O CORAÇÃO DA CHAMA ETERNA

CAPÍTULO 1:

Raevan Valoryn – A Sombra do Sangue

Eu voltei ao Santuário de Siryel pela dor.

Não pela fé. Nunca mais por fé.

O lugar ainda cheirava a cinzas e traição. As colunas partidas, os vitrais coloridos tingidos de ferrugem e sangue seco. Ali, onde o fogo nos unia como irmãos da Casa Valoryn, eu fui deserdado.

Escolhi Siryel porque aqui... eu morri.

E aqui também poderia renascer.

A cada passo entre os escombros, as runas em minha pele queimavam. A magia corrompida pulsa dentro de mim — não como um dom, mas como uma maldição viva, como brasas encravadas sob carne.

Minha capa se arrastava como sombra líquida entre as pedras. O manto negro e carmesim, rasgado nas extremidades, era tudo que restava de minha nobreza. Meus cabelos — negros, pesados, com mechas de brasa viva — sibilavam no ar úmido.

Eu falava com o fogo. Ele me respondia em silêncio.

Foi quando a senti.

Um aroma de mirra. Cinza e feitiço.

Ela caminhava como névoa sagrada.

Cassara.

 Mère Cassara – Alta Sacerdotisa do Fogo Silencioso

Os ossos da Primeira Sacerdotisa estavam aqui.

A profecia era clara: “Onde o sangue do traidor escorrer, ali se erguerá a luz do novo templo.”

E Raevan Valoryn sangrou neste lugar. Por isso vim.

Siryel estava amaldiçoado, mas eu caminhava entre ruínas como uma oferenda viva. Meus pés descalços não sentiam frio — o tecido encantado da túnica branca fluía como vapor. Os véus dourados flutuavam ao meu redor, e minha trança prateada arrastava um feitiço antigo por onde passava.

Sentei-me diante do altar partido.

Acendi uma chama azul. Pequena. Frágil.

E o fogo me respondeu.

Mas não foi ele quem apareceu primeiro.

Foi Raevan.

O exilado. O corrompido. O irmão do pecado.

Seu corpo carregava a fúria do fogo que enlouquece, e seu olhar... oh, aquele olhar. Como brasas com nervos dourados. Como olhos que ainda choravam por algo que já destruíram.

Ele me observava como um ídolo caído.

Eu o encarei como se ele ainda pudesse ser salvo.

Ilusão. Mas bonita.

 Raevan

— Ainda orando? — perguntei.

Minha voz soou como fumaça nos vitrais partidos. Eu queria feri-la com palavras, antes que ela me ferisse com fé.

Ela abriu os olhos devagar. Os olhos dela não tinham pupilas. Dourado puro, como se já tivessem visto além de todas as mentiras.

— O fogo ouve os que se calam, Raevan. — Ela tocava a chama azul com os dedos nus.

A calidez daquele gesto me enfureceu.

— E eu prefiro os que gritam. O mundo precisa queimar com propósito, Cassara. Não com preces.

Dei um passo à frente. A terra tremeu. A runa em meu peito brilhou.

Ela não se mexeu.

— A Herdeira está sonhando — ela disse. — Te viu. Chorou no sono. Está perto da quebra.

Eu parei.

Lyrianne.

— Não quero quebrá-la — sussurrei. — Quero moldá-la. Ela é o que sobrou de nós. Do que fui.

— Do que você destruiu — ela respondeu.

— Do que me obrigaram a destruir.

Meus punhos cerraram. A chama dela parecia zombar de mim.

Então, ataquei.

 Cassara

Eu não hesitei.

A chama azul se ergueu com meu gesto. Três véus giraram, se tornando lanças de luz. A primeira riscou o manto de Raevan. A segunda atingiu o chão ao lado dele.

A terceira... ele queimou com uma explosão de chamas negras.

O ar distorceu. Meus ouvidos zuniram.

Mas ele cambaleou. A magia dele, poderosa, era instável.

Eu avancei. Meus dedos tocaram o ombro dele — e invoquei o selo. Uma runa de silêncio.

— Você mancha o que restou do sagrado — eu disse.

— O sagrado me cuspiu como cão — ele rosnou.

Então, sombras me envolveram. Ele me lançou contra a parede com o peso da dor acumulada em cada lembrança.

Mas o altar reagiu.

O chão estremeceu. A lua ficou completamente vermelha. E algo... apareceu.

👁 Raevan

No centro do templo... uma menina.

Pés descalços. Mãos cobertas de cinza. Chorando.

— Lyrianne.

Ela não nos viu. Mas o sonho dela nos envolvia.

Era uma visão. Um aviso. Um chamado.

Cassara se ergueu ao meu lado.

— Ela é a chave — murmurou. — Mas precisa morrer.

Virei o rosto para ela, ainda ofegante da luta.

— Você quer destruí-la.

— Quero libertá-la — disse. — Queime-a, e nascerá nova.

Eu toquei o chão com os dedos. Ele ainda carregava o sangue da minha linhagem.

— E se ela vier a mim por escolha?

— Então que arda contigo — disse ela, com um leve tremor nos lábios.

Me aproximei.

— Tens medo de mim, Cassara?

— Não.

(pausa)

Tenho medo... de gostar de ti mais do que deveria.

A chama se apagou.

E com ela... nasceu nossa aliança.