Capítulo 6 — O Primeiro Fragmento Escondido

Na manhã seguinte, fui acordada por um som familiar e reconfortante: o estalar de gordura sobre o fogo.

Abri os olhos lentamente. O cheiro de carne tostando com ervas silvestres invadia o ar, acompanhado pelo aroma amargo de raízes assadas e pelo perfume levemente adocicado de folhas de mirval secas. Meu estômago roncou antes mesmo que eu me sentasse.

Kael estava agachado junto à fogueira, assando o que pareciam pedaços de javali silvestre em espetos improvisados.

— Bom dia, princesa incendiária — resmungou ele, sem sequer olhar para mim. — Espero que goste malpassado. O bicho tentou me morder mesmo morto.

— Você caçou isso agora? — perguntei, ainda tentando acordar.

— Acordei com a sua barriga roncando. Achei que podia ser uma fera selvagem — respondeu, com um meio sorriso escondido sob a barba trançada. — Só que era pior. Era fome.

Tharion estava encostado em uma pedra, de braços cruzados. Seus olhos dourados me acompanharam em silêncio enquanto eu me sentava perto da fogueira. Havia algo no jeito como ele me observava agora — não vigilância, mas... presença. Cuidado contido.

— Dormiu bem? — ele perguntou.

— Mais do que esperava.

Kael bufou.

— Ela dormiu feito pedra. Eu fiquei de guarda. Vocês dois roncam.

— Eu não ronco — retruquei, ofendida.

— Ronca sim. Como uma dragoa asmática.

Tharion ergueu uma sobrancelha.

— E você? Dorme com uma adaga sob o travesseiro?

Kael deu de ombros.

— Já dormi sob pedras piores que esse chão. E minha adaga gosta de travesseiros macios.

Rimos. Pela primeira vez, rimos juntos.

O café da manhã foi simples, mas inesquecível.

A carne tinha gosto de fumaça e sangue fresco, temperada com sal e folhas verdes que Kael chamava de "ervas que não matam ninguém". Havia raízes crocantes, com uma textura terrosa e sabor levemente adocicado, e pequenos pães achatados que Tharion assara na noite anterior com farinha de aveia e frutos secos esmagados — ele não falou, mas eu soube. Tinham um gosto quase nostálgico, como algo que minha mãe teria feito.

Comemos em silêncio, saboreando cada pedaço como se fosse um banquete.

Depois, Tharion se levantou, batendo as mãos nas calças.

— Precisamos partir. A trilha para o norte é longa e pouco segura. Mas leva à Torre do Vento Partido. Lá encontraremos respostas... e talvez o próximo fragmento.

— Mais ruínas e perigos mortais. Excelente — murmurou Kael. — E eu achando que teria um dia de descanso.

— O Coração não espera — disse Tharion, sério.

Eu me levantei também. Senti o calor leve da marca sob minha pele — não ardente como antes, mas pulsante. Como um lembrete de que algo me chamava.

Antes de partirmos, olhei para a clareira uma última vez. Para o lugar onde, pela primeira vez, ouvi alguém cantar por mim.

Guardei aquele instante como se fosse um talismã.

E seguimos. Os três.

Um dragão cansado. Um anão exilado. E eu — uma herdeira sem nome.

Mas pela primeira vez... eu começava a querer descobri-lo.

 

O Primeiro Fragmento

A trilha se estreitava conforme avançávamos pelo bosque antigo. As árvores ali pareciam lembrar de eras passadas — troncos grossos, retorcidos, cobertos por musgos que brilhavam levemente em tons azul-esverdeados. O ar tinha gosto de umidade e folhas apodrecidas. E magia. Como se a própria floresta respirasse conosco.

Tharion caminhava à frente, passos largos e silenciosos. Mesmo em forma humana, havia algo de predador em seu modo de se mover — atento, presente, como se ouvisse a terra.

Kael vinha logo atrás, praguejando baixinho toda vez que um galho lhe acertava a testa ou uma raiz o fazia tropeçar.

— Malditas árvores vivas — resmungou ele, esfregando a canela. — Acho que uma delas me deu uma rasteira.

— Você pisa como um javali cego — murmurei.

— E você como uma princesa que nunca viu lama. Acha que esse vestido vai durar até o fim do dia?

Olhei para minha túnica de linho, já manchada de barro, rasgada nas bordas.

— Não é um vestido — retruquei.

— Hm. Então só parece um, só fede como um, só arrasta como um. Entendi.

Ignorei. Mas por dentro, sorri.

Caminhávamos há horas quando o terreno começou a mudar. As árvores rarearam. O musgo deu lugar a pedras secas, e a brisa que vinha do norte trazia cheiro de ferrugem e algo mais — como relâmpagos contidos.

— Estamos próximos — disse Tharion, parando ao pé de uma colina rochosa.

Diante de nós, um conjunto de torres desabadas se erguia no topo da elevação, como costelas de um monstro morto. Uma antiga fortaleza. O vento uivava entre os arcos partidos.

— Bem-vindos à Torre do Vento Partido — ele disse.

Subimos em silêncio, sentindo o peso da atmosfera se transformar. Havia algo... instável ali. A própria luz parecia curvar-se, cintilar de forma errática entre as pedras. Cada passo era como atravessar uma teia invisível.

Lá dentro, o tempo parecia outro.

O Salão do Círculo era vasto, mesmo em ruínas. O teto havia desabado em partes, revelando o céu cinzento. Mas marcas arcanas ainda brilhavam no chão, desenhando círculos concêntricos e runas esquecidas. No centro, uma laje de mármore negro guardava algo — um pedestal de vidro antigo e rachado.

E sobre ele... um fragmento.

Pequeno. Luminoso. Pulsando em tons dourados e vermelhos.

Meu peito ardeu.

Não de dor, mas de reconhecimento.

A marca no meu ombro se aqueceu, como se respondesse ao chamado. E por um instante, o mundo sumiu.

Tudo o que restou foi o som — o coração do fragmento batendo em uníssono com o meu.

Tharion se aproximou, devagar.

— Esse é o primeiro. O Fragmento do Sul. Chamado de Chama Silente.

— Posso... tocar?

— Pode. Mas esteja pronta. Ele mostrará coisas.

Estendi a mão. Os dedos trêmulos. E toquei.

No mesmo instante, fui arrancada dali.

Vi fogo.

Uma cidade em chamas. Elfos gritando. Chamas corrompidas — negras, azuis. E no centro de tudo, um altar de pedra. Alguém de joelhos sobre ele.

Eu.

Ou alguém como eu.

E à frente... Raevan.

Sorrindo.

Recuei com um grito. Caí de joelhos, o coração acelerado. A visão desapareceu tão rápido quanto viera, mas a sensação permaneceu: terror, impotência, e... algo mais. Uma força bruta crescendo em mim. Como se o fragmento tivesse aberto uma porta.

Tharion se ajoelhou ao meu lado. Tocou meu ombro com firmeza.

— Você viu?

— Eu vi... eu senti. Algo muito errado. Ele estava lá.

— Raevan? — perguntou Kael, sério agora.

Assenti.

— E havia fogo. Fogo que... corrompia.

Ficamos em silêncio por um tempo, olhando para o fragmento que agora se misturava em meu ser 

— Isso é só o começo — disse Tharion.

— É — concordei. E, pela primeira vez, senti a responsabilidade como um peso real. Não como uma história contada por outros.

O destino do mundo... podia estar dentro de mim.

E essa ideia me dava medo. Mas também... esperança.