se a transição ainda estivesse em curso. Ela está presa entre dois estados, e isso é perigoso. O encanto que você usou está se desfazendo. A pulsação da sede está voltando, mais forte. Não vai durar muito... e quando romper, pode ser pior do que antes.

Nathálie não negou. Retirou a luva da mão esquerda, revelando a pele translúcida. A cicatriz ancestral sob o pulso ainda era visível sob certas luzes, um lembrete constante de pactos antigos.

- Foi apenas um alívio momentâneo - respondeu. - Muito do que a mantém contida... vem dela mesma. Isso não é comum, Hellian.

- Não... não é mesmo - disse ele, com o tom mais grave. - Só reforça o que eu disse. Ela ainda está cruzando a ponte... mas está tentando andar de olhos abertos.

Nathálie fez um pequeno corte em seu pulso com a unha. O sangue escuro escorreu com lentidão, pesado, carregado de séculos.

Ela se virou para a menina:

- Está na hora, pequena. Vai doer menos depois disso.

Sophia hesitou. Quando se aproximou, seus olhos brilharam num tom prateado líquido, como mercúrio sob a luz da vela. Seus lábios tocaram a pele, e o sangue entrou.

Nathálie a afastou gentilmente após poucos segundos. A ferida já se fechava, e seus olhos perderam o brilho dourado, retornando ao azul intenso de sempre.

Sophia recostou-se na parede da carruagem, com os olhos entreabertos.

Por fim, sussurrou:

- Quando você faz essas coisas... seus olhos mudam. Ficam dourados... como uma moeda velha. Mas meio tristes também.

Nathálie a olhou - e sorriu discretamente.

- E os seus... - acrescentou Hellian, voltando os olhos para a menina - ...ficam como prata viva. Mas ainda não sei se são quentes ou frios.

Sophia não respondeu. Apenas suspirou. A fome havia silenciado, substituída por um torpor denso.

Logo, os olhos dela se fecharam devagar, e seu corpo cedeu ao torpor da primeira noite verdadeiramente vampírica.

O silêncio voltou à carruagem. Do lado de fora, os cavalos marchavam sob o manto da floresta, e a madeira rangia a cada curva da estrada, um som monótono que embalava o estranho trio.

Hellian foi o primeiro a romper o silêncio, sua voz baixa, mas carregada de uma urgência sombria:

- Já a vi atuar inúmeras vezes sob a influência das suas visões, milady. Sempre com precisão. Nunca houve questionamentos quanto ao seu preparo. Mas manter essa menina... viva... fora do alcance da Noctis, é mais do que ousadia. É uma afronta.

Nathálie manteve os olhos na menina adormecida. Sua expressão era ilegível, mas a forma como a luz da lanterna roçava seus traços denunciava uma decisão férrea.

- Aos olhos do Véu... ela é uma transgressão viva. Sua existência, por si só, é motivo para que todos aqueles que te desprezam se levantem em busca de vingança. Se o que desejam é uma desculpa para te derrubar, essa criança será o estopim. Os anciões do Véu, aqueles que você investiga e acusa, não hesitarão em usar isso contra a Guardiã do Equilíbrio.

Hellian prosseguiu, a voz ainda mais baixa, quase um sibilar:

- Seria o momento ideal para desfigurar a imagem irrefutável da Dama da Sentença.

Nathálie não respondeu de imediato. Suas mãos tocaram de leve os cabelos de Sophia.

- Esse é exatamente o motivo pelo qual não podem encontrá-la. Já enviei uma mensagem telepática à Senhorita Lefaith. Ela vai reconstruir a cena. Nenhum vestígio sobrenatural permanecerá. A energia será apagada. Nenhum rastro será encontrado.

Hellian ergueu uma sobrancelha, um gesto que revelava sua surpresa contida.

- Você raramente envolve a Senhorita Lefaith dessa forma. Essa menina... é assim tão especial? Ou há algo mais íntimo movendo suas decisões, milady?

Antes que a resposta viesse, um brilho fraco começou a percorrer o corpo de Sophia. Linhas tênues e sutis - como circuitos etéreos - pulsavam sob sua pele pálida, como se energia viva circulasse por suas veias adormecidas, um espetáculo assombroso e belo.

Nathálie olhou para Hellian, os olhos dourados incandescentes por um instante, revelando um lampejo de algo profundo.

- Isso responde sua pergunta? Ela não é especial. É extraordinária.

Hellian, com a voz mais baixa, quase um murmúrio de admiração e receio:

- Os circuitos... estão se expandindo. É o seu sangue. Em meio à transição incompleta... está acelerando processos que talvez nem devêssemos testemunhar. A senhora sabia disso?

Nathálie fechou os olhos por um instante, respirando fundo, como se tentasse conter um sentimento avassalador.

- Faz muitos séculos que eu não me permito agir de modo a ser surpreendida. Cada passo... cada palavra... sempre foi meticulosamente calculado. Mas agora?

Ela abriu os olhos novamente, fixando o brilho prateado sob a pele da menina, um brilho que parecia refletir a própria alma de Nathálie.

- Faz muito tempo que eu não me sinto assim viva.