Epílogo

Dez meses mais tarde.

Carine sentia o corpo relaxar enquanto as luzes suaves do Gato Preto piscavam ao ritmo da música gótica que ecoava pelo bar. O lugar era pequeno, mas a atmosfera era familiar e as luzes vermelhas deixavam tudo mais interessante. Laura estava particularmente animada naquela noite, e Carine achava que era só porque estavam juntas, rindo e bebendo.

— Eu gosto muito daqui. — Carine confessou, olhando em volta. Laura sorriu maliciosa.

— Bem, é o seu aniversário. O mínimo que posso fazer é te trazer para um lugar especial. — respondeu Laura, piscando. Carine riu, mas antes que pudesse dizer algo, Jef apareceu com uma pequena caixa nas mãos.

— Olha quem apareceu! — disse Laura, virando-se para Jef. — Tá pronto?

— Claro que sim — ele respondeu, colocando a caixa no balcão com um cuidado exagerado. — Feito especialmente pra você, Carine.

Laura abriu a caixa e revelou um bolo bem trabalhado, decorado com glacê escuro e pequenas estrelas prateadas.

— Surpresa! — exclamou ela, radiante.

Carine arregalou os olhos, surpresa.

— Vocês... fizeram isso pra mim? — Ela sentiu o calor subir até suas bochechas. — Eu... nem sei o que dizer.

— Fizemos sim! E não aceito um "não" como resposta. — Laura brincou, empurrando o bolinho na direção de Carine. — Vai, faz um pedido e apaga as velinhas.

Enquanto Carine se preparava para apagar as velinhas, ela notou que Laura e Jef trocavam olhares. Laura lançou um sorriso cheio de segundas intenções para Jef, e ele, sem hesitar, respondeu com uma piscadela. Era quase impossível não perceber a química entre os dois, e Carine só conseguiu abafar uma risada antes de soprar as velas.

— Não vou nem perguntar o que está rolando aqui — Carine provocou, erguendo as sobrancelhas para o casal.

— Ah, para com isso, Carine — Laura respondeu, rindo, e deu um empurrãozinho de leve em Jef, que parecia mais do que satisfeito com a situação.

— A gente só está... celebrando! Passa mais um pedaço da pizza de cogumelo, por favor. Até que é bom essa coisa. — Jef brincou, mas o jeito como ele falou deixou claro que a celebração ia além do bolo e da companhia, afinal ele havia prendido o Capitão Y e finalmente ele poderia dormir em paz.

Carine observou os dois rirem, e viu Laura colocar a mão no ombro de Jef, deixando-a ali por mais tempo do que o normal. Aquele toque dizia muito mais do que palavras.

Depois de algumas horas de risadas e conversas no Gato Preto, Carine e Lolis deixaram o bar juntas. A noite estava fria e tranquila, o som distante das ruas da cidade se mesclava com a música do The Cure que vinha do bar. 

…Whenever I'm alone with you

You make me feel like I am whole again…

Carine olhou para o céu, inspirando o ar fresco.

— Você acredita que foi o meu primeiro aniversário de verdade? — disse ela, quase sem acreditar. — Eu nunca tive um antes... Minha mãe dizia que era coisa de pagãos, e que apagar velinhas era bruxaria. Ela tinha uma visão tão... distorcida das coisas. — A lembrança da infância sob o rigor religioso de sua mãe ainda era algo que a incomodava.

Lolis olhou para Carine com empatia, caminhando ao seu lado em silêncio por alguns instantes.

— Eu entendo isso — começou ela, a voz suave. — Meus aniversários também não eram exatamente momentos felizes. Meu pai bebia muito. E quando bebia... não era uma boa pessoa. — Ela fez uma pausa, olhando para o chão. — Na verdade, ele nunca foi uma boa pessoa. Por sorte minha mãe conseguiu se libertar disso e Jef também estava lá para nos ajudar…

Carine sentiu o coração apertar ao ouvir isso. Sabia que Lolis carregava seus próprios traumas, mas ouvir aquilo de forma tão direta a fez perceber o quanto ambas tinham cicatrizes.

— Sinto muito. Sei como é uma merda quando nossos pais não são… bem, bons pais. — Carine sussurrou, tentando encontrar as palavras certas.

Lolis soltou um sorriso fraco, quase melancólico.

— Sim, Ginger girl. Acho que, no fim, quem não tá traumatizado pelos pais, ta traumatizado com outras coisas. Mas... é bom saber que não precisamos carregar tudo sozinhas.

Carine assentiu, sentindo uma conexão ainda mais forte com Lolis. Enquanto caminhavam lado a lado, ela se lembrou dos olhares e sorrisos entre Laura e Jef no bar e não conseguiu evitar um comentário:

— Tenho certeza que aqueles dois se beijaram no banheiro — disse Carine, rindo.

Lolis arregalou os olhos, surpresa.

— Sério?

— Sério. Você não viu o jeito como eles estavam trocando olhares? Você não percebeu que eles sumiram lá dentro por um tempinho? — Carine explicou, com um sorriso malicioso.

Lolis riu, balançando a cabeça.

— Ah, que maravilha. Laura e Jef... eles são tão bonitos, faz sentido.

— Eu diria o mesmo sobre nós. — respondeu Carine, inclinando-se para beijá-la.

*

O som das máquinas de costura preenchia a pequena sala na Fundação Casa, onde Carine ensinava alguns dos jovens a fazer a barra dos uniformes. Eles estavam concentrados, cada um com sua agulha e linha, tentando dominar o ofício com a orientação dela. Para Carine, aquele era um ambiente peculiar, onde os ecos de violência e raiva ainda pairavam no ar, mas também havia um clima de esperança, como se cada ponto dado fosse uma chance de recomeço.

A maioria dos garotos daquela turma estava ali porque haviam sido apreendidos como parte do grupo de ódio de Capitão Y. Após terem sido influenciados a seguir ideias extremistas, os jovens agora buscavam algo novo. Muitos haviam mostrado interesse genuíno em aprender a costurar, uma habilidade prática e terapêutica. E, o fato que participar das aulas fazia a pena diminuir, ajudava a engajá-los.

— Isso! Muito bem, João — Carine disse, sorrindo ao ver um dos jovens terminar a barra do seu uniforme com precisão. — É só seguir essa linha reta e está perfeito. Quando estou costurando as barras para minha marca faço esse exato ponto, ele fica discreto e mais firme.

João sorriu, e os outros garotos, animados com seus pequenos progressos, mostravam orgulho em suas conquistas. A costura se tornara uma espécie de escape para eles, uma maneira de canalizar o foco e a energia para algo construtivo.

Mas nem todos estavam assim.

No fundo da sala, um garoto que Carine já tinha notado desde o início, chamado Vinícius, antigo Y65, permanecia em silêncio, encarando sua máquina de costura com ódio. Ele não parecia empenhado em aprender como os outros. Seus olhos estavam cheios de rancor, e ele costurava de forma desleixada, sem prestar muita atenção.

Quando a aula chegou ao fim, os jovens começaram a guardar suas ferramentas e uniformes, conversando entre si com uma nova leveza. Carine observou Vinícius se levantando com pressa, pronto para sair sem dizer uma palavra.

— Vinícius, pode ficar um pouquinho depois da aula? — Carine perguntou, com uma voz firme, mas gentil.

O garoto olhou para ela com desdém, parando no meio do caminho. Ele bufou, cruzando os braços, mas se virou e voltou a se sentar.

— O que foi, tia? Vai me dar sermão agora? — Ele perguntou, com sarcasmo na voz, evitando o olhar direto.

Carine caminhou até ele e se sentou ao seu lado, olhando calmamente para o menino.

— Não é sermão, Vinícius — disse ela, mantendo a paciência. — Só queria entender o que está te incomodando. Você não parece estar interessado em nada disso.

Vinícius deu de ombros, os olhos cheios de desprezo.

— Qual é, tia... Você acha que costurar vai me fazer esquecer de tudo? Não vai mudar nada! Isso aqui é perda de tempo. Essas pessoas que tão aqui nem entendem o que eu passei. Só me jogaram aqui, como se isso fosse resolver. Como se fosse mudar tudo que eu passei.

Carine suspirou, sentindo a dor nas palavras dele. Ela sabia o que era ser jovem e sentir que o mundo não tinha um lugar para você.

— Você acha que eu não sei como é ser a estranha? A esquisita? — Ela começou, olhando diretamente nos olhos dele. Vinícius franziu a testa, mas escutava. — Você acha que eu não sei como é querer... hmm, acabar com todos que nos feriram?

O garoto se endireitou na cadeira, surpreso com o que ouvia. Ele não esperava aquilo.

— Eu sei muito bem como é — Carine continuou, sua voz mais baixa, quase um sussurro. — Eu passei por isso também. A escola, os olhares, os apelidos, as piadinhas. A sensação de estar sempre à parte, como se nunca fosse boa o suficiente. E, por muito tempo, eu pensei em me vingar de todos. Pensei que a dor deles apagaria a minha.

Ela fez uma pausa, buscando as palavras certas.

— Mas... passei todos os dias da minha vida lutando contra esse lado sombrio meu para ser digna da confiança das pessoas que eu amo. E te digo que vale a pena cada minuto. A escola não é toda a nossa vida, e às vezes, é uma merda mesmo. Mas depois de tudo isso, a gente pode escolher nosso futuro.

Vinícius a observava, os olhos arregalados, como se estivesse vendo Carine pela primeira vez. O ódio em seu olhar parecia ter diminuído, substituído por algo mais suave. Confusão, talvez, mas também curiosidade.

— Quando acabar seu tempo aqui — Carine continuou, com um leve sorriso — você pode ser quem você quiser, Vinícius. Pode escolher o que fazer da sua vida. Não precisa ser definido pelo que aconteceu no passado.

Houve um silêncio enquanto Vinícius processava o que ela disse. Ele olhou para o chão, mexendo na barra mal costurada do seu uniforme. Depois de alguns segundos, ele levantou o olhar, com um brilho diferente nos olhos.

— Puta merda, tia... Acho que você entende mesmo. — Ele murmurou, ainda um pouco desconfiado, mas algo em sua voz indicava que ele estava pensando de verdade no que ela disse. — Eu... vou tentar então. Por você.

Carine sorriu, satisfeita. Sabia que não seria fácil, mas aquele era um primeiro passo.

— Não é por mim, Vinícius. É por você. Tente por você. Não deixe que aqueles que te fizeram mal te definam. Você não é seu trauma.

Ele deu um meio sorriso, algo raro de se ver nele, e se levantou.

— Tá bom, tá bom, pode cortar o papinho motivacional agora. Eu entendi. — ele foi em direção a porta e Carine ficou triste, achando que a conversa não tinha valido de nada. Mas antes de cruzar a porta, Vinicius parou por um instante e disse:

— Valeu, tia... Quer dizer, Carine. Tu é foda.