Em silêncio etéreo, os véus vibravam em harmonia sutil. As dimensões coexistiam — distintas, porém entrelaçadas, e dentro da matéria pulsava a presença discreta dos renascidos.
Os seres místicos renascidos habitavam a Dimensão da Matéria entre os humanos, como parte silenciosa do mundo visível. Viviam como se fossem um deles, mas carregavam em si a centelha da essência mágica, que só podia ser utilizada em casos extremos, conforme determinava a mais antiga das leis místicas: a essência só deve ser invocada quando houver propósito, necessidade e equilíbrio. Qualquer uso indevido poderia comprometer a vibração entre as dimensões.
Era uma regra inviolável. E eles sabiam disso.
Na Dimensão Mística, os quatro Guardiões do Equilíbrio — Elira, Askar, Lúmina e Kaelith — viviam em perfeita sintonia.
Junto de seus familiares — Nyara, Arak, Eryel e Zhaerion —, formavam algo mais profundo do que aliança.
Eram uma irmandade. Uma família dimensional.
Trabalhavam, treinavam, estudavam, combatia.
Mas também riam, trocavam confidências e compartilhavam instantes de paz.
Momentos simples, como a observação das estrelas, o preparo de poções experimentais ou a travessia entre véus apenas para sentir a bruma vibracional das fronteiras.
A amizade entre Elira e Lúmina era especialmente intensa.
Confidentes, inseparáveis, unidas por uma conexão que atravessava a função de Guardiãs.
Lúmina era a Guardiã da Luz, mas também a guardiã de segredos.
Guardava os manuscritos, os feitiços selados… e as confissões dos corações alheios.
Ela guardava os segredos de todos — e os seus também. Só Eyriel, seu unicórnio, sentia o que ela não podia dizer.
Sempre que Askar se aproximava, algo nela vibrava — quente, sutil, pulsando bem onde sua runa brilhava.
Em uma dessas visitas, Lúmina sentiu. Sua essência oscilou, como se tocada por uma frequência antiga.
E ela sabia o que era.
Algo dentro dela… florescia.
Isso não está acontecendo…— sussurrou para si, após uma dessas visitas.
Isso… isso é a essência humana em mim?
Eyriel inclinou levemente a cabeça, encostando o focinho no ombro de Lúmina, com ternura ancestral.
— “
— Sua essência muda quando ele está perto. Eu sinto isso..A parte humana que habita em você… expandiu-se como uma brisa que atravessa a noite. Sem alarde, sem permissão. Agora floresce, mas não deixe que isso lhe faça esquecer que a primeira regra não pode ser rompida…
Mas Lúmina não era a única.
Durante as missões conjuntas com Askar na Dimensão da Matéria, Elira começou a notar algo que a desestabilizava de forma silenciosa.
Havia momentos em que seus olhos se fixavam nele por tempo demais. Ela o observava com atenção incomum — o modo como seus músculos se moviam ao se posicionar em batalha, o som grave de sua voz ao dar instruções.
Não entendia por que o fazia, apenas… fazia. E isso a inquietava.
Nyara deslizou até ela após uma dessas missões, enquanto Elira ainda estava parada, olhando o horizonte onde Askar havia desaparecido minutos antes.
— Você vibra diferente quando está ao lado dele — disse Nyara, com voz suave, mas carregada de significado.
Elira olhou para a serpente, como se tivesse sido arrancada de um devaneio.
— Eu… não sei o que está acontecendo.
Sinto minha essência humana oscilar… e não consigo mais controlar isso.
Nyara não respondeu. Apenas entrelaçou o corpo ao redor dos pés da guardiã, como se oferecesse abrigo para uma verdade ainda não dita.
E, assim como Elira…
Askar também começou a perceber.
Perceber que a presença dela provocava algo que ele nunca havia sentido antes.
No início, eram apenas distrações.
Olhares breves. Silêncios mais longos.
Uma urgência inexplicável sempre que Elira se afastava.
Ele não compreendia.
Mas notava que algo dentro dele se desequilibrava,
como se sua essência vibrasse em outro ritmo sempre que ela estava por perto.
Algo dentro dele se remexia em silêncio.
Sem permissão.
Sem controle.
Arak, sempre atento e sintonizado com seu Guardião, aproximou-se de Askar com a leveza de uma sombra.
— Você está em descompasso, Mestre.
Askar não respondeu de imediato. Fitou o chão, como se buscasse no solo uma resposta que não vinha.
— Eu não entendo… É como se algo estivesse se agitando dentro de mim.
Algo que não faz parte do que eu sou.
Arak se sentou ao lado dele, firme e sereno.
— Talvez não faça parte do que você era. Mas agora, pulsa.
E você precisa aprender a escutar sem se perder.
Askar permaneceu em silêncio, o peito subindo e descendo num ritmo contido.
Era como se sua essência humana batesse contra as grades da sua essência guardiã.
Em uma de suas Tardes de Chá Mágico, como chamavam os encontros tranquilos que cultivavam entre flores encantadas e palavras sinceras,Lúmina e Elira sentaram-se à beira do lago cristalino da Dimensão Mística —
os pés tocando a água morna, as risadas suaves misturando-se à brisa encantada que fazia as flores cantarem em coro.
Por um tempo, ficaram em silêncio, apenas sentindo a vibração do lugar.
Mas Lúmina logo percebeu:
Elira não sorria com os olhos.
Estava quieta demais. O olhar fixo no nada… ou talvez em tudo.
— Você está em conflito — disse Lúmina suavemente, sem desviar os olhos da amiga. — Eu consigo sentir.
Elira hesitou. Seus dedos afundaram na superfície da água, traçando círculos que se desmanchavam antes de ganhar forma.
— Lúmina… algo estranho está crescendo dentro de mim — sussurrou, com os olhos ainda perdidos no horizonte. — Um sentimento que me atravessa como vento cálido em noite fria… e eu… eu não sei nomear.
Lúmina se aproximou, pousando os dedos com ternura sobre a mão da amiga.
— Há algo novo em você, Elira… algo que antes não vibrava assim — disse em tom baixo, quase como um canto.
Elira desviou o olhar, como se a simples menção bastasse para que o sentimento despertasse ainda mais.
— “Quando Askar se aproxima… tudo em mim se transforma,” confessou, com a voz embargada. “É como se o mundo se aquietasse para que eu pudesse ouvir sua respiração… como se até a serpente em meu peito vibrasse diferente. Eu não sei quando começou. Só sei que está crescendo… e não consigo deter.”
— “É a essência humana… desabrochando em você,” murmurou Lúmina, como quem revela um segredo ancestral. “Mas isso, Elira… pode ser perigoso.”
— “Eu sei,” respondeu Elira, baixando os olhos. “Se ultrapassar os limites, posso ser selada. Enviada para o Véu do Esquecimento…”
— “Shhh… não diga isso,” interrompeu Lúmina com delicadeza, apertando a mão da amiga. “Ainda há tempo. Ainda podemos proteger o que floresce… com sabedoria.”
Eryel, a unicórnio de crina prateada e aura suave, aproximou-se em silêncio. Tocou delicadamente a mente de Lúmina com um sussurro telepático, como se suas almas já tivessem conversado antes.
— Seu coração vibra… você também sente, não é? Sente sua essência florescer por Askar…
Lúmina fechou os olhos por um breve instante, tocada pelas palavras suaves de Eryel, e respondeu com ternura e cautela mentalmente:
— Não diga isso, Eryel… — respondeu em pensamento, num tom sereno. Há coisas dentro de nós que nem mesmo devemos nomear.
Momentos depois de se despedir de Elira, Lúmina se dirigiu à Dimensão da Matéria. Os Ancestrais haviam lhe confiado uma instrução urgente, e caberia a ela entregá-la pessoalmente a Askar, o guardião da Terra. Um novo renascido havia emergido… e já se corrompera.
O ponto de encontro era um círculo sagrado entre as pedras — um local preservado pelas eras, onde a bruma da manhã se arrastava lentamente sobre as folhas. Eyriel, a unicórnia de Lúmina, observava em silêncio enquanto sua guardiã aguardava.
Askar surgiu entre as árvores, os olhos âmbar intensos, mas carregados de algo que Lúmina ainda não sabia nomear. Ele se aproximou em passos firmes, e ela sentiu — como um leve estremecer em sua própria essência — que havia algo desalinhado ali.
Ela se virou para recebê-lo, com o pergaminho selado em mãos.
— As instruções chegaram há pouco, — disse, estendendo o rolo. — Vieram dos Ancestrais, sobre um renascido corrompido.
Askar segurou o pergaminho, mas não o abriu de imediato. Sua runa pulsava discretamente, e seu olhar oscilava como se contivesse algo maior do que palavras permitiam.
Lúmina franziu levemente o cenho.
— Há algo mais… — murmurou, dando um passo sutil à frente. — Sua essência vibra de maneira instável, Askar. Não é comum. O que está acontecendo com você?
Ele demorou a responder. Quando o fez, foi com a voz baixa, como se revelasse um segredo que o próprio vento não deveria escutar.
— Eu não sei quando começou… mas não consigo silenciar isso. Quando estou perto de Elira,tudo em mim se move. É como se o que sou… ressoasse no que ela é. Como se houvesse uma canção dentro de mim… e ela fosse o som.
Lúmina recuou um pouco, surpresa.
Nesse instante, Eyriel sacudiu levemente a cabeça. Lúmina sentiu o baque — uma vibração intensa percorreu seu corpo, como um trovão preso sob a pele.
Ela ficou em silêncio por longos segundos, até enfim murmurar:
— Askar… você sabe das regras dos Guardiões. Esta é a primordial. Nenhum de nós pode permitir que esse tipo de conexão floresça.
Ele fechou os olhos brevemente, como se buscasse forças em si mesmo.
— Estou tentando sufocar… antes que cresça demais.
Não escolhi sentir isso. Mas agora… está em mim.
Lúmina manteve o tom sereno, embora por dentro houvesse turbulência.
— Então lute. Antes que seja tarde. Você sabe o que pode acontecer.
Askar apenas assentiu, abriu o pergaminho e partiu em silêncio — o que carregavam era maior que a missão.
Eryel se manteve afastada, mas captava tudo.
E a runa de Lúmina vibrou suavemente
Enquanto isso, Kaelith, o Guardião das Trevas, aproximava-se cada vez mais de Elira.
No início, era sempre por dever — informações sobre seres corrompidos, distorções nas travessias, ordens dos Ancestrais.
Mas com o tempo… passou a sentir necessidade de estar perto dela.
Procurava motivos. Criava pretextos.
E nem sempre encontrava justificativa real — apenas a urgência silenciosa de vê-la mais uma vez.
Certa vez, na Câmara da Cura, Elira tratava um ferimento profundo em seu ombro.
Ela tocava sua pele com delicadeza, selando a ferida com a runa de cura e sussurros ancestrais.
Kaelith permaneceu calado.
Não por orgulho — mas porque não encontrava palavras.
A presença dela… descompassava tudo por dentro.
Elira ergueu o olhar, gentil.
— “Está tudo bem?”
Ele apenas assentiu. Um movimento breve com a cabeça. Nada além disso.
Zhaerion, em silêncio, ressoou dentro dele:
— Nem os piores corrompidos. Nem as piores batalhas. Nada te trinca como ela.
Kaelith permaneceu imóvel.
Mas algo em seu interior… já não era o mesmo.
Ergueu-se antes que a cura fosse concluída.
Virou-se de costas, tentando controlar o que queimava sob a pele.
Tentando fugir do que o incendiava por dentro.
As batalhas nas dimensões — tanto na Matéria quanto na Mística — deixavam marcas.
Seres místicos que se corrompiam eram combatidos.
Alguns eram selados por Elira, que possuía o dom do adormecimento eterno.
Outros eram exilados por Kaelith para a Dimensão das Trevas.
E quando os ferimentos eram físicos ou energéticos, todos eram enviados para Elira — a curadora suprema entre os Guardiões.
Com Nyara a seu lado, ela restaurava não apenas corpos… mas também almas.
Os Familiares, conectados profundamente aos seus Guardiões, sentiam tudo:
o descompasso da essência, a vibração instável, o sopro de algo que não deveria florescer.
Mas mantinham-se leais, silenciosos, vigilantes.
Sabiam que a presença humana era mais que um dom — era uma sentença.
A vibração não nomeada começava a pulsar em silêncio… e os Guardiões lutavam contra ela, mesmo sem compreender o porquê.