O frio adentrava seus ossos como agulhas invisíveis.
O mundo, agora, era um pântano de sombras e contornos indistintos.
Sophia cambaleava floresta adentro, cega pelas próprias lágrimas, arrastada por um instinto desesperado de fuga - ou talvez, de busca.
As árvores altas, como sentinelas imóveis, assistiam em quietude à sua marcha vacilante. Os galhos nus, ossos da floresta, roçavam suas faces como dedos inquisidores, e as raízes entrelaçadas pareciam querer prendê-la, impedir-lhe o avanço, como se a própria natureza temesse o que agora habitava aquele pequeno corpo infantil.
Ela não compreendia o que era.
O peito ardia com um fogo que não conhecia.
Seu coração batia de maneira desordenada, pulsações martelavam seu crânio, reverberando com intensidade antinatural.
"Por que eu estou viva? O que aconteceu com o meu corpo? Meus pais... meus pais..."
A lembrança ainda era recente - o sangue tingindo o chão, o cheiro metálico fundia-se à terra molhada, o calor do último sopro dos que amava, o grito abafado da morte.
E, mesmo assim, ela estava ali.
Respirando. Pensando. Existindo.
Mas não era a mesma. Algo dentro de si gritava como um animal recém-liberto.
A névoa de sua mente foi subitamente cortada por um fio sutil de sensação.
Algo a observava.
Uma presença vaga, mas indiscutível, dançava ao redor de seus sentidos, como um vulto de seda tocando-lhe a nuca.
Não era apenas uma brisa: era um toque gélido que prometia calor, um convite proibido.
Ela ergueu os olhos úmidos e buscou em vão por olhos ocultos entre os troncos.
Nada via.
Mas sentia.
E com aquela presença veio algo ainda pior: a Fome.
Um vazio abrupto rasgou-lhe o estômago, como se o próprio ventre buscasse devorar-se.
O cheiro do sangue antigo - ainda suspenso na umidade do ar - reacendeu o chamado instintivo.
Seus olhos, azuis como o gelo noturno, dilataram-se.
As pequenas presas pressionaram a carne dos lábios infantis, rompendo-os num traço tênue de rubro.
"Não... não... o que está acontecendo comigo?"
Mas o corpo, traidor, já não obedecia à mente, movendo-se por uma força incontrolável, como se pertencesse agora a algo que não era ela.
No alto de um rochedo envolto pelas trevas, duas figuras assistiam à luta silenciosa.
Nathalie observava. Seu manto negro ondulava com o vento cortante, e seus cabelos dourados brilhavam sob o reflexo pálido da lua, como fios de ouro líquido sob a noite.
Ao seu lado, Hellian mantinha a postura nobre e imperturbável. A aparência de um jovem adulto mascarava sua experiência secular, e seus olhos azul-profundo carregavam a quietude de quem já viu muitas tragédias.
- Ela resiste... impressionante... - murmurou Nathalie, sua voz grave ressoando como seda arranhada.
A criança, embora recém-desperta, combatia a Fome com uma força antinatural. Alguma estabilidade incomum, ainda inexplicável, mantinha a Besta enjaulada - mas a jaula começava a ruir.
- Hellian, por favor. - A voz de Nathalie deslizou firme. - Vá até a carruagem. Sinto uma presença residual poderosa, mas rarefeita. Algo esteve ali antes de nós. Descubra o que puder.
Hellian assentiu com um gesto leve. Seus olhos, por um instante, adquiriram um rubro denso, absorvendo a penumbra como um predador ancestral.
Ele deslizou floresta adentro como uma sombra líquida.
O silêncio o acompanhava.
Junto aos destroços da carruagem, o local era uma cicatriz congelada na carne da floresta.
Madeira estilhaçada, tecidos rasgados, objetos pessoais dispersos sob a pálida geada que cintilava como vidro quebrado.
Hellian ajoelhou-se. As mãos pálidas tocaram a madeira quebrada e o solo manchado.
Fechou os olhos.
A energia residual ainda vibrava sob o véu da realidade, como ecos de um grito recente.
Fragmentos invadiram sua mente: flashes de terror, cheiro de ozônio, estalos sobrenaturais. E algo mais...
Um toque frio. Antigo. Inumano.
Havia ali um véu mental, como um tecido negro encobrindo as memórias. Alguém - ou algo - ocultara parte da verdade, mas a marca de um poder esmagador ainda pulsava.
De volta ao rochedo, ele relatou:
- A destruição é vasta, Milady. - Sua voz manteve a compostura. - O ataque foi brutal. Há impressões psíquicas de pânico absoluto e o rastro de um poder vampírico imenso. Algo ou alguém ocultou intencionalmente partes do ocorrido com grande maestria, mas a densidade da energia residual é inegável. Quem atacou a transformou, resultando em sua peculiar natureza atual.
Por um breve instante, os olhos de Nathalie se fecharam.
Sob o manto da eternidade, sua mente recordou outro pequeno rosto que jamais envelheceu.
A dor antiga pulsou, mas ela a dominou.
- Ela está perto - murmurou com gravidade. - A Fome já lhe morde a alma.
Hellian tornou a desaparecer entre as sombras.
Nathalie desceu a encosta como névoa viva, até alcançar a clareira onde Sophia tremia.
E então, o inevitável.
O grito primal rompeu as últimas amarras.
Sophia explodiu num salto abrupto.
Como um projétil de carne e desespero, disparava entre troncos, pedras e raízes, em movimentos imprevisíveis.
Não corria - dançava.
Como uma criatura etérea guiada pelo instinto recém-desperto.
Cada impulso aumentava a velocidade.
Suas pequenas mãos, garras diminutas mas letais, buscavam o calor vital da presença à frente.
Nathalie permaneceu firme.
No primeiro salto, girou suavemente, desviando com a leveza de um véu ao vento.
No segundo, recuou um passo, o vestido flutuando como fumaça.
A valsa começou.
Sophia avançava num frenesi de voracidade, lançando o corpo em ângulos impossíveis, mas Nathalie deslizava, flutuava, avaliava.
"Ela já compreende a força vampírica de forma instintiva... Como?"
O balé predatório durou longos minutos.
O corpo infantil, finalmente, começou a vacilar.
A respiração tornou-se arfante.
Os membros tremiam.
Os olhos, porém, ainda ardiam com a fúria da Besta.
Agora.
- Chega. - A voz de Nathalie rompeu o ar, impregnada de poder.
O comando caiu sobre Sophia como um peso invisível.
Seu corpo congelou em pleno salto.
Garras estendidas, olhos arregalados, presas expostas.
O peito ainda arfava, mas a Besta fora momentaneamente contida.
Nathalie aproximou-se com passos suaves. Seus olhos dourados suavizaram-se.
- Calma, minha pequena. Está segura agora. Eu estou aqui.
Sophia ergueu os olhos, ainda turva, ainda trêmula.
- ...O que eu sou? - sussurrou, carregada de medo e dúvida.
Nathalie ajoelhou-se. A dor de sua própria perda faiscou em seus olhos, mas ela a conteve.
- Você atravessou algo incompreensível, Sophia. Ainda nesta noite, sua natureza foi alterada. Seu corpo e alma tocaram algo muito antigo. Agora você é diferente. Mas ouça-me: não és um monstro. És nova.
Sophia mal piscava. O peso das palavras a envolvia.
- Por que você está aqui?
- Eu senti você - respondeu Nathalie com serenidade. - Algo me guiou. Eu vi o que aconteceu com seus pais. E eu vim porque, se não viesse, você se perderia.
Ela estendeu a mão com respeito e delicadeza:
- Eu sou Nathalie.
A menina hesitou. Olhou a mão. Olhou o rosto.
- ...Sophia.
- É um prazer, Sophia. E eu vim porque sei o quanto precisas de proteção. Há perigos maiores do que pode imaginar. Eu posso guiá-la. Se me permitir.
O silêncio as envolveu por um instante solene.
A menina olhou a floresta sombria ao redor.
Então, hesitante, estendeu a pequena mão.
- ...Tá bom...
Nathalie sorriu com ternura velada.
- Vamos, minha pequena. A noite é longa.
Juntas, desapareceram sob o manto da floresta.