Capítulo 1

“Mas quase ninguém descobre que seus atos, na verdade, magoam realmente os outros! Ninguém fica melhor, as pessoas só ficam mais espertas. Quando fica mais esperto, você não para de arrancar asa de mosca, só imagina um motivo melhor para fazer isso” / Carrie - A Estranha (Stephen King)

Os sonhos tingidos de carmim haviam parado fazia alguns anos, mas, sempre que acordava, a lembrança daquele dia voltava como um fungo sugando sua vontade de levantar da cama. Como alguém que passou por tanta dor e foi capaz de tamanho mal poderia ter uma vida plena e feliz? Ainda mais alguém que tinha tanto potencial para destruir tudo e todos? Não achava que era merecedora de tal privilégio.

O relógio marcava oito e meia. Quando acordou, passou um café forte — aquele que todo proletário precisa para que sua alma volte ao corpo e consiga trabalhar mais um dia. Enquanto tomava o líquido amargo, Cabeçudo, seu companheiro fiel, se esfregava entre suas pernas. O gato era cabeçudo mesmo, cheio de cicatrizes, e faltava-lhe um pedaço da orelha esquerda. Ele era um sobrevivente, como ela, e a acompanhava desde os tempos em que vivia nas ruas. No passado, ele fora o único motivo que a impediu de pular para a morte. "Vou te dar uma casa, um dia, um lar de verdade", havia prometido, e cumpriu. Mas, ainda hoje, dez anos depois, a criaturinha peluda continuava sendo um dos seus únicos alentos em meio ao desespero cotidiano da vida.

Não a entendam mal, apenas estar viva já era uma vitória. Algumas vezes, ela se esquecia disso. Mas não poderia desejar mais? Mesmo que não merecesse… desejava. Encheu o pote de ração do Cabeçudo, trancou a porta e desceu a longa escadaria que ligava a kitnet alugada à rua do comércio. Pegou sua bicicleta velha, que estava amarrada ao poste em frente ao prédio, e saiu para o mundo — mais um dia normal. Mais um dia insuportavelmente normal.

Chegou ao trabalho pontualmente às 9:00. A rede de consertos de roupas express "Costura & Cia" era um sucesso no interior do estado. Não era o emprego dos sonhos, mas era um emprego. Não são todos assim? Quando a assistente social a encontrou debaixo da ponte da rua principal de Borubo e perguntou se ela tinha alguma ocupação, Carine teve sorte. Ela sabia costurar.

O martírio de usar e remendar a mesma roupa por anos para ir à escola lhe deu uma chance de sobreviver. Mas o que realmente lhe deu habilidade foi costurar em segredo — longe dos olhares julgadores de sua mãe ultrarreligiosa.

Por conta de um novo programa da cidade de proteção às mulheres em vulnerabilidade, Carine havia conseguido uma vaga em um abrigo. Trabalhava meio período em uma vaga social e, no resto do dia, ajudava a limpar e cozinhar para as dez mulheres com histórias tão terríveis quanto a dela.

Não que ela tivesse contado sua história para alguém. Sempre dizia que não lembrava de nada, apenas que se chamava Carine. Por pressão do prefeito, a Secretaria da Mulher de Borubo tinha que apresentar as primeiras dez contempladas do programa à câmara dos vereadores até a sexta-feira daquela semana, então não ter documentos não foi um problema. Duas ou três ligações de Rita, sua assistente social, e a jovem conseguiu uma nova certidão de nascimento. Muito conveniente, já que todos os seus documentos foram queimados com sua antiga casa e o corpo já sem vida de sua mãe.

Carine Sena foi rebatizada, justamente porque foi recolhida pelo furgão da prefeitura debaixo da ponte Ayrton Senna. Sua data de nascimento? Disse que não lembrava, apenas que era do signo de câncer. Alguém havia lhe falado isso uma vez na escola. E então, era isso. Local de nascimento? Área rural de Borubo, por parteira. Seu novo aniversário foi estabelecido como dia 10 de junho — Dia da Pizza. Estimaram que tinha 18 anos e não 16, conveniente para que fosse elegível para o programa. Abençoado seja o ofício da costura e, claro, o neurologista da UBS que a diagnosticou com amnésia pós-trauma crânio-encefálico contuso. "Pobrezinha!" — exclamara Rita. "Não era mentira, pois mamãe costumava me bater muito", pensou. Como saber qual das suas pancadas de "evangelização" lhe rendeu sua nova identidade? Impossível.

Borubo era um centro regional, uma cidade boa, "tem dois shoppings" — diziam. Não escolheu ir para lá, apenas pegou o primeiro ônibus que conseguiu após fugir para as matas de Chabelêm. Andou durante dias até encontrar uma cabana na floresta, lavou todo o sangue de porco encrustado em seu corpo em um lago de águas escuras, vestiu roupas que encontrou na velha cabana — uma calça jeans surrada e uma camisa masculina velha. Por fim, usou os únicos trocados que guardara na meia esquerda para pegar o primeiro ônibus para Borubo. Eram cinco horas de viagem.

Dois dias depois de ir para o abrigo, voltou para a ponte Ayrton Senna para buscar Cabeçudo. Rita mexera uns pauzinhos para que ela pudesse ficar com ele. "Pode ajudar ela a lembrar de algo", argumentou a assistente social em frente à jornalista mais famosa da cidade, Cheila Cristóvão. "Os eleitores de Borubo vão gostar de saber disso, ninguém resiste a um pulguento resgatado", cochichou Rita para sua assistente, olhando de soslaio para a repórter.

O programa de REINSERÇÃO SOCIAL DE MULHERES EM VULNERABILIDADE SOCIAL DA PREFEITURA DE BORUBO era um modelo importante. Assim, toda a mídia da cidade estava na cola da Secretaria da Mulher e do Prefeito, Luiz Augusto Salgado, que recentemente havia sido acusado de agressão física contra uma garota de programa por uma página de fofocas no Instagram. Ou seja, tudo era muito conveniente. Ela nem precisava se preocupar com sua imagem sendo divulgada. Participar do programa garantia o sigilo da identidade, algo necessário, já que mais da metade das contempladas estava fugindo de algum ex-companheiro que as ameaçava de morte. Isso é o Brasil e — pior ainda — o interior do estado de São Paulo. Ela ficou no abrigo por três anos até ser efetivada em tempo integral na vaga social e conseguir pagar um lugarzinho só seu, e de Cabeçudo, claro.

*

Após costurar especificamente 6 barras de calça, 2 pences de saia e ajustar um vestido de formatura, era hora do almoço, e Carine poderia relaxar um pouco e fazer a segunda coisa que a mantinha viva, depois de alimentar e cuidar de Cabeçudo: encontrar Laura, sua melhor e única amiga. Laura era a única amiga que fizera no abrigo, talvez porque era a única que tinha idade próxima à sua.

Se Carine fora vítima do fundamentalismo religioso familiar, Laura fora vítima da exploração sexual do corpo de mulheres e meninas. Duas faces de uma mesma moeda. Justamente aqueles que pregam que sexo é apenas para procriação são os que fazem fila quando chegam as novinhas trazidas de Roraima para os clubes da cidade. Órfã, Laura havia sido resgatada de um desses grupos e, por não ter família para ser mandada de volta — como se ser mandada de volta para a família que te vendeu fosse algo bom —, foi incluída no programa de proteção da prefeitura.

Alocada em uma vaga de recepcionista na Costura & Cia, por sorte, Laura sabia fazer contas, e isso juntamente com sua simpatia e boa aparência lhe garantiram a vaga de atendimento ao público, apesar de lhe terem negado o direito de estudar, "não precisa de escola para o que você precisa fazer" — frase que havia ouvido de um dos cafetões durante a viagem até São Paulo. 

Como Borubo era um centro regional, ou seja, uma cidade grande para a região, mas não tão grande assim, Carine e Laura que eram colegas de trabalho, além de amigas, conseguiam andar até o shopping para almoçar ou ir até o Bom Prato, rede de restaurante popular subsidiada pelo governo. A comida era gostosa e feita com produtos de agricultura familiar do MST, apesar do preconceito da população mais favorecida contra o restaurante, que as ajudava a economizar para conseguirem pagar as contas e às vezes irem até um lugar legal comer ou beber, sem falar em como o programa ajudava quem passava fome e só conseguia uns trocados por dia. Mesmo assim, os moradores do centro tentavam fechar o restaurante porque diziam que o lugar atraía a criminalidade e pessoas "de todo o tipo".

Mas as garotas não se importavam com o pensamento retrógrado dos moradores da cidade. Iam lá economizar e guardavam seus vale-refeição para comer coisas mais interessantes nos fins de semana — "como a alma dos estudantes de medicina da USP que nos chamam para sair no aplicativo", brincou Laura certa vez.

Laura tinha longos cabelos negros como a noite, sua pele oliva, típica dos povos originários do norte do Brasil, reluzia contra o sol impiedoso de Borubo. A jovem mulher parecia a própria deusa Jaci renascida.

Já Carine não fora agraciada com o poder da melanina para se proteger dos raios solares do Cerrado da cidade. Seu cabelo alaranjado, apesar de refletir o esplendor do sol, não ficava tão majestoso juntamente com seu rosto completamente cor-de-rosa por conta do calor, cheio de sardas, e seus olhos verdes translúcidos. A herança austríaca de sua família realmente não estava preparada para o calor de 40ºC da cidade.

Naquela segunda-feira, Laura contava sobre um encontro que tivera no sábado com um estudante de educação física da universidade católica da cidade. "Ele foi ao encontro vestindo camiseta do Flamengo e chinelo. Tudo bem que sempre está quente nessa cidade, mas, para um encontro, eu esperava mais." Carine adorava ouvir os relatos da amiga e ficava feliz que ela tivesse essa facilidade em conseguir sair com garotos.

Mesmo com vinte e seis anos, Carine ainda tinha receio de se relacionar, e as poucas vezes que tentou não tiveram bons desfechos. Seja pelo medo de acabar expondo seus dons se alguém se aproximasse demais fisicamente e ela perdesse o controle, ou pela voz em sua cabeça. A voz era de sua mãe, que dizia coisas como: "Que prostitutazinha do diabo você se tornou, tudo que lutei para que você não fosse".

Mesmo que Carine não acreditasse na voz, ela sempre vinha. É muito difícil conviver a maior parte da sua vida ouvindo esse tipo de coisa e, de repente, decidir que isso não aconteceu. Contudo, Carine tentava esquecer e, se não esquecesse, também tentava ignorar. Era cômico que justamente as "putinhas aborteiras" que tanto sua mãe condenava ajudaram a criar o programa que a salvara da vida nas ruas. Isso a fazia sorrir. Onde quer que estivesse, sua mãe estava infeliz, o que lhe dava certo prazer sombrio.

Mais 7 barras, 3 pences e 2 ajustes de vestidos de formatura a separaram de voltar para casa. Quando o relógio deu 18h, um grande alívio saiu de seus ombros — podia ir para casa e para Cabeçudo. Quem sabe ler um livro ou mesmo fazer alguma peça de upcycling para postar no seu TikTok de costura — se tivesse ânimo. "É muito difícil quando você trabalha com algo que também é seu hobbie; o trabalho remunerado suga a essência da arte", leu certa vez. De qualquer forma, estaria em casa. C A S A. Mesmo que não merecesse, ela tinha seu lar.

Não levem Carine a mal. A culpa cristã não era algo que ela gostava de carregar, mas ter interrompido a vida de tantos colegas, mesmo os que mereceram, era algo difícil de ignorar, mesmo depois de dez anos lidando com isso. Por isso, nunca mais usou seus poderes. Os chamados dons do diabo. Não sabia se era bruxa ou X-men, só sabia que tinha medo de machucar mais uma alma. Mesmo tendo gostado na hora. Mesmo tendo sentido seus poderes pulsando como labaredas de justiça de mil anjos ao seu redor. Ela não era um monstro. Só queria ter ido ao baile de formatura como uma adolescente normal. Ela só queria ser normal. Mas normal era algo que ela nunca seria.

Voltando para casa, a avenida principal da cidade estava em obras e ela teve que pegar um desvio. Por sorte, não era pela rua que passava em frente à Assembleia da Fé, o templo que ainda lhe dava arrepios. Subindo por uma paralela, ouviu um barulho que a fez gelar — o sinal de uma escola. Era hora da saída de algum colégio. "Respira", pensou. Certos traumas nos marcam como brasa em nossos corações, não importa quanto tempo passe. "São só adolescentes, vou passar por eles rapidinho", repetia em sua mente. Carine não gostava de mudanças, muito menos de multidões, e um desvio com uma multidão de adolescentes era algo muito ruim. Ela tentou ignorar os estudantes, ela tentou não encarar muito, ela tentou não arregalar os olhos verdes. Então, ela viu. Um grupo de meninos encurralava um garoto com os lábios vermelhos como vinho em um beco sem saída. "Vermelho é a cor do pecado", a voz dizia.

Ela sabia o que ia acontecer. Quantas vezes isso não aconteceu com ela? Seu coração saía pela boca e, de repente, os pés pararam de pedalar. Carine freou a bicicleta com força e entrou no beco rapidamente, como se uma força maior empurrasse seu corpo. "Ei", ela gritou.

— Qual foi, tia? Rapa fora que a gente finge que nem te viu.

Acuado no canto, o jovem de olhos assustados a encarava, gritando por ajuda silenciosamente apenas com o olhar. "Não vá embora", seus olhos gritavam, arregalados de medo. Então, o dedo de Carine apontou para um deles e as veias de sua face saltaram.

— Vão embora! — ela gritou.

— Você vai defender essa bixa? Então vai apanhar também, sua puta magrela.

Tudo aconteceu muito rápido. O garoto vestido de uniforme do colégio particular deu um passo em direção a Carine, e isso foi o suficiente para ela tomar sua decisão. "Foda-se esses malditos", pensou. Com um simples movimento de punho, ela quebrou o fêmur do garoto. As entranhas do estudante remelento se materializaram em sua mente e ela jurava que ouviu o osso quebrar. Os outros dois jovens, que encurralaram o garoto, olhavam para ela aterrorizados, incapazes de se mover; ela os prendia ao chão, ponderando o que deveria fazer com eles. Ela os levitou no ar e os jogou em direção à parede. O barulho de suas costas na parede toda grafitada soava para ela como "A Primavera" de Beethoven.

O garoto do batom vermelho olhava para ela aterrorizado, mas grato. Quando ela levantou a outra mão, fazendo menção de acabar com eles de uma vez por todas, uma nova voz surgiu na cabeça de Carine:

— Calma, Jean Grey caipira, eles já tiveram o que mereciam. Deixa que eu cuido disso.

Então, ela sentiu uma calma maravilhosa entrar em todo seu ser e relaxou instantaneamente. A pequena mão branca, de unhas curtas, que pousava em seu ombro esquerdo, pertencia a uma mulher de cabelos lisos, alinhados e bem curtinhos, vestindo uma camisa de botão azul-marinho que apertava seus seios e barriga, e uma calça cáqui justa. A reconfortante figura foi calmamente tocando cada um dos adolescentes, sussurrando palavras em seus ouvidos que só podiam ser ouvidas por eles. Por último, ela deixou o jovem do batom, que protestou:

— Eu preciso mesmo esquecer, mona?

— Precisa, meu querido. Mas fica tranquilo que eles nunca mais vão te incomodar.

— Obrigado.

A mulher voltou para perto de Carine, que ainda estava assimilando o que havia acontecido.

— Bora, Fênix do planalto paulista, vamos tomar um café.

— Posso dar comida pro meu gato antes?

A mulher deu um grande sorriso. Essa moça quase matou três adolescentes para defender uma vítima de homofobia e tudo que queria era alimentar seu gato.

— Claro, Ginger, vamos lá. Eu te dou uma carona, coloca a bike na carroceria.

— Sim, é como chamam os ruivos na gringa.

— Nossa, mas significa gengibre, que nada a ver!

— Acho que o gengibre deve ser laranja lá… Bora, então? Ginger girl?

— É faz sentido mesmo…

Carine apenas seguiu o que a bela voz da mulher dizia, sentindo que podia confiar nela. No fundo, sabia que isso também era o poder da mulher agindo em sua mente para acalmá-la, mas Carine estava calma demais para se importar se aquele remédio mágico era algo de que devia se preocupar. Pela primeira vez, desde que se lembrava, seu coração estava leve e esperançoso.