Capítulo 5 — Aquele que Queimou o Céu

Narrado por Lyrianne

O frio das montanhas queimava os pulmões, cortando o ar com a lâmina invisível do inverno tardio.

Depois de três dias atravessando vales cobertos de névoa e encostas salpicadas de gelo, chegamos às Ruínas de Virandor, um antigo reduto élfico escondido no coração da serra. A floresta parecia guardá-lo como um segredo — raízes antigas cobriam as colunas partidas, e folhas secas se acumulavam nos corredores silenciosos como se ali nunca houvesse pisado um pé vivo.

Tharion entrou primeiro. Passou os dedos sobre um símbolo entalhado na parede: o Olho do Fogo, emoldurado por chamas curvas.

“Aqui começou o fim da primeira era do mundo,” murmurou.

O santuário era feito de pedra clara manchada pelo tempo. Galhos haviam invadido os arcos, e pássaros dormiam nos vãos onde antes tremulavam bandeiras élficas. Ao fundo, uma antiga forja ainda se erguia, entulhada de carvão fossilizado.

Kael pigarreou. “Temos teto, chão seco e ninguém nos seguindo. Hora de cozinhar.”

No pátio central das ruínas, Kael montou um pequeno braseiro portátil que tirou de sua mochila anã. Com gestos rápidos, acendeu a chama e começou a preparar o jantar.

“Tiraram tudo de mim. Mas nunca tiraram minha receita de ensopado de raiz de narda com carne curada e bolotas de pedra-macia.”

As bolotas de pedra-macia eram, na verdade, pequenos bolinhos de farinha salgada, assados sobre pedra quente, crocantes por fora e fofos por dentro. O ensopado fervia num pequeno caldeirão de cobre, soltando um aroma terroso, quente e reconfortante — cebolas secas, cenouras silvestres, ervas da serra e fatias de carne curada com especiarias.

Tharion, por sua vez, trouxe algo envolto em folhas negras de fogo: frutas douradas, pequenas e brilhantes como âmbar, com um sabor entre damasco e melado de fogo. “Colhem-se no alto dos Picos Ardentes, onde nenhuma neblina toca,” explicou.

As frutas eram quentes ao toque, como se ainda vivessem. Quando as mordi, o suco queimou levemente a língua e depois se dissolveu num doce que parecia acender algo dentro de mim.

“Ajudam no foco mágico,” ele disse, com um meio sorriso. “E são boas com bolinhos.”

Comemos sob as estrelas, sentados em pedras gastas pelo tempo. Kael contou piadas secas sobre anões e goblins (“Um goblin entra numa mina e acha um anão dormindo. Quem tá mais burro?”), e Tharion apenas ouvia, com um olhar distante, como se aquelas ruínas falassem mais com ele do que nós jamais poderíamos.

Mais tarde, quando o fogo se reduziu a brasas e Kael roncava enrolado em seu manto de viagem, me aproximei de Tharion. Ele estava sentado diante da fogueira, imóvel como uma escultura viva.

“Você não dorme?”

“Não como os mortais.”

A fogueira refletia nos olhos dele, que ardiam em tons de ouro e rubi.

“Quem é você... de verdade?”

Tharion permaneceu em silêncio por longos segundos. A chama estalou entre nós.

“Sou Tharion Vellarys. Guardião do Coração da Chama Eterna. E também... um dragão ancestral, nascido antes que o mundo soubesse o nome da luz.”

Minha respiração travou.

“Então você—”

“Sim. Eu queimei os céus. Rasguei muralhas de sombras com o sopro. Eu vi cidades virarem cinza. E falhei. Falhei em proteger o que me foi confiado.”

“Minha mãe?”

Tharion fechou os olhos por um instante. “Ela acreditava no fogo como criação, não destruição. E amou quem não deveria ser amado. A mim. E quando tudo desabou, confiou a mim a única coisa que importava: você.”

As palavras dele cortaram fundo. Um silêncio denso nos envolveu.

“Você tem os olhos dela,” murmurou. “Mas queima mais fundo.”

Treinamento de Fogo

Tharion desenhou um círculo de cinzas ao redor de uma tocha apagada. O ar parecia mais denso dentro daquele espaço, como se o tempo ali se dobrasse ao calor.

“Sinta a marca,” ele disse, a voz tão firme quanto o vento antes da tempestade. “Não force. Apenas lembre-se de quem você é.”

Engoli em seco. Sentei dentro do círculo. Cruzei as pernas, fechei os olhos. A madeira da tocha exalava um cheiro adormecido, como carvão esperando ser lembrado do fogo.

Respirei.

Nada.

A marca em meu ombro esquerdo — um traço vermelho em forma de chama entrelaçada — formigava. Era como uma lembrança que eu não conseguia decifrar. Uma palavra presa na ponta da alma.

Tentei visualizar fogo. A chama dançando. Tentei querer queimar. Tentei me concentrar em calor, em luz.

Nada.

O ar à minha volta estava gelado. Gotas de suor frio escorriam por minha nuca. Frustração começou a me morder como uma fera silenciosa. Cada tentativa falha apertava meu peito como se algo estivesse me julgando — como se eu estivesse traindo o que quer que existisse dentro de mim.

“Por que não funciona?” sussurrei, irritada.

Tharion se aproximou. Seus olhos, intensos como brasas, não demonstravam impaciência, apenas... silêncio.

“Fogo não é um comando,” ele disse. “É resposta.”

Respondi com um olhar ríspido, mas dentro de mim tudo era confuso. Quente e frio ao mesmo tempo.

Respirei de novo, mais fundo. Tentei não pensar. Tentei lembrar o que sentia quando sonhava com a chama — aquele calor confortável no estômago, como um abraço de alguém que você nunca conheceu, mas sempre amou. O toque da minha mãe... talvez fosse isso?

Uma lembrança veio: minha mãe me envolvendo em um cobertor vermelho, o mundo ao redor tremendo em chamas, sua voz dizendo “Você é mais do que pensa, minha filha. Você é fogo.”

A marca queimou.

Literalmente.

Uma ardência subiu pelo meu braço, serpenteando por dentro da pele como lava viva. Não doía. Era uma dor quente, doce, como se meu corpo reconhecesse o caminho da energia — como se o fogo estivesse apenas esperando um “sim”.

Meu coração acelerou.

A chama surgiu. Não da tocha. Das minhas mãos.

Uma pequena labareda, branca no centro e dourada nas bordas, flutuava sobre minha palma. Pulsava com o ritmo do meu coração. A primeira vez... que algo realmente saiu de mim.

“Você sente?” Tharion murmurou, ajoelhado à minha frente. Seus olhos estavam fixos na chama, não em mim.

Balancei a cabeça. “É como... como se algo me visse por dentro. Como se me ouvisse.”

“Porque houve verdade,” ele respondeu. “Fogo é memória. Emoção. Alma em movimento.”

Soltei o ar. E junto dele, a chama vacilou. Fechou-se. Sumiu.

A frustração voltou — afiada, cruel. Quis gritar.

“É isso,” Tharion disse. “Não lute contra a frustração. Sinta-a. Entenda-a. Ela é uma emoção. E emoção é chama. Toda magia que vem de você, vem do que você sente.”

Fechei os olhos de novo. Desta vez, deixei vir o que realmente estava preso.

Raiva.

Tristeza.

Vontade de entender por que fui deixada. Por que fui escondida. Por que ninguém me explicou nada. Por que eu não sabia quem eu era.

Senti o calor voltar — diferente agora. Mais denso, mais quente, mais presente.

As mãos arderam. A chama subiu como uma serpente dourada, dançando no ar, envolvendo a tocha.

Ela se acendeu.

De uma vez só. Uma labareda viva, branca no centro, dourada nas pontas, quase como as frutas que Tharion havia trazido. A tocha não queimava: vibrava. Emitia um som baixo, como um sussurro ancestral.

Tharion sorriu. Um sorriso raro, pequeno, mas verdadeiro.

“Você encontrou a primeira fagulha. Agora aprenda a não perdê-la.”

À noite, depois da refeição, Kael tirou uma pequena harpa dobrável — anã, de cordas de prata — e tocou uma melodia antiga, melancólica, sobre as minas de pedra-viva e um amor perdido sob as montanhas.

Tharion ouviu em silêncio. Depois, fui eu quem cantei.

...Que a chama não se perca / que o coração não se apague / que o céu lembre teu nome / mesmo quando fores cinza...

Tharion baixou os olhos. Quando a última nota morreu, ele sussurrou:

-Essa canção foi de sua mãe. Ela a criou para você.

Engoli em seco. O gosto doce das frutas flamejantes ainda estava em minha língua.

Durante a madrugada, enquanto o vento uivava entre os arcos quebrados, o pergaminho que eu guardava começou a brilhar com uma luz tênue e vermelha. Linhas surgiram como fogo desenhado: trilhas, colinas, pântanos...

No centro, pulsava um nome: Tumba de Karyel.

- O primeiro fragmento… Ela nos chama. “disse Tharion.”

Kael fechou o mapa e já se erguia. “Amanhã partimos. Mas espero que sua chama saiba nadar. Porque os pântanos de Karyel... não gostam de visitantes.”

 

A Fagulha e o Peso do Nome

A tocha vibrava em chamas vivas, mas o que queimava de verdade era dentro de mim.

Meu peito parecia ter sido aberto por dentro — não com dor, mas com um tipo de verdade crua. A chama não era só fogo. Era lembrança, sangue, promessa.

As lágrimas vieram sem que eu pedisse.

Quentes.

Silenciosas.

Não de tristeza, mas de alívio. Como se meu corpo estivesse dizendo: Finalmente. Como se uma porta que eu nem sabia estar trancada tivesse sido arrombada pelo próprio coração.

Tharion permaneceu quieto, observando como se estivesse diante de algo sagrado. Mas eu senti. O ar ao nosso redor mudou. A floresta, até então silenciosa, parecia conter o fôlego. As folhas não se moviam. Nem pássaros, nem vento.

Nada.

Só a chama entre nós dois.

“O que está acontecendo?” sussurrei, com a voz embargada. “Tudo parou…”

Tharion levantou lentamente. O crepúsculo dourava os galhos acima de nós, mas a luz ao redor estava... errada. Como se a própria natureza estivesse ouvindo.

“Você tocou a Chama Ancestral,” ele disse. “Ela responde ao chamado da Herdeira.”

Engoli em seco. “Mas eu não... não sei o que estou fazendo.”

Ele deu um passo adiante, sua presença ainda mais intensa que o fogo. Não era calor físico — era pressão espiritual, como se uma montanha olhasse para uma fogueira e dissesse: Mostre quem você é.

“Você não precisa saber. Só precisa sentir.”

Meus olhos voltaram à chama. Ela oscilava com meus pensamentos. Quando eu sentia medo, ela enfraquecia. Quando me lembrava do abraço da minha mãe... ela crescia.

E então entendi.

Minha magia era emoção moldada. Era tudo o que eu nunca pude dizer, mas sempre senti. O calor que guardei por anos, em silêncio. A fúria. O amor. A saudade.

Ela me pertencia.

E eu pertencia a ela.

Mas isso também me assustou.

“Se isso é quem eu sou... então por que fui escondida? Por que me deixaram longe desse poder?” A chama tremeluziu, instável, quase se apagando.

Tharion franziu o cenho, como se pesasse as palavras com cuidado.

“Porque o mundo tem medo do que arde,” ele respondeu. “E do que pode reacender o que foi esquecido.”

Ficamos em silêncio. Apenas o som da tocha sussurrando verdades entre as labaredas.

Ele estendeu a mão, e por um momento hesitei. Depois, encostei meus dedos nos dele.

Foi como tocar metal quente — não pela dor, mas pela intensidade. Nossos olhos se encontraram, e por um segundo houve um fio invisível entre nós. Algo tênue, incômodo, atraente.

“Você vai me contar tudo?” perguntei, quase num sussurro.

Tharion desviou o olhar. “Ainda não.”

Afastei a mão. A chama murchou.

Ele notou.

Mas não insistiu.

Está me escondendo algo, Tharion! — gritei, as chamas em meus dedos crepitando instáveis. — Como posso aprender se não confio em você?

Ele manteve a postura rígida, os olhos como brasas em cinzas.

— A confiança não se conquista com respostas. Conquista-se com o tempo.

Furiosa, virei de costas. Mas então, ele disse algo que me fez parar.

— Venha comigo.

Sem dizer mais, ele se virou e começou a subir por uma trilha oculta atrás das pedras. Não hesitei. A raiva ainda me queimava, mas havia algo na voz dele — uma dor velada que ecoava a minha.

 Na clareira das raízes esquecidas...

Subimos em silêncio. A trilha serpenteava por entre pinheiros antigos, até que o verde cedeu lugar a uma luz dourada sutil. Chegamos a uma clareira cercada por pedras lisas, cobertas de líquen âmbar. No centro, uma árvore solitária se erguia — de tronco vermelho-escuro e folhas finas como vidro colorido.

— Isso é...? — perguntei, sem saber como concluir.

Coração-de-luz, — respondeu ele, quase em sussurro. — Um dos últimos.

A árvore parecia pulsar com vida própria. Os frutos que pendiam de seus galhos tinham casca translúcida, irradiando calor suave e um brilho dourado que os fazia parecer pequenos sóis prestes a explodir.

Aproximei-me e colhi um. Ao tocar, senti um leve tremor nos dedos — como se ele me reconhecesse.

Mordi.

E o mundo parou.

O gosto era ao mesmo tempo doce e picante, como mel com fogo. Mas mais que isso — havia ali algo ancestral, algo meu. Uma memória que eu nunca vivera.

— Por que isso parece... tão familiar? — murmurei, a garganta apertada.

— Porque corre em você. — Tharion se aproximou, devagar. — Os elfos de Valoryn ofereciam esse fruto às crianças antes de sua primeira invocação do fogo. Era... o alimento da alma.

A primeira lágrima caiu antes que eu percebesse. Depois a segunda. E então, o soluço contido.

Eu não sabia por que chorava. Não era pelo gosto, nem pela árvore. Era por tudo o que me haviam tirado. Pelos nomes que nunca ouvi, pelos cantos que nunca cantei, pela língua que meus lábios esqueceram antes mesmo de aprender.

Tharion não disse nada. Mas também não se afastou.

E naquele silêncio, eu entendi: ele também conhecia essa dor. Talvez até melhor do que eu.

— Vai continuar escondendo as verdades? — perguntei, a voz rouca.

— Não. — Seus olhos ardiam de promessas veladas. — Mas há verdades que queimam antes de curar.

A luz do Coração-de-Luz oscilava enquanto o crepúsculo se estendia, tingindo os céus de âmbar e violeta.

Tharion sentou-se à sombra da árvore, em silêncio. Eu hesitei, mas me aproximei devagar, sentando próxima, com o fruto ainda em mãos.

— Você conheceu minha mãe, não foi? — perguntei, sem encará-lo.

— Sim — respondeu, após um breve silêncio.

Havia peso naquela palavra. Não dor apenas — mas lembrança. A memória de uma chama que jamais se apagaria.

— Ela morreu... por minha causa?

— Ela morreu por esperança. Pela crença de que você tinha um futuro que nós não tivemos.

— Você a amava?

Tharion virou o rosto para o horizonte onde as nuvens se desfaziam em dourado, o olhar distante, reverente.

— De um jeito que não pertence ao amor que os mortais compreendem. Ela era... minha irmã de alma. Lutamos lado a lado, nos confiamos segredos, medos e visões. Fui seu guardião. E ela foi, para mim, a centelha mais nobre da Casa Valoryn.

Fiquei em silêncio, sentindo algo dentro de mim se rearranjar. Como se parte da mulher que eu nunca conheci tivesse acabado de se acender em mim.

Então ele murmurou algo em élfico antigo. A língua me soou como vento entre folhas de prata. Familiar e estranha.

— O que disse? — perguntei.

— Uma canção. Um lamento antigo. Quer ouvir?

Assenti.

E ele cantou.

Sua voz era grave, mas delicada. Como o crepitar de uma fogueira distante. A melodia falava de uma estrela caída do céu, de um fogo que dormia no ventre da terra, de uma herdeira feita de cinzas e aurora.

Não compreendi todas as palavras, mas compreendi o sentimento.

Chorei de novo. Não por dor — mas por reconhecimento. Pela centelha que pulsava em mim. Pela mulher que me gerou. Pela promessa que não me foi explicada... mas me chamava.

Quando a última nota se apagou, o céu já estava salpicado de estrelas. Tharion se levantou, estendendo-me a mão.

— Está pronta?

— Para quê?

— Para descobrir quem você é.

Peguei sua mão.

E pela primeira vez, o calor que senti não era apenas magia. Era um fio de algo mais — confiança, talvez. Ou algo que começava a nascer dela.

A fogueira crepitava baixo quando me deitei sobre o cobertor de lã que Tharion havia estendido. O céu, agora límpido, pulsava com estrelas tão vivas que pareciam me observar de volta.

Fechei os olhos.

Por dentro, o fogo ainda dançava em mim — discreto, mas presente. Como se minha alma tivesse acendido algo que sempre esperara por esse momento. Uma pequena centelha nascida em silêncio, no escuro.

A voz de Tharion rompeu o silêncio com doçura inesperada.

— Dormir ao pé da chama ajuda a fortalecer os laços com ela.

— Isso é... um ensinamento dos dragões?

— É algo que aprendi com sua mãe — disse ele, e havia um brilho cálido em suas palavras. — Ela costumava dormir perto das forjas quando era jovem. Dizia que o calor a fazia sonhar com respostas.

— Você sonha, Tharion?

Houve um tempo de silêncio antes da resposta.

— Eu me lembro. Às vezes isso dói mais que sonhar.

As palavras ficaram no ar, como cinzas dançando antes de cair.

Me virei para o lado, observando o contorno da sua silhueta à beira da fogueira. Os ombros largos, a postura firme, mas não rígida. Ele parecia uma escultura moldada por vento e tempo.

— Obrigada — sussurrei.

— Por quê?

— Por me lembrar de quem eu sou. Ou... de quem posso ser.

— Você é uma filha do fogo, Lyrianne. Mas é mais do que isso. Você ainda vai entender.

A brisa noturna soprou leve, e por um instante, pensei ouvir um canto distante — como se as estrelas tivessem voz.

A noite passou devagar, como se o tempo respeitasse o silêncio que pairava após a canção de Tharion. Dormimos sob as estrelas — ou fingimos dormir.

Eu não sabia quanto do mundo havia mudado naquela madrugada. Mas algo dentro de mim tinha. E isso me assustava quase tanto quanto me fortalecia.