Capítulo 2 - Olhos Silênciosos

O frio adentrava seus ossos como agulhas invisíveis.

O mundo, agora, era um pântano de sombras e contornos indistintos.

Sophia cambaleava floresta adentro, cega pelas próprias lágrimas, arrastada por um instinto desesperado de fuga - ou talvez, de busca.

As árvores altas, como sentinelas imóveis, assistiam em quietude à sua marcha vacilante. Os galhos nus, ossos da floresta, roçavam suas faces como dedos inquisidores, e as raízes entrelaçadas pareciam querer prendê-la, impedir-lhe o avanço, como se a própria natureza temesse o que agora habitava aquele pequeno corpo infantil.

Ela não compreendia o que era.

O peito ardia com um fogo que não conhecia.

Seu coração batia de maneira desordenada, pulsações martelavam seu crânio, reverberando com intensidade antinatural.

"Por que eu estou viva? O que aconteceu com o meu corpo? Meus pais... meus pais..."

A lembrança ainda era recente - o sangue tingindo o chão, o cheiro metálico fundia-se à terra molhada, o calor do último sopro dos que amava, o grito abafado da morte.

E, mesmo assim, ela estava ali.

Respirando. Pensando. Existindo.

Mas não era a mesma. Algo dentro de si gritava como um animal recém-liberto.

A névoa de sua mente foi subitamente cortada por um fio sutil de sensação.

Algo a observava.

Uma presença vaga, mas indiscutível, dançava ao redor de seus sentidos, como um vulto de seda tocando-lhe a nuca.

Não era apenas uma brisa: era um toque gélido que prometia calor, um convite proibido.

Ela ergueu os olhos úmidos e buscou em vão por olhos ocultos entre os troncos.

Nada via.

Mas sentia.

E com aquela presença veio algo ainda pior: a Fome.

Um vazio abrupto rasgou-lhe o estômago, como se o próprio ventre buscasse devorar-se.

O cheiro do sangue antigo - ainda suspenso na umidade do ar - reacendeu o chamado instintivo.

Seus olhos, azuis como o gelo noturno, dilataram-se.

As pequenas presas pressionaram a carne dos lábios infantis, rompendo-os num traço tênue de rubro.

"Não... não... o que está acontecendo comigo?"

Mas o corpo, traidor, já não obedecia à mente, movendo-se por uma força incontrolável, como se pertencesse agora a algo que não era ela.

No alto de um rochedo envolto pelas trevas, duas figuras assistiam à luta silenciosa.

Nathalie observava. Seu manto negro ondulava com o vento cortante, e seus cabelos dourados brilhavam sob o reflexo pálido da lua, como fios de ouro líquido sob a noite.

Ao seu lado, Hellian mantinha a postura nobre e imperturbável. A aparência de um jovem adulto mascarava sua experiência secular, e seus olhos azul-profundo carregavam a quietude de quem já viu muitas tragédias.

- Ela resiste... impressionante... - murmurou Nathalie, sua voz grave ressoando como seda arranhada.

A criança, embora recém-desperta, combatia a Fome com uma força antinatural. Alguma estabilidade incomum, ainda inexplicável, mantinha a Besta enjaulada - mas a jaula começava a ruir.

- Hellian, por favor. - A voz de Nathalie deslizou firme. - Vá até a carruagem. Sinto uma presença residual poderosa, mas rarefeita. Algo esteve ali antes de nós. Descubra o que puder.

Hellian assentiu com um gesto leve. Seus olhos, por um instante, adquiriram um rubro denso, absorvendo a penumbra como um predador ancestral.

Ele deslizou floresta adentro como uma sombra líquida.

O silêncio o acompanhava.

Junto aos destroços da carruagem, o local era uma cicatriz congelada na carne da floresta.

Madeira estilhaçada, tecidos rasgados, objetos pessoais dispersos sob a pálida geada que cintilava como vidro quebrado.

Hellian ajoelhou-se. As mãos pálidas tocaram a madeira quebrada e o solo manchado.

Fechou os olhos.

A energia residual ainda vibrava sob o véu da realidade, como ecos de um grito recente.

Fragmentos invadiram sua mente: flashes de terror, cheiro de ozônio, estalos sobrenaturais. E algo mais...

Um toque frio. Antigo. Inumano.

Havia ali um véu mental, como um tecido negro encobrindo as memórias. Alguém - ou algo - ocultara parte da verdade, mas a marca de um poder esmagador ainda pulsava.

De volta ao rochedo, ele relatou:

- A destruição é vasta, Milady. - Sua voz manteve a compostura. - O ataque foi brutal. Há impressões psíquicas de pânico absoluto e o rastro de um poder vampírico imenso. Algo ou alguém ocultou intencionalmente partes do ocorrido com grande maestria, mas a densidade da energia residual é inegável. Quem atacou a transformou, resultando em sua peculiar natureza atual.

Por um breve instante, os olhos de Nathalie se fecharam.

Sob o manto da eternidade, sua mente recordou outro pequeno rosto que jamais envelheceu.

A dor antiga pulsou, mas ela a dominou.

- Ela está perto - murmurou com gravidade. - A Fome já lhe morde a alma.

Hellian tornou a desaparecer entre as sombras.

Nathalie desceu a encosta como névoa viva, até alcançar a clareira onde Sophia tremia.

E então, o inevitável.

O grito primal rompeu as últimas amarras.

Sophia explodiu num salto abrupto.

Como um projétil de carne e desespero, disparava entre troncos, pedras e raízes, em movimentos imprevisíveis.

Não corria - dançava.

Como uma criatura etérea guiada pelo instinto recém-desperto.

Cada impulso aumentava a velocidade.

Suas pequenas mãos, garras diminutas mas letais, buscavam o calor vital da presença à frente.

Nathalie permaneceu firme.

No primeiro salto, girou suavemente, desviando com a leveza de um véu ao vento.

No segundo, recuou um passo, o vestido flutuando como fumaça.

A valsa começou.

Sophia avançava num frenesi de voracidade, lançando o corpo em ângulos impossíveis, mas Nathalie deslizava, flutuava, avaliava.

"Ela já compreende a força vampírica de forma instintiva... Como?"

O balé predatório durou longos minutos.

O corpo infantil, finalmente, começou a vacilar.

A respiração tornou-se arfante.

Os membros tremiam.

Os olhos, porém, ainda ardiam com a fúria da Besta.

Agora.

- Chega. - A voz de Nathalie rompeu o ar, impregnada de poder.

O comando caiu sobre Sophia como um peso invisível.

Seu corpo congelou em pleno salto.

Garras estendidas, olhos arregalados, presas expostas.

O peito ainda arfava, mas a Besta fora momentaneamente contida.

Nathalie aproximou-se com passos suaves. Seus olhos dourados suavizaram-se.

- Calma, minha pequena. Está segura agora. Eu estou aqui.

Sophia ergueu os olhos, ainda turva, ainda trêmula.

- ...O que eu sou? - sussurrou, carregada de medo e dúvida.

Nathalie ajoelhou-se. A dor de sua própria perda faiscou em seus olhos, mas ela a conteve.

- Você atravessou algo incompreensível, Sophia. Ainda nesta noite, sua natureza foi alterada. Seu corpo e alma tocaram algo muito antigo. Agora você é diferente. Mas ouça-me: não és um monstro. És nova.

Sophia mal piscava. O peso das palavras a envolvia.

- Por que você está aqui?

- Eu senti você - respondeu Nathalie com serenidade. - Algo me guiou. Eu vi o que aconteceu com seus pais. E eu vim porque, se não viesse, você se perderia.

Ela estendeu a mão com respeito e delicadeza:

- Eu sou Nathalie.

A menina hesitou. Olhou a mão. Olhou o rosto.

- ...Sophia.

- É um prazer, Sophia. E eu vim porque sei o quanto precisas de proteção. Há perigos maiores do que pode imaginar. Eu posso guiá-la. Se me permitir.

O silêncio as envolveu por um instante solene.

A menina olhou a floresta sombria ao redor.

Então, hesitante, estendeu a pequena mão.

- ...Tá bom...

Nathalie sorriu com ternura velada.

- Vamos, minha pequena. A noite é longa.

Juntas, desapareceram sob o manto da floresta.