(Narrado por Lyrianne)
Eu queria fugir. Voltar para os braços de Maerlin. Deitar no tapete ao lado da lareira e fingir que tudo aquilo era apenas um sonho... Mas o olhar de Tharion não deixava dúvidas: aquele não era um homem comum. Não era um estranho.
Ele me conhecia. E algo em mim o conhecia também.
"Você mentiu para eles todos esses anos?", perguntei, tentando manter a voz firme. "Seguiu minha vida como uma sombra?"
"Protegi. Vigiei de longe. Jurei a sua mãe que faria isso, e nunca quebrei essa promessa." Sua voz era grave, mas carregava um peso estranho, como se cada palavra estivesse sendo arrancada de dentro dele.
"A minha mãe... a verdadeira?"
Tharion assentiu, o olhar distante, como se visse algo que eu não via.
"Ela era uma Valoryn. Herdeira do Coração da Chama Eterna. Última sacerdotisa da linhagem que selava o fogo do mundo. Mas tudo se partiu na noite em que Al’Varien caiu. Sua mãe morreu para salvar você... e o último fragmento do Coração."
Senti minhas pernas fraquejarem. A pedra no meu bolso — o fragmento? — parecia pesar uma tonelada.
"Então... quem sou eu?"
Tharion deu um passo à frente, e apesar da aparência fria, havia algo protetor em sua presença. Uma força adormecida, contida sob controle férreo.
"Você é Lyrianne Valoryn. A Filha da Fênix. Aquela marcada pelo fogo que não morre. E é por isso que seus inimigos começaram a se mover."
Antes que eu pudesse perguntar mais, uma rajada de vento seco cortou a clareira.
Do alto das árvores, uma figura envolta em um manto cinzento saltou, caindo com leveza felina a poucos passos de nós. Era um homem robusto, com a barba por fazer, cicatrizes no rosto e olhos escuros como breu. A capa esvoaçava atrás dele como asas rasgadas.
"Se vão continuar com esse teatrinho, ao menos me ofereçam uma fogueira e vinho", ele disse com sarcasmo seco.
Tharion cruzou os braços.
"Kael Dravon. Sempre entrando sem ser chamado."
"Melhor do que esperar o mundo explodir de novo."
Ele se virou para mim e me avaliou com olhos atentos, como se pesasse minha alma.
"Então essa é a menina. A Chama queimada. Esperava mais altura."
"Desculpe decepcionar", respondi, com acidez.
Ele sorriu de lado. "Boa. Pelo menos tem língua afiada."
Tharion suspirou. "Kael é um anão. Exilado de Durn-Khazad. Era o comandante da Guarda Rubra. E agora... é um caçador de sombras. Alguém que rastreia magia antiga e seus horrores."
"Tenho caçado criaturas como a que te atacou ontem", explicou Kael, tirando de sua bolsa uma tira de pele esbranquiçada. "Era um espreitador de sangue. Só se alimenta da linhagem ardente. Ou seja: você."
"O que isso significa?", perguntei.
Kael me encarou. "Significa que os sacerdotes do Fogo Silencioso e os fanáticos da Chama Corrompida sabem que você existe. E estão vindo."
Sentamos ao redor de uma fogueira improvisada. O luar espreitava entre as folhas.
Kael acendeu o cachimbo e começou a desenhar no chão com carvão uma antiga runa anã de proteção. Tharion me ofereceu água misturada com alguma erva amarga — e mesmo assim, eu a bebi, como se estivesse com sede de verdade.
A noite passou em conversa tensa.
Tharion explicou os Fragmentos do Coração — sete peças perdidas da antiga relíquia, espalhadas pelos reinos após a destruição de Al’Varien. Cada fragmento continha uma centelha da antiga Chama Eterna. Cada um era perigoso… e necessário.
"Se forem reunidos, podem restaurar o equilíbrio do fogo no mundo… ou incendiá-lo de uma vez por todas", disse Tharion.
Kael completou: "Há rumores de que o próximo fragmento esteja na Tumba de Karyel, afundada nos pântanos do norte. Um lugar amaldiçoado. Protegido por magia elemental. Quase impossível de acessar."
"Então é para lá que vamos?", perguntei, surpresa com minha própria coragem.
Tharion me olhou por um momento que pareceu longo demais.
"Você não precisa vir."
"Eu preciso entender quem sou. Preciso… parar de fugir."
Kael soprou a fumaça e riu. "Corajosa. Ou tola. Veremos qual se prova verdadeira."
Na manhã seguinte, retornei à vila uma última vez.
Desci pelas trilhas da encosta e vi as casinhas de telhado de palha, a praça central com seu chafariz seco, as roupas dançando no varal. Crianças corriam entre os barris de lenha. O cheiro de pão fresco me fez lacrimejar.
Maerlin me esperava à porta, segurando um pacote de couro.
"Sabia que viria", disse.
Dentro do pacote havia:
– Meu vestido favorito, agora reforçado com camadas de couro claro;
– Um capuz com forro de lã azul, bordado com as flores que eu amava;
– E um colar — pequeno, de cobre, com uma pedra âmbar no centro.
"Seu nome está gravado nele", sussurrou Maerlin. "Lyrianne Valoryn."
Edron se aproximou com os olhos vermelhos, mas o sorriso firme.
"Vai precisar disso", disse, entregando-me minha antiga lança de caça. Estava limpa, renovada, com runas gravadas por ele mesmo.
"Obrigada… por tudo."
"Você é nossa filha. Não importa o que o fogo diga."
Nos abraçamos. Por um longo tempo.
E então parti.
Pela trilha do norte, ao lado de um anão amargo e um ser que escondia olhos de dragão.
Na bagagem, saudade, medo… e o primeiro passo rumo à verdade.